segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Direitos Fundamentais e Frustração Constitucional

Ser professor de direitos fundamentais, aqui no Brasil, é dureza. Afinal, parece que o que a gente ensina só existe nos contos de fadas. O aluno lê a Constituição e não consegue perceber qualquer sintonia com o mundo real, tal é o contraste entre a beleza do texto constitucional e a triste realidade brasileira.
Veja que coisa engraçada: em um estudo elaborado por dois juristas de Israel, que analisaram o texto constitucional de dezenas de países, a Constituição brasileira foi considerada a segunda melhor em matéria de direitos sociais, perdendo apenas para a Constituição de Portugal. Apesar disso, o Brasil ocupa a vergonhosa 69ª colocação no ranking elaborado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que mede o “índice de desenvolvimento humano” (IDH). Curiosamente, o IDH inclui aspectos como mortalidade infantil, concentração de renda, analfabetismo, pobreza, desnutrição etc., ou seja, todas as carências básicas que os direitos sociais se propõem a combater!
De que adianta uma Constituição tão boa se ela não é aplicada?
Dentro desse contexto, surge o chamado sentimento de “frustração constitucional”, decorrente da falta de sinceridade das normas constitucionais que “invocam o que não está presente, afirmam o que não é verdade e prometem o que não será cumprido” (BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 84). E junto com a frustração constitucional, vem um sentimento de desânimo, que enfraquece a luta em prol da efetivação das normas constitucionais.
Pensando nisso, escrevi o texto abaixo para tentar estimular os estudantes de Direito a acreditarem um pouco mais na nossa Constituição. Também devo incluir o texto na “Parte Zero” do Curso de Direitos Fundamentais.


Os Direitos fundamentais e a Vontade de Constituição: que tal uma Constituição pra valer?

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
Olavo Bilac – "Via Láctea"
No poema Via Láctea, acima transcrito, Olavo Bilac reproduz um diálogo muito interessante, no qual um dos interlocutores confessa abertamente que é capaz de conversar com as estrelas, enquanto o outro, mais cético, o chama de louco. Afinal, questiona o cético, “o que as estrelas dizem quando estão contigo”? A resposta do “tresloucado amigo” foi sensacional: “amai para entendê-las, pois só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e entender as estrelas”.
Com os direitos fundamentais ocorre a mesma coisa. Muita gente pode achar que as expressões dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, fraternidade etc. são palavras sem sentido, muito vagas e, portanto, sem qualquer significado prático. Geralmente quem diz isso não sente qualquer simpatia por esses direitos.
Uma correta compreensão dos direitos fundamentais exige uma crença na sua importância ética. Não há qualquer sentido em lutar por algo sem saber a razão pela qual se luta[1]. É preciso amar para entendê-los.
Para que os direitos fundamentais sejam efetivados, é necessário que a Constituição faça parte da vida dos indivíduos. Deve existir um dever de lealdade para com as normas constitucionais e a ordem de valores nela contida. Esse é o sentido da expressão “Constituição viva”, tão valorizada hoje em dia. Sem o compromisso político e o engajamento social, a Constituição não passará de uma folha de papel, como dizia Lassale[2].
Para que a Constituição ganhe vida e faça parte do dia a dia dos cidadãos, é preciso que exista um espontâneo “patriotismo constitucional”, de modo que a população tenha estima e respeito pelos valores consagrados constitucionalmente, independentemente de qualquer ideologia partidária[3].
E talvez seja justamente isso que falta no Brasil. Não há, infelizmente, um sincero e intenso “sentimento constitucional” [4] em torno dos direitos fundamentais. Entre nós, falta aquilo que Konrad Hesse chamou de “vontade de Constituição”, capaz de gerar uma ampla e popular adesão social em prol da luta consciente e mobilizada pela efetivação das normas constitucionais[5].
Lamentavelmente, o entusiasmo constitucional que ocorreu logo após a promulgação da Constituição de 88 foi rapidamente transformado em uma decepção constitucional, ante a ausência de um compromisso político sincero em cumprir os ambiciosos objetivos previstos pelo poder constituinte. Aqui, parece válida a canção do poeta Renato Russo: “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação. Que país é este?”
Vivemos em um perene estado de frustração constitucional[6], onde a democracia é apenas de papel, com cidadãos de papel e seus direitos de papel[7]. A Constituição é apenas uma ilusão[8], não passando de um grande latifúndio improdutivo[9].
A Constituição brasileira, infelizmente, ainda é apenas uma miragem: ao se olhar para o papel, tem-se a impressão de estar em um oásis, cheio de beleza e abundância. Porém, quando se voltam os olhos para a realidade, o que se vê é um deserto vazio e sem vida.
Parece que pesa sob a Constituição brasileira a maldição de Cassandra, a personagem mitológica que foi condenada a dizer sempre a verdade, embora ninguém acreditasse nela. Suas profecias eram verdadeiras, mas não possuíam crédito, de acordo com o castigo imposto por Apolo.
Esta triste realidade, porém, não deve desanimar os que acreditam nos valores humanistas previstos na Constituição brasileira. Pelo contrário. Deve estimular ainda mais a luta pela concretização das normas constitucionais para provar que o constituinte não estava errado quando positivou os direitos fundamentais. A hora não é de resignação ou de lamentação, mas de luta. Essa é a filosofia que orienta o presente trabalho.
É preciso que se diga que o papel das normas constitucionais não é apenas o de retratar a realidade, mas também de “fundamentar as esperanças”[10] do povo. Os direitos fundamentais são mesmo, em grande medida, um projeto para o futuro. Eles não são concretizados da noite para o dia como em um passe de mágica. A plena efetivação desses direitos é um processo complexo e progressivo, e, como diz Häberle, os princípios constitucionais devem estar a meio caminho entre o idealismo e a conexão com a realidade[11]. O constituinte deve ser como aqueles arqueiros que, quanto mais longe estão do ponto que desejam atingir, mais alto apontam seus arcos no intuito de acertar o alvo em cheio.
Espera-se que o presente Curso de Direitos Fundamentais resulte em algum efeito prático e possa, senão tornar a Constituição uma realidade, pelo menos conscientizar os estudantes da importância dos direitos fundamentais para que eles possam, na sua futura atividade profissional, tentar, dentro de suas possibilidades e limitações, efetivar ao máximo as normas constitucionais.
Referências

[1] Cf. ROBLES, Gregório. Os direitos fundamentais e a ética na sociedade atual. São Paulo: Manole, 2005, p. 4.
[2] LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
[3] Cf. GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 96.
[4] Sobre o sentimento constitucional, vale conferir VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
[5] Eis, nas palavras do próprio Konrad Hesse, o significado da já famosa expressão “vontade de Constituição”: “Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)” (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991, p. 19).
[6] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 84.
[7] DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel: a infância, a adolescência e os direitos humanos no Brasil. 19. ed. São Paulo: Ática, 2001.
[8] “Dá-se o nome de ilusão constitucional ao erro político, que consiste em ter como existente uma ordem normal jurídica, regulamentada, legal, numa palavra constitucional, mesmo quando essa ordem na verdade não existe” (FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 11).
[9] A sugestiva comparação da Constituição com um latifúndio improdutivo é de STRECK, Lênio Luiz. O papel da jurisdição constitucional na realização dos direitos sociais fundamentais, p. 199. In: Direitos Fundamentais Sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. (org. Ingo Wolfgang Sarlet). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 169-214.
[10] O termo é de Häberle: HÄBERLE, Peter. El estado constitucional europeo. In: Cuestiones constitucionales – revista mexicana de derecho constitucionale. México: UNAM, n. 2, 2002.
[11] HÄBERLE, Peter. El estado constitucional europeo. In: Cuestiones constitucionales – revista mexicana de derecho constitucionale. México: UNAM, n. 2, 2002.

2 comentários:

Angelita W. disse...

Olá,

Eu sou professora de direito constitucional e direitos humanos aqui em Salvador e, realmente, sempre digo aos meus alunos que é frustrante dar os ensinamentos teóricos para eles e saber que eles vão chegar em casa e ligar a tv ou abrir um jornal e ver como anda a realidade :/
Eu já utilizava alguns artigos seus com os alunos. Mas não sabia da existência do blog. Agora que sei, certamente vou aproveitar ainda mais. Gosto muito da sua linguagem, e eles também :)

Eu tenho esse blog de poesias que não tem nada a ver com direito, mas, com o tempo, pretendo fazer uma página pessoal também, para ver se divulgo pensamentos interessantes sobre direito. Vou inspirar-me no seu :)

Abraços,
Obrigada por não contribuir com o "lugar-comum" que teima em fazer parte do direito atualmente.

Angelita

George Marmelstein disse...

Obrigado, Angelita.
A propósito, visitarei seu blog com certeza.
George