terça-feira, 25 de março de 2008

Um pouco de "filosofia barata" do direito

Vou aproveitar essa discussão em torno da possibilidade ou não de indeferimento de registro de candidatura de políticos que estejam respondendo a processos criminais para desenvolver uma "filosofia barata" do direito, tentando explicar como funciona o (meu) raciocínio jurídico.

A premissa básica que está por detrás de todo o meu pensamento jurídico é o seguinte: o direito é instrumento de poder com forte conteúdo ideológico.

Essa constatação - polêmica para uns, óbvia para outros - dificulta a busca de uma explicação "científica" de muitas soluções, leis e precedentes jurídicos. No final das contas, o direito é, em grande medida, um ato de força (força aqui entendida no sentido de poder de influência e de persuação e não de força física). Achar uma "razão científica" em toda decisão judicial é, de certo modo, uma ilusão. É meio como perguntar porque uma pessoa torce para o Flamengo e não para o Vasco.

Mas ao mesmo tempo, por mais paradoxal que seja, também acho que a atividade do jurista deve seguir uma metodologia racional, uma justificação plausível, "cientificamente" demonstrável, capaz de convencer um público minimamente inteligente. Isso se dá por meio da argumentação jurídica.

Pois bem.

Para se chegar a uma argumentação jurídica "objetiva", ou seja, baseada em valores compatíveis com o ordenamento jurídico e não em meras preferências pessoais "subjetivas", o jurista segue um caminho que necessariamente começa com uma fase introspectiva, intuitiva, inconsciente, meio irracional mesmo...

É o tal do "sentimento de justiça", que qualquer ser humano possui (sentença = sentire = sentimento). Parece-me justo que uma pessoa portadora de deficiência que não tenha como sobreviver por conta própria receba uma ajuda financeira do Estado para minorar seu sofrimento e melhorar sua qualidade de vida. Parece-me justo que o pai seja obrigado a cuidar do filho. Parece-me justo que uma pessoa que, arbitrariamente, tira a vida da outra seja punida. Parece-me injusto tratar de modo diferente duas pessoas que estão na mesma situação. Parece-me injusto maltratar outras pessoas. Parece-me injusto não respeitar a opinião alheia. E por aí vai...

O sentimento de justiça é um sentimento meio abstrato e, por isso mesmo, difícil de explicar em palavras. Afinal, "o coração tem razões que a própria razão desconhece", como diria Pascal.

E aí reside toda a complexidade da tarefa jurídica, pois o papel do jurista é precisamente tentar transformar esse sentimento de justiça (intuitivo/sensitivo/emocional) em um discurso racional, fundamentado em normas jurídicas estabelecidas no ordenamento, que possa ser aceito pelo maior número de pessoas.

Depois de quase oito anos de magistratura, passei a adotar o seguinte método para chegar a uma solução justa (sob meu ponto de vista) e, ao mesmo tempo, compatível com o ordenamento jurídico para os casos difíceis que tenho que enfrentar.

Primeiro, assumo, de forma transparente, o meu "pré-conceito" em relação ao assunto a ser decidido. Melhor dizendo, tento "intuir" qual a solução que me parece mais justa para aquele caso. E mais: parto do princípio de que o meu "feeling" está correto. É uma técnica meio arbitrária e até mesmo arrogante, mas, conforme se verá no passo seguinte, no final das contas, não deixa de ser interessante, pois minha mente trabalhará contra essa tese na fase racional do processo discursivo.

Depois, já numa fase posterior menos "íntima", mais "fria", começo a analisar todos os argumentos que podem derrubar o meu sentimento de justiça ("feeling"). O ideal seria tentar ser o mais "neutro" possível nessa fase. Mas não dá. O nosso "feeling" acaba interferindo tanto no método quanto no resultado dessa investigação.

Mesmo assim, procuro fazer, muitas vezes, o papel de "advogado do diabo" contra mim mesmo, até mesmo para criar novos argumentos que podem derrubar minha opinião inicial. Particularmente, sou bom nisso, conforme se verá no caso da presunção de inocência versus direitos políticos. Consigo ser, em alguns casos, melhor do que meus "adversários" e às vezes me surpreendo com minha capacidade de desenvolver bons argumentos que podem me derrubar! Seguindo à risca a "ética do discurso", o jurista teria a obrigação de explicitar esses argumentos, "entregando o ouro pro bandido". Mas nem sempre isso ocorre na prática forense, pois, no direito, os debatedores estão quase sempre em situação de completo antagonismo, em posições inconciliáveis, de forma que "entregar o ouro para o bandido" acaba sendo uma péssima estratégia argumentativa. Logo, a "ética do discurso" se transforma em uma "teoria dos jogos", como no famoso "dilema do prisioneiro". O melhor é sempre "cooperar", a menos que o adversário não pense assim... Como o juiz está numa posição "imparcial", deve seguir a ética do discurso o mais fielmente possível, como critério de legitimação da sua atividade.

Voltando ao método.

Nessa segunda fase, tento encontrar todos os argumentos existentes e imagináveis para derrubar minha tese inicial. Procuro me colocar, humildemente, na posição de quem pensa de forma diferente, submetendo o meu "feeling" a um rigoroso teste de consistência, inclusive para verificar as possíveis conseqüências sociais, econômicas e políticas decorrentes da solução adotada.

Se minha intuição prevalecer diante de todos os argumentos contrários, então a mantenho, agora sim justificando com uma base mais racional o motivo pelo qual ela é a solução que melhor reflete a "pretensão de correção", para utilizar a expressão cunhada por Alexy, ou a "idéia de justiça", para ficar com Rawls.

Devo dizer que foram poucos os casos em que mudei de opinião na segunda fase. Digo isso não por pedantismo, como se fosse um mérito meu, mas justamente porque é difícil se despir dos pré-conceitos. Talvez, se eu fosse mais "crítico comigo mesmo" e confiasse menos no meu "feeling", o índice de mudança seria bem mais alto. Essa confiança excessiva no "feeling" não é uma postura recomendada do ponto de vista científico. Na verdade, não é nem um pouco recomendada, embora muitas soluções científicas tenham surgido após um "insight" meio maluco, seguido de um grito de "eureca"!

É mais ou menos esse o método que utilizo para chegar a uma solução jurídica. Existem muitos outros até mais satisfatórios, mas essa técnica (que, na verdade, não tem nada de original), a meu ver, consegue atingir a finalidade do direito que é a busca da justiça com legitimidade.

Antes de passar para a análise do caso ora proposto (presunção de inocência versus direitos políticos), citarei dois exemplso em que adotei claramente o método acima. No primeiro, mantive meu ponto de vista. No segundo, mudei.

O primeiro exemplo foi o caso da "antecipação da tutela de ofício", uma tese nitidamente polêmica e até mesmo meio "contra-legem", já que o CPC é claro ao dizer que essa medida será concedida "a requerimento da parte" (art. 273).

Assim que ingressei na magistratura, assumi um gabinete com quase mil processos conclusos para sentença. Quase a metade referia-se a pedido de aposentadoria rural por idade que tramitava por cerca de cinco anos sem qualquer sentença de primeiro grau. Veja bem. A parte já era idosa (pelo menos 60 anos) e não tinha mais condição de trabalhar. Queria somente se aposentar. Para isso, bastava provar que era trabalhador rural. Durante cinco anos o processo tramitou só pra isto: saber se a parte é ou não trabalhadora rural. Uma matéria extremamente simples. Aliás, um parêntesis: será que a sociedade deseja pagar a um juiz federal quase quinze mil reais por mês para ele passar a maior parte do tempo dizendo quem é e quem não é um trabalhador rural? Fecha parêntesis.

Apesar de ser um caso extremamente simples, os processos já tramitavam por cinco anos e tramitariam ainda mais uns cinco, pois, naquela época, a sentença estava sujeita ao duplo grau obrigatório se fosse contra o INSS. Não havia Juizados Especiais Federais.

Meu "feeling" foi bastante claro: parece-me injusto que um trabalhador rural tenha que esperar mais cinco anos para receber sua aposentadoria, sendo nítido que tem direito ao benefício. Diante disso, procurei no ordenamento jurídico as soluções para o problema. Havia duas: ou receber a apelação do INSS apenas no efeito devolutivo ou então conceder a antecipação da tutela, mesmo sem qualquer pedido expresso. A primeira solução era totalmente rechaçada pela jurisprudência. Logo, seria meio "burro" insistir na tese. Por isso, preferi seguir a linha da antecipação da tutela de ofício, algo ainda em aberto na jurisprudência.

Analisei todos os argumentos contra a antecipação da tutela de ofício e acabei reproduzindo minhas impressões no seguinte artigo: "Antecipação da Tutela de Ofício?", escrito em 2001.

Ou seja, acabei me convencendo de que meu "feeling" estava certo. A tese ainda não foi pacificada, mas há várias decisões dos Tribunais Regionais Federais acolhendo a idéia de que, em casos excepcionais, é possível que o juiz conceda a antecipação da tutela de ofício. É um posicionamento ainda minoritário, mas que se consolidou na nova Lei dos Juizados Especiais Federais, que estabelece no artigo 4 que "o Juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, deferir medidas cautelares no curso do processo, para evitar dano de difícil reparação". Praticamente todos os juízes que atuam nos JEFs e nas Turmas Recursais entendem que essa regra autoriza também a concessão da antecipação da tutela de ofício nos JEFs.

Agora um exemplo em que mudei meu ponto de vista originário: o caso da prorrogação de benefícios previdenciários para dependentes que cursam faculdade. Eis, em síntese, a tese: diz a lei que um depedente tem o direito de receber pensão por morte, paga pelos cofres públicos, até completar 21 anos; aos vinte anos, esse dependente ingressa em um curso superior; pede, por isso, para continuar recebendo a pensão até os 24 anos ou até completar o curso.

Meu "feeling" inicial foi no sentido de que havia o direito ao benefício. O pedido me parecia "justo" num primeiro momento. Afinal, prestigiava o direito à educação. Se o pai estivesse vivo certamente pagaria a universidade para o filho. Por que então não obrigar o Estado a pagar?

Depois, diante dos argumentos contrários a meu ponto de vista, percebi que não há qualquer ligação entre "cursar o ensino superior" e "receber uma pensão por morte". São coisas completamente diferentes. Se alguém pretende cursar o ensino superior de forma subsidiada pelo Poder Público deve participar dos programas criados especificamente para esse fim, como o Prouni, entre outros. Do contrário, esse dependente estaria numa posição privilegiada em relação a grande maioria da população que não recebe qualquer "salário" para estudar em uma faculdade. Como o Estado não pode pagar o mesmo salário para todo mundo que queira estudar em uma universidade, não seria razoável obrigar a sociedade a custear esse encargo para o dependente, sem qualquer previsão legal. Seria o mesmo, guardadas as devidas proporções, que obrigar o Estado a continuar pagando o seguro-desemprego para um desempregado que ingressou na Faculdade. Ou seja, estaria havendo um desvio de finalidade, já que o benefício não foi criado para esse fim!

Hoje, já está pacificado na jurisprudência que não existe o tal direito à prorrogação do pagamento do benefício para conclusão do ensino superior. Uma solução, à primeira vista, injusta, mas que, no fundo, é totalmente compatível com ordenamento jurídico, inclusive o constitucional, estando muito mais próxima à "idéia de justiça" após ser submetida a um teste de consistência mais profundo.

O post já ficou maior do que eu pretendia. Por isso, vou parar por aqui. Deixo apenas a seguinte reflexão para enfrentar logo mais à frente:

é justo que uma pessoa conhecidamente criminosa/corrupta/bandida/desonesta, com fortes indícios de que cometeu crimes graves, possa se candidatar a um cargo político, usando inclusive as verbas obtidas ilicitamente para financiar a sua campanha?

Reformulando a pergunta de acordo com a "ética do discurso":

é justo que uma pessoa sobre a qual pairam meras suspeitas de que praticou ilícitos seja impedida de se candidatar a um cargo político, sabendo que um dos pilares do Estado de Direito é o princípio da presunção de inocência?

6 comentários:

Anônimo disse...

George,
De maneira resumida, creio que a Constituição transparece um "sentido objetivo de justiça", como já dizia Dalmo Dallari. Sendo assim, a presunção de inocência pode ser considerada como um topos justo, partindo da argumentação de Perelman. Creio, ainda, que o fato de a pessoa ser "conhecidamente criminosa/bandida/corrupta, etc". Assim, mesmo não concordando inteiramente com a tese, parto do pressuposto de que ser "conhecidamente bandido/corrupto" não faz parte do sistema do Direito, não "ingressou" no Direito, sendo apenas fato conhecidos socialmente. Não sendo direito, não pode virar Direito. "Tudo que não está nos autos não está no mundo jurídico", já dizia o velho brocardo. Assim, não creio ser 'justo', se partirmos de um conceito 'objetivo' de justo negar o direito de se candidatar a um cargo público uma pessoa sobre a qual pairam suspeitas de haver praticado atos ilícitos. Ademais, se a pessoa é "reconhecidamente bandida/criminosa/corrupta", se espera que o próprio povo rejeite sua candidatura. Afinal, partindo da premissa de uma democracia qualitativa (tenho que concordar que ainda não existe, pelo menos no Brasil), o povo não vai querer um "criminoso/corrupto/bandido/ladrão" para ser seu representante.
Grande abraço,

Rafael Diogo

Unknown disse...

George,

De modo bem simplificado, diria que a legislação eleitoral não poder reduzir / suprimir, a presunção de inocência, direito fundamental expresso.
Mas a legislação eleitoral pode sim, acho eu, em caráter excepcional, restringir referida garantia, desde de que, como vc mesmo diz, se trate "uma pessoa conhecidamente criminosa/corrupta/bandida/desonesta, com fortes indícios de que cometeu crimes graves".
Agora, se existem apenas "meras suspeitas"... aí sim, deve-se prestigiar a garantia em questão.
Em suma, cada caso é um caso.
[]s
Custódio

Anônimo disse...

Discordo do colega acima (Rafael Diogo) quando disse que O POVO não vai querer que o ladrão seja seu representante. Ora, a democracia representativa pressupõe que um candidato represente (acaso eleito) a vontade do mandante.

Nesse aperto de mão que confere confiança na representação(manus datio) pode ter um grupo de "corruptos e ou corruptores/lobistas" que queira se fazer representar ou na câmara alta ou na câmara baixa.

Quanto ao post, trata de um método hermenêutico que eu não aprovo. É a mesma coisa que aconteçe quando certos desembargadores e ministros levam o voto pronto para a sessão de julgamento (só muda o cabeçalho). Ou seja, já sabe o que é e qual é o Direito antes de observar o Ordenamento Jurídico. Síndrome do Neologístico Neoconstitucionalismo.

Ou são expostos os fatos e a partir dai o sentenciante procura no OJ a resposta adequada ao caso concreto;

Ou O sentenciante já sabe de ante-mão qual é a resposta, e a partir dai é que vai procurar no OJ fundamentação que ampare sua exposição;

Prefiro a primeira hipótese.

Quanto ao suposto político do post, me pareçe que o problema propostosão expõe o caso de três maneiras distintas:

"uma pessoa conhecidamente criminosa/corrupta/bandida/desonesta, com fortes indícios de que cometeu crimes graves, possa se candidatar a um cargo político"

e

"uma pessoa sobre a qual pairam meras suspeitas de que praticou ilícitos seja impedida de se candidatar a um cargo político"

O é conhecidamente desonesto;

ou pariram fortes indícios de que cometeu crimes graves;

ou ainda

pairam apenas meras suspeitas.


Em todo o caso, em qualquer das situações descritas, tenho que o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade não tem o condão de permitir a candidatura, pois numa interpretação sistemática da Carta Constitucional (seja quanto aos Fins da República, seja quanto aos objetivos almejados) não se coaduna com o princípio repúblicano, com o princípio democrático e com o princípio Federativo.

È como penso.

Thiago.

George Marmelstein disse...

Thiago,

antes de enfrentar o problema, gostaria apenas de fazer uma correção quanto ao seu comentário.

No texto, afirmei que o método que utilizo não tem nada de original. E não tem mesmo. Mas não é uma invenção do "neoconstitucionalismo" ou algo parecido. Na verdade, não tem nada a ver.

Essa técnica foi descrita, por exemplo, por Recasens Siches já em 1973 na sua "Nueva Filosofia de la interpretacion del Derecho".

Siches, por sua vez, já se baseia em Karl Llewellyn, que defendeu, em 1962, que, geralmente, a mente do juiz primeiro antecipa a decisão que considera justa e depois procura a norma que pode servir de fundamento a essa solução, atribuindo aos fatos a qualificação apropriada.

Também não tem nada a ver com o Desembargador que leva o voto pronto. O "levar o voto pronto" é um aceitável ato para proporcionar mais celeridade ao processo. O advogado, na sustentação oral, não poderá inovar na argumentação. Toda argumentação já foi apresentada. O que o advogado fará é apontar algum dado relevante que mereça uma atenção maior. Logo, o "levar o voto pronto" vai funcionar para 99% dos casos. Para o 1% restante, o Desembargador deve ter a humildade de retirar o processo de pauta para reformular seu voto ou então reelaborá-lo na hora em face dos argumentos apontados pelo advogado. Na Turma Recursal, a gente faz isso com freqüência. Em pelo menos 10% dos processos com sustentação oral, há mudança do "projeto de voto" na hora, em face dos argumentos apresentados pelos advogados.

Uma última observação: no final do seu comentário, você acabou utilizando exatamente a técnica que descrevi, embora tenha "pecado" na fase argumentativa.

