segunda-feira, 31 de março de 2008

Direitos Fundamentais e Quadrinhos: Sobre a "Guerra Civil" da Marvel


Amigo George,


nesta primeira postagem como colaborador do blog, não poderia escolher outro tema que não a "Guerra Civil" quadrinhística da qual falamos no último fim de semana.

Embora lamentavelmente poucos apreciem a chamada "Nona Arte" em nosso país, esse memorável arco de estórias faz por merecer nossa atenção. Não somente por bater recordes de vendas, repetindo o que já havia ocorrido quando de sua publicação original, nos EUA; mas porque sua
questão central não é nada menos que a lei restringindo direitos fundamentais - ou, como preferem os ianques, "liberdades civis".


Breve resumo: um grupo de super-heróis, atuando em um reality show, inadvertidamente provoca uma tragédia ao combater certo vilão. 600 pessoas perdem a vida, a grande maioria crianças, o que revolta a opinião pública e motiva o Congresso americano a aprovar, com rapidez inaudita, uma lei obrigando todos os heróis a "se registrar" perante o Governo. Isto significa que deverão, em nome da segurança pública, apresentar seus verdadeiros nomes, endereços, poderes, etc. A "comunidade super-heróica", então, se divide entre aqueles que decidem cumprir a lei e os que resolvem combatê-la.


Para nós, estudiosos de direitos fundamentais, é sempre interessante quando o tema é abordado na cultura pop. Para mim em especial, pois como fã de longa data do mundo dos quadrinhos foi sensacional ver uma discussão jusfundamental ocupar o núcleo central de uma trama que já fez história neste segmento. Seus autores não se limitaram a colocar os heróis para lutar entre si: fizeram com que eles discutissem intensamente até que ponto seria "proporcional" restringir o valor jurídico liberdade, bem como a proteção da esfera íntima de privacidade, em nome de outro valor jurídico - no caso, a segurança. Ou seja, uma colisão entre direitos fundamentais. O slogan da série bem o sintetiza: "what side are you on"?


Na minha modesta opinião, o Capitão América está certo: a Lei de Registro não passa por um teste de proporcionalidade. E você, "de que lado está"?



Links interessantes:
http://www.guerracivil.com.br/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Civil_(Marvel_Comics) http://www.omelete.com.br/conteudo_colunas.aspx?id=100003269&secao=colunas


Upgrade (por George Marmelstein)

Prezados leitores,


iniciando uma nova fase do blog, seguindo a tendência "colaborativa" caracteriza a web 2.0, pedi a ajuda de um grande amigo para animar esse humilde espaço virtual. O Professor Adriano "Drica" Costa irá, a partir de agora, contribuir com seus vastos conhecimentos jurídicos e gerais para dar uma maior pluralismo de idéias nas postagens.

Apesar de o foco continuar a ser os direitos fundamentais, Drica certamente tem muito a acrescentar, até porque sua área de pesquisa acadêmica e profissional é o direito privado (argh!), o que não domino muito bem. Aliás, sua dissertação de mestrado foi sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Não bastasse, Drica possui uma cultura geral inigalável. São poucos que, como ele, dominam áreas do saber que inclui esportes, política, geografia, cotidiano, artes, variedades, entreternimento, ciência natural; enfim, todas as matérias daquele jogo "Master".

E o post inaugural não poderia ser melhor. Afinal, em que outro lugar se fará uma análise tão "jurídica" de um quadrinho?













Um tapinha que doeu

Lendo a Migalhas 1.867 me deparei com a notícia abaixo, que, por sinal, me lembrou o post "Um tapinha não doí", que escrevi ano passado.

Particularmente, acho meio exagerado esse tipo de censura musical.

Quantas músicas belíssimas não seriam censuradas se a mesma lógica fosse utilizada?

Eis a notícia:
A multa dói


Furacão 2000 é condenada ao pagamento de multa no valor de 500 mil reais pelo lançamento da música "Um Tapinha Não Dói"


A empresa Furacão 2000 Produções Artística Ltda foi condenada pela Justiça Federal ao pagamento de multa no valor de 500 mil reais pelo lançamento da música "Um Tapinha Não Dói", no início desta década. A ação civil pública foi ajuizada pelo Ministério Público Federal e pela Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, em janeiro de 2003, por considerar que a música banaliza a violência contra a mulher, transmite uma visão preconceituosa contra a imagem da mesma, além de dividir as mulheres em boas ou más conforme sua conduta sexual.


Na inicial da ação civil pública, o então procurador Regional dos Direitos do Cidadão Paulo Gilberto Cogo Leivas afirmou que "esse tipo de música ofende não só a dignidade das mulheres que comportam-se de acordo com o descrito em suas letras, mas toda e qualquer mulher, por incentivar à violência, tornarem-na justificável e reproduzirem o estigma de inferioridade ou subordinação em relação ao homem".


Conforme decisão do juiz substituto Adriano Vitalino dos Santos, da 7ª Vara Federal de Porto Alegre, o valor da multa será revertido em favor do Fundo Federal de Defesa dos Direitos, conforme estabelece a Lei 7.347/85. A quantia deverá ser monetariamente atualizada, acrescida de juros. A empresa ainda pode recorrer da decisão em instâncias superiores.


"Vamos recorrer"


A equipe de som Furacão 2000 vai recorrer da decisão da Justiça que multa a produtora em R$ 500 mil pelo lançamento da música "Um Tapinha Não Dói". "Voltou à censura ?", questiona Rômulo Costa, dono da Furacão, que não acha justa a decisão.


"Acho injusto. Isso é cercear a nossa liberdade, não poder colocar as pessoas para cantar. É um precedente muito sério", reclama ele, que diz ainda que não tem condições financeiras de pagar a multa.


"Com juros e correção, o valor pode chegar a quase R$ 1 milhão. Não teríamos condições de arcar com isso. Se tivesse esse dinheiro, parava de trabalhar", diz.

Trecho da música

Um Tapinha Não Dói - Gravadora Furacão 2000


Vai Glamurosa
Cruze os braços no ombrinho
Lança ele prá frente
E desce bem devagarinho...
Dá uma quebradinha
E sobe devagar
Se te bota maluquinha
Um tapinha eu vou te dar

Porque:
Dói, um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Só um tapinha..
Vai Glamurosa
Cruze os braços no ombrinho
Lança ele prá frente
E desce bem devagarinho...

domingo, 30 de março de 2008

Mais um pouco de filosofia barata do direito: a teoria das maçãs

Este post tem dois objetivos: testar um novo sistema de comentários que descobri (intense debate) e brincar um pouco com a teoria jurídica através de uma metáfora meio maluca. Gostaria particularmente de um feedback quanto ao sistema de comentários, que se tornou mais "dinâmico", ou seja, totalmente web 2.0. (UPGRADE: SISTEMA DE COMENTÁRIOS NÃO-APROVADO).

Com relação ao texto propriamente dito, é inegável que o uso de metáforas como recurso didático é válido, mas perigoso, pois acaba simplificando demais algo que é muito mais complexo.

Mesmo assim, acredito que a idéia que vou desenvolver vai permitir que se perceba as diferenças básicas entre o positivismo kelseniano e o chamado pós-positivismo (positivismo ético).

Não sei se essa analogia é original ou não. Particularmente, depois da internet, vi que é praticamente impossível ser 100% original. De qualquer modo, não lembro de ter lido a "teoria das maçãs" em lugar nenhum, nem mesmo com outros nomes semelhantes. Por isso, dou-me o crédito até que alguém descubra um dinamarquês formado na França que escreveu um artigo em 1985, publicado em Alemão numa revista inglesa, que tenha pensado algo semelhante....

Pois bem... O Direito (ordenamento jurídico) é uma árvore de maçãs, e a norma jurídica é uma maçã... É assim que começa nosssa estória.

A Teoria das Maçãs

Por George Marmelstein, Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional
http://georgemlima.blogpost.com

A Teoria das Maçãs sob o ponto de vista de Kelsen

Para Kelsen, o papel do cientista do direito (jurista) é colher as maçãs que estão na árvore e estão prontas para consumo, colocando-as em um caixote. O critério dessa seleção deve ser totalmente técnico-científico: o colhedor analisa aquelas maçãs que podem ser consumidas e ponto final. Não cabe a ele discutir o sabor da fruta. As frutas mais ácidas e as mais amargas, desde que estejam prontas para consumo, podem ser colocadas no caixote.

Não cabe ao jurista se preocupar com a plantação da árvore, nem como a fase de adubação, de poda, enfim. O papel do jurista, como se disse, limita-se a colocar as frutas na caixa. Todo o resto do processo não interessa à ciência do direito.

Nesse processo, o juiz tem um papel diferente. O juiz deverá escolher, entre aquelas maçãs que foram previamente colocadas no caixote pelos juristas, aquela que será de fato consumida. A escolha do juiz é, de certo modo, arbitrária, no sentido de não ser possível verificar os critérios racionais utilizados pelo juiz para fazer aquela escolha. É um ato de vontade, que não interessa ao jurista.

Um ponto básico para compreensão dessa teoria (pura) das maçãs é que o sabor da fruta não deve ser levado em conta nem pelo jurista nem pelo juiz. Se a maçã estiver pronta pra consumo, deve ser consumida sem questionamentos.

A Teoria das Maças sob a ótica do pós-positivismo

Com o pós-positivismo, o consumidor das maçãs se tornou mais exigente, pois, em algumas situações, foram oferecidas maçãs muito amargas, que deixaram muitas pessoas com fome ou passando mal, já que não conseguiram comer uma fruta tão ruim. Por isso, resolveu-se submeter as maçãs a um controle de qualidade mais rígido. Somente as maçãs que passassem por esse teste de qualidade poderiam ser colocadas no caixote. Esse teste de qualidade incluiu um padrão de sabor: somente aquelas frutas mais saborosas deveriam ser selecionadas. Na teoria jurídica, esse padrão de qualidade é ditado pelos direitos fundamentais.

O papel do jurista também se transforma substancialmente. Percebeu-se que aquele que vai colher as frutas na árvore e colocá-las no caixote também é, no final das contas, consumidor. Logo, é natural que ele seja tendencioso nessa escolha para colocar no caixote apenas aquelas maçãs que, segundo o seu gosto pessoal, sejam saborosas. E aqui a Comissão de Qualidade Total, aquela mesma que impôs um critério de qualidade para que as frutas amargas e ácidas não sejam consumidas, exige um relatório substancioso daquele que colhe as maçãs para que ele diga quais foram os critérios que utilizou para selecionar as frutas.

As frutas estão mesmo adequadas para serem consumidas? As frutas já estão amadurecidas o suficiente? As frutas possuem os nutrientes necessários e indispensáveis para satisfazer o consumidor? Esse novo agrotóxico utilizado não poderá causar danos à saúde das pessoas? E assim por diante... No direito, esses critérios são conhecidos como "princípio da proporcionalidade".

O mesmo relatório é exigido do juiz, ou seja, daquele vai retirar as frutas da caixa para oferecer ao consumidor. Além de ter que justificar objetivamente a sua escolha, o juiz terá que ouvir a opinião dos consumidores antes de tomar uma decisão. Vai ouvir também nutricionistas, agrônomos, médicos, que lhe darão um suporte técnico para que a decisão seja a mais correta possível. Muitos defendem que o juiz pode escolher, inclusive, outras maçãs além daquelas que foram colocadas no caixote, mas nem todos pensam assim.

Durante todo esse processo, que vai desde a plantação da árvore até o consumo das maçãs, o consumidor é uma peça-chave. É ele quem vai escolher o adubo, o tipo do maçã, o tamanho das maçãs, enfim, cabe a ele as escolhas mais importantes. E como o jurista e o juiz ao mesmo tempo são consumidores (!) também eles participam desse processo...

A grande dificuldade nessa nova técnica de produção é definir os critérios objetivos para tornar o controle de qualidadade mais claro e menos subjetivo. Os gostos pessoais não são uniformes. Por isso, há muita controvérsia sobre quem deve dizer o que passa e o que não passa pelo controle de qualidade. Em regra, a opinião da maioria dos consumidores deve prevalecer. No entanto, essa vontade não pode ser exercida ao ponto de prejudicar aqueles consumidores minoritários que possuem gostos diferentes. Ainda não se sabe quem deve proteger esses consumidores que estão em minoria. Por equanto, essa questão ainda não foi totalmente definida pelo pós-positivismo, embora exista uma tendência de se permitir aos juízes (re)fazerem essa escolha, desde que justifiquem racionalmente a sua decisão. Ou seja, o controle de qualidadade não é um momento único dentro do processo. Todos devem exercer esse controle, desde aquele que planta a árvore, passando por aquele que colhe as frutas, passando por aquele que escolhe a maçã para o consumo, chegando finalmente ao consumidor, que deve reclamar quando a mação não estiver tão saborosa quanto ele merece.

Eis, em síntese, a teoria das maçãs...

O que acharam?

George Marmelstein

quinta-feira, 27 de março de 2008

O texto consolidado

Reuni os textos e os transformei no artigo abaixo.

Se tiver interesse em uma versão para impressão (em doc), basta clicar aqui.

O que acham?



Políticos Corruptos, Políticos Bandidos e Políticos Perseguidos: a presunção de não-culpabilidade e a moralidade eleitoral

Por George Marmelstein,
Juiz Federal no Ceará e Professor de Direito Constitucional

Existe uma intensa polêmica, ainda em aberto na jurisprudência, sobre a possibilidade de a Justiça Eleitoral indeferir o registro da candidatura de um político com base na existência de indícios da prática de crimes pelo pré-candidato, ainda que não haja qualquer sentença penal condenatória transitada em julgado.


No julgamento do chamado Caso Eurico Miranda, o Tribunal Superior Eleitoral, por 4 a 3, entendeu que a Justiça Eleitoral não poderia indeferir o registro da candidatura do conhecido cartola do Vasco da Gama, já que os diversos processos criminais instaurados contra ele ainda não teriam transitado em julgado (TSE, RO 1.069/RJ, rel. Min. Marcelo Ribeiro, j. 20/9/2006).


O julgamento em favor de Eurico Miranda não significa dizer que a questão está pacificada. Pelo contrário. Basta que um único ministro do Tribunal Superior Eleitoral mude de posicionamento para que o quadro se inverta. E como a jurisprudência eleitoral é bastante dinâmica, