domingo, 6 de abril de 2008

A Liberdade de Expressão e os Símbolos Nacionais: hino nacional em forró?

Não há dia melhor do que uma segunda-feira para narrar o caso abaixo. Afinal, estamos falando da segunda-feira mais louca do mundo!

O caso que vou narrar é, na minha ótica, um dos mais interessantes envolvendo direitos fundamentais aqui no Brasil. E a discussão é aparentemente simples: pode uma banda gravar o hino nacional em ritmo de forró?

Quando o meu amigo Juiz Federal Eduardo Vilar me contou o caso (a sentença dele está logo abaixo) achei no início que se tratava de um "easy case", já que não havia uma colisão de direitos propriamente dita. O que havia era a restrição de um direito fundamental (liberdade de expressão) tão somente para proteger um valor "sem muita importância", já que os símbolos nacionais aqui no Brasil não são muito valorizados. Meu "feeling" foi imediato: é lógico que a liberdade de expressão tem que prevalecer.

Mas analisando melhor a questão, percebi que ela é um prato cheio para a teoria dos direitos fundamentais. O caso retrata com perfeição aquilo que se costuma chamar de "dimensão objetiva" dos direitos fundamentais, a exigir que toda interpretação jurídica leve em conta os valores jusfundamentais, ainda que a solução aparentemente seja contrária ao que determina a lei. Pode-se chamar esse mesmo fenômeno de "eficácia irradiante" dos direitos fundamentais ou então de "filtragem constitucional". No fundo, é tudo a mesma coisa: a lei deve ser interpretada em conformidade com os direitos fundamentais, pois não são os direitos fundamentais que devem girar em torno da lei, mas a lei que deve girar em torno dos direitos fundamentais, conforme dizia Krüger.

No caso em questão, a interpretação da lei "ao pé da letra" certamente levaria a uma solução oposta a que chegou o Eduardo, que captou com perfeição a força "magnetizante" da liberdade de expressão para julgar o caso.

A Lei 5.700/71, que regulamenta a questão, é bastante enfática ao dizer a forma musical em que o hino nacional poderá ser executado (art. 6 e 24). O artigo 34 da lei veda a execução de qualquer arranjo diferente do ali estabelecido, salvo autorização do Presidente da República. A punição para o descumprimento da lei é pecuniária (art. 35).

A inconstitucionalidade da lei (ou melhor, não-recepção, já que se trata de lei pré-constitucional) não é tão clara quanto aparenta. É que os símbolos nacionais também são valores de relevância constitucional (art. 13 da CF/88). Aliás, eles estão no Título II da CF/88, que é precisamente o título constitucional dedicado aos direitos fundamentais. Em outras palavras: por opção do constituinte, os símbolos nacionais também são valores fundamentais, ainda que, na prática, a sua importância social esteja cada vez mais perdendo força.

Mas isso por si só não é motivo para gerar a legitimidade constitucional da lei ora analisada.

A proteção constitucional aos símbolos nacionais não significa uma carta branca para o legislador regulamentar a matéria da forma como bem entender. Estamos diante de uma limitação ao direito fundamental à liberdade de expressão. Qualquer restrição a direito fundamental, para ser válida, deve passar pelo teste da proporcionalidade. Dentro dessa ótica, é fácil perceber que a Lei 5.700/71 claramente restringe excessivamente a liberdade artística, na medida em que, sem motivo razoável, "amarra" a criatividade musical daquele que deseja executar o hino nacional. Proibir outros arranjos ao hino nacional cria um "monopólio" cultural incompatível com a liberdade artística "sem censuras", conforme previsto na CF/88. A possibilidade dada pela lei de permitir a execução do hino com outros arranjos desde que autorizada pelo Presidente da República não salva a norma. Afinal, a liberdade artística não dependerá de licença, conforme preconiza o artigo 5, inc. IX, da CF/88.

Além disso, como bem anotou o Eduardo na sua sentença, a música em questão longe de desrespeitar os símbolos nacionais representa uma homenagem de amor ao país e possui uma capacidade de penetração nas massas que certamente o arranjo oficial não teria.

Ou seja, não há, com toda certeza, uma violação ao artigo 13 da CF/88. O que há é uma conflito entre a Lei 5.700/71 e o direito à liberdade de expressão. Norma superior prevalece em relação à norma inferior...

A lembrança do caso "Texas vs. Johnson", julgado pela Suprema Corte dos EUA em 1989, caiu como uma luva para reforçar o argumento em favor da incompatibilidade da lei com a liberdade de expressão. No famoso e polêmico caso, decidiu-se, por 5 a 4, que o direito à liberdade de expressão compreende também o direito de queimar a bandeira nacional (e olhe que se está falando dos EUA, onde o patriotismo é quase doentio). Aliás, cito esse caso no meu Curso de Direitos Fundamentais, defendendo seu resultado. E observe que o caso "Texas vs. Johnson" é um caso patente de desrepeito aos símbolos nacionais, enquanto que o caso do "Forró Pirata" não tem essa intenção.

A invocação da jurisprudência comparada representa aquilo que eu chamo de "benchmarking" jurisprudencial: as boas decisões adotadas por outras cortes constitucionais devem mesmo ser imitadas e aprimoradas, desde que mais favoráveis aos direitos fundamentais.

Para o post não ficar muito longo, passo logo a reproduzir a canção que motivou a controvérsia:

http://www.pirata.com.br/portal/musicas/Hino_Nacional_Brasileiro.mp3


Link relacionado: http://www.pirata.com.br/portal/hino.php.br/portal/hino.php

Aliás, só a título de curiosidade, vá ao site da Presidência da República e perceba que a bandeira nacional está representada em desacordo com a lei! Nem mesmo a mais alta autoridade do país acredita que a Lei 5.700/71 está em vigor (e não está mesmo, pelo menos se rigidamente interpretada).


A sentença em versão para impressão pode ser obtida aqui.

Perceba como o discurso adotado na decisão é refinado e utiliza inúmeras técnicas argumentativas desenvolvidas pela nova teoria jurídica dos direitos fundamentais: ponderação, proporcionalidade, reserva de consistência, jurisprudência comparada etc. Não poderia ser diferente, ante a indiscutível capacidade intelectual do Eduardo, que foi o primeiro colocado no seu concurso para a magistratura federal.

9 comentários:

Relacionamentos e afins disse...

Prof George, o livro do curso de direitos fundamentais já saiu?? Qual a editora? Moro em outra cidade e quero pedir por internet. Obrigada!

George Marmelstein disse...

Alessandra,

o livro sairá pela Atlas, ainda não há data prevista. Acredito que em maio ou junho já tenho uma data para o lançamento.

George

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

George,
Ainda acho esse caso um 'easy case'. Creio que tenha sido alguma incompreensão do MP, baseado em opiniões de falsos moralistas e/ou intelectuais que nao reconhecem a cultura brasileira, querendo exportar mozart, bach e afins para o povão. No entanto, ouvi falar de um caso muito parecido que, na minha opinião, é 'harder case' que esse 'case'. Como disse, ouvi falar de algumas sociedades/individuos que ingressaram com ação para retirar algumas placas da cidade de Fortaleza do governo do Estado prevenindo o consumo de álcool por quem for dirigir. Dizeres como "Bebeu e vai dirigir? A viúva é bonita" está causando ofensas à honra, especialmente de quem já perdeu parentes nestes tipos de acidente.
Quem for julgar terá que se deparar com a liberdade do Estado de orientar (que talvez seja mais um dever do que direito propriamente dito), com o fito de prevenir acidentes bem como compatibilizar com o sentimento moral coletivo de "ofensa" ou "mau gosto", fulcrado no direito à imagem.
Tenho um "feeling" (imitando seus posts anteriores) que tais placas são um pouco exacerbadas, de fato, e que a liberdade de orientação do Estado deve ter balizas mais certas e mais consonantes com a 'moral coletiva'.
Abraços,
Rafael Diogo

George Marmelstein disse...

Rafael,

o caso do outdoor é mesmo interessante e bem mais complexo de resolver, até porque passa pela questão de saber se o Estado pode ser titular do direito fundamental de liberdade de expressão.

Na minha ótica, já adiantando meu posicionamento, penso que a liberdade de expressão, no caso do outdoor, deve prevalecer. Às vezes, a divulgação da idéia precisa mesmo ser um pouco agressiva para chamar a atenção. Basta ver o caso das embalagens de cigarros.


Mas realmente é um assunto que merece um maior aprofundamento.

George

Rafael Diogo disse...

George,
Saindo da discussão se o Estado é titular de direitos fundamentais (nao creio que haja 'confusao' entre suj passivo e ativo), essa divulgação de idéia agressiva tem uma finalidade clara de prevenir acidentes, sendo assim, em tese, a honra de uns poucos um direito de menor expressão do que a vida de muitos.
Nesse ponto especificamente, parece o argumento utilizado por quem defende o uso da tortura(salvaguardado pelas devidas proporções), em que a integridade fisica de um vale muito menos que a vida de centenas ou milhares.
Nesse caso, acredito que pela proporcionalidade, a placa não passaria da necessidade. Em último caso, a ponderação em sentido estrito, a meu ver, barraria estas mensagens, visto que ha mensagens e propagandas com impacto suficiente sem causar tamanha ojeriza e repúdio na sociedade, especialmente nas vitimas e suas familias.
Se os publicitários sao criativos para fazer essa publicidade, creio que também o sao para fazer uma menos "agressiva" ;)
Abraços

Rafael Diogo

George Marmelstein disse...

Conforme informado por Marcel Trovão, saiu hoje no Jornal "O Estado do Maranhão" (www.imirante.globo.com):

"Direito do forró

Eis a questão. Dançar ou não dançar. Viver, sorrir, chorar. Forró é que nem a estória que contam: “for all”. Uma corruptela do inglês “para todos”, “para qualquer um”. Forró, no fundo, é o símbolo da democracia, do espaço dividido. Dança, suor, gente.

O Marcel Trovão repercutiu em seu blog os comentários de George Marmelstein. A pergunta: “pode uma banda gravar o hino nacional em ritmo de forró?” Tudo bem, você me perguntaria de cara se eu não teria do que falar além dessa estória. A resposta: não, eu não.

Lembro que Hino Nacional era coisa de contra-capa de caderno na época que estudava no Grupo Escolar Urbano Santos, em Grajaú. Oxi, época boa. Irresponsavelmente feliz. Hoje meu filho não pode brigar na escola. Lá no interior não. Era até incentivado irresponsavelmente pelos mais velhos. Que, aparentemente, também não tinham um pingo de juízo. “Esse risco é a tua mãe, esse é a do fulano”.

Fiquei mais velho e a gente foi para o Colégio Santo Antônio. Tínhamos que “formar”. Sabe, regime militar. Mão no ombro do colega. “Ajeita a fila, menino”. De repente, aparecia o diretor que depois se tornou um grande espírita e um excelente amigo, professor Pedro Paulo, o PP. “Pára, pára”. Todos parávamos de cantar o Hino Nacional. Peito cheio, aliás. “Gente, não é cabra forte, é clava forte”. Nunca me esclareceram tampouco o que seria a tal da “clava”.

Realmente, tinha de dar confusão. O Hino já começa com controvérsia. “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”. Prato cheio para professor de português que quer pegar aluno em análise sintática. Então. Uma das minhas diversões é ver quem sabe o que vem primeiro “Brasil, um sonho intenso, um raio vívido” ou “Brasil, de amor eterno seja símbolo”. Diga aí.

Eu não entendo de direito. Mas não sou estúpido para perceber a estupidez da ação. No entanto, é importante ouvir algumas argumentações de George Marmelstein. “O caso retrata com perfeição aquilo que se costuma chamar de ‘dimensão objetiva’ dos direitos fundamentais, a exigir que toda interpretação jurídica leve em conta os valores jusfundamentais, ainda que a solução aparentemente seja contrária ao que determina a lei. Pode-se chamar esse mesmo fenômeno de ‘eficácia irradiante’ dos direitos fundamentais ou então de ‘filtragem constitucional’. No fundo, é tudo a mesma coisa: a lei deve ser interpretada em conformidade com os direitos fundamentais, pois não são os direitos fundamentais que devem girar em torno da lei, mas a lei que deve girar em torno dos direitos fundamentais, conforme dizia Krüger.”

A estória que o Portal Pirata conta é que o Ministério Público Federal não concordou com a iniciativa e entrou com uma ação na justiça contra a apresentação do Hino Nacional em ritmo de forró. Daí, em setembro de 2007, o juiz federal José Eduardo de Melo Vilar Filho autorizou a gravação e execução da versão.

Você diria: certo o juiz. Errado o cronista que está perdendo tempo com esse assunto. E o Ministério Público? Cheguei a procurar na Internet a estória completa. Principalmente a razão para o Ministério Público entrar com tal ação.

Como diria aí um bom e útil lugar-comum “tanta coisa errada por aí” e o pessoal vai se incomodar justamente com uma banda executando o Hino Nacional em ritmo de forró? Não encontrei, mas quero crer que aquele órgão tenha sido provocado. Se não, deu um surto de anacronismo. Tem coisas na filosofia (ou mesmo na matemática) que você chama de “provar pelo absurdo”. Ou seja, mostrou-se a absurdidade da proposta de não se executar o Hino Nacional em um ritmo mais nacional do que o forró.
Escrito por Allan Kardec Barros às 09/04/2008"

Unknown disse...

Seja o hino nacional tocado da maneira oficializada, seja pela Fafá, seja em ritmo de forró, todos percebemos tratar-se do hino nacional, pois há uma essência mantida que o identifica como ritmo nacional e desperta em nós a âncora patriótica e de identificação. A identificação se dá por determinados aspectos musicados que nos trazem a identificação do hino. Penso que é essa unidade que se deve preservar, de forma que um ritmo em forró não caracteriza um novo hino.

Clodoaldo

Anônimo disse...

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