Intuitivamente, o seu "feeling" é no sentido de que uma pessoa sem reputação moral não pode se candidatar a cargos políticos(curiosamente, o meu "feeling" também é nesse sentido - depois explico melhor). Depois, já na fase argumentativa, você tenta demonstrar que esse "feeling" é compatível com o espírito republicano, democrático etc...

Perfeito, é um modo mais cômodo de pensar, embora a argumentação tenha sido bem fraca (lógico, foi um mero comentário num post; não era preciso mesmo ter qualquer profundidade).

Agora, tente fazer o seguinte exercício (e acho que esse é o grande mérito do método que adoto): encontre todos os argumentos que você puder para derrubar essa sua tese. Coloque-se, humildemente, na posição do seu adversário. Submeta o seu "feeling" a um rigoro teste de consistência. Tente vencer sua própria intuição. É isso que proponho para dar mais legitimidade à solução. Se você conseguir vencer todos os obstáculos possivelmente apontados pelos adversários, sua tese se fortalece consideravelmente.

George Marmelstein

Anônimo disse...

"Se um grupo de pessoas discute algo com a intenção de chegar a uma
conclusão, quem roubar no jogo destrói a argumentação." (Inocêncio Mártires Coêlho citando Karl-Otto Apel)





Prof. George,

Humildemente reconheço que falei, de certa forma, algumas impropriedades. Um modo eufemístico de dizer "FALEI MERDA"!

Mas nem tudo.

O "Síndrome do Neologístico Neoconstitucionalismo" foi por minha conta mesmo.

Afinal, quem escolhe aplicar a norma Materialmente Constitucional acima de qualquer coisa, o que faz senão encampar o Neoconstitucionalismo?

O notável jurista espanhol por você citado, escreveu bastante sobre a "arte de julgar". Antes até mesmo das Da II Grande Guerra (marco teórico do NeoConst.). Mas o método hermenêutico citado, SMJ se enquadra essencialmente no quanto citei.

É incontestável que os argumentos por ele utilizados seguem um viés Neoconstitucionalista, em que pese tê-los escrito antes do surgimento do chamado NeoConsti. Alguém pode dizer que estou a confundir Neoconst. com Realismo Jurídico, eis que segundo pode parecer, Direito é o que é.

Ou não É?

E na esteira deste raciocínio, entendo (ainda sem um posicionamento formulado e fixo a respeito) que o Desembargador ou Ministro (ou Juiz da Turma Recursal) que leva voto pronto desvirtua o conceito de "prestação jurisdicional" ao inserir em seu bojo a celeridade (quase que em detrimento dos outros princípios que norteiam a relação jurídica material e a relação jurídica processual) em uma fase processual que está a se despedir do efeito suspensivo. (não incluído o JEsp que via de regra não concede o dito efeito ao COGNOMINADO RECURSO).

A argumentação a favor do ato de “levar o voto pronto”, assemelha-se a argumentação acerca da necessidade da digitalização do processo, em nome da celeridade.

Já com alguns resultados existentes, após a digitalização do Processo, verifica-se que, em que pese o Magistrado brasileiro ser o mais produtivo do mundo (pelo menos foi o que disse um Juiz essa semana na TV Justiça), e mesmo com a digitalização do processo, não se observam maiores resultados práticos (no que tange ao tempo que leva para se instruir, estabilizar e sentenciar o processo).

Ok, após a digitalização, leia-se: EXCLUIR O ADVOGADO ANALFABETO DIGITAL, sob a alegação da “celeridade”, qual serão as desculpas para a morosidade?

E outra coisa, a argumentação feita sobre o “feeling” funcionaria melhor ao vivo e a cores na sessão de julgamento, auxiliada pelos debates (penso que um colegiado só tem razão de ser por que os propicia), ou não?

Quanto ao argumento da técnica do “feeling”, eu tentei dizer (reconheço que não me expressei claramente) que ela pode ser utilizada da maneira como você falou, ou de maneira inversa. Melhor dizendo, eu posso ter o feeling acerca da resposta correta para a “quaestio in iure deducta” e com base no meu “feeling” buscar a resposta jurídica no OJ.

Ou inversamente eu posso buscar todas as respostas possíveis (Constantes no OJ) e só depois apresentar o meu sentimento.

Mas inexoravelmente (a meu ver) não conseguirei ultrapassar a barreira da minha “pré-concepção”. Se o intérprete forma uma tríade com o objeto analisado e com sua pré-concepção e sua visão acerca do objeto interpretado, como confiar em uma posição parcial ou mesmo neutra?

Ou ainda, como alcançar uma posição de neutralidade (a meu juízo inalcançável) de um “segundo eu”? como decidir com escorreita interpretação qual dos dois (ou mais) pontos de vista do mesmo e único EU ?

Segundo lições maestrais do prof Inocêncio Mártires de Oliveira, verbis:

tendo em vista o propósito que inspira os seus
protagonistas questionar seus próprios dogmas profissionais, que
espontaneamente se dispõem a colocar sob suspeita afigura-se
indispensável, para torná-los fecundos, que os debates se travem em
condições lingüísticas ideais; no âmbito de um auditório que de direito se possa
considerar universal 21 e onde todos estejam sinceramente dispostos ao
diálogo e à busca cooperativa da verdade; em situações discursivas nas quais
os interlocutores sejam tratados como pessoas ou sujeitos livres e iguais; onde
os argumentos de autoridade e violências afins cedam lugar à persuasão
racional; em ambientes nos quais estejam proscritas todas as formas de
coação, salvo a coerção sem coerções que exerce o melhor argumento; num
espaço, enfim, verdadeiramente aberto, pluralista e democrático
ideologicamente arejado, portanto - onde a busca do consenso não interdite o
dissenso, mesmo sabendo-se que esse acordo pragmático, que se alcança
exclusivamente pela mediação retórica, poderá ser (des)qualificado, desde
logo, como um prejuízo unitário ou um grande preconceito coletivo.22
Trata-se, evidentemente, de um processo puramente formal e fictício –
tão imaginário quanto o contrato social, como observa Arthur Kaufmann 23 –
mas que nem por isso devemos descartar de plano, em nome de um cínico
realismo existencial, que não nos proporciona resultados melhores e acaba
legitimando posições de força ou desvios de persuasão.


“Essa a razão pela qual o conscientes de que o processo do
conhecimento, além de uma relação onto-gnosiológica ou subjetivo-objetiva, é
também uma atividade inter-subjetiva, que envolve pessoas e gerações; e
convencidos, ademais, de que a interação professor-aluno é da essência da
aprendizagem como valor compartilhado e mutuamente adquirido - ,
reconhecemos o diálogo e a ética no discurso como formas genuínas de busca
da verdade, uma atitude intelectual que, de resto, reflete o ensinamento dos
mais importantes pensadores contemporâneos, entre os quais merece
destaque a figura de Karl-Otto Apel, de quem registramos esta severa lição:


“Para que haja comunicação é necessário que o Outro fale e reconheça
o que eu falo. Nesse eixo já existe a assunção mínima de que há um
campo democrático e de respeito na argumentação sem o qual não
existe comunicação. É por isso que afirmo que é um tipo de
racionalidade que demanda um outro tipo de binômio cognitivo:
sujeito/co-sujeito e não sujeito/objeto, como nas teorias solipsistas
modernas. É uma validade epistemológica intersubjetiva e não uma
busca de objetividade ingenuamente neutra, como nos propõe uma
ciência cega.
Os cientistas estão imersos em uma comunidade comunicacional real,
do contrário não conseguem nem mesmo fazer a hipótese ‘acontecer’.
Se um grupo de pessoas discute algo com a intenção de chegar a uma
conclusão, quem roubar no jogo destrói a argumentação. Não se trata
de uma ‘adesão’ volitiva irracional de tipo popperiano, mas de uma
adesão racional cognitiva: se roubarmos no jogo, acaba a argumentação, e a cognição buscada se desfaz. Sem esse campo
democrático de respeito, toda fala é blablablá... É a argumentação que
deve ser o modelo transcendental (sentido kantiano) para a fundação de
uma ética atualmente (o que chamo de ética da discussão), em um
mundo pós-metafísico, sem Deus e cheio de almas mortais que se interrelacionam
não mais dentro de esquemas culturais grupais fechados
(que sustentavam a ética solidária no passado), mas por meio de
gigantescas redes tecnológicas e comerciais impessoais.”


Por isso, não entendo como um diálogo com sigo mesmo teria o condão de trazer a lume o melhor posicionamento a ser tomado no caso concreto. E mais, tomando a “posição argumentativa esquizofrênica“, quem poderia julgar qual a posição mais coerente. Eu? Ou o segundo Eu encampando os argumentos dos meus adversários?

Anônimo disse...

Corrigindo: Não é Inocêncio Mártires de Oliveira, e sim Inicêncio Mártires Coêlho.

Thiago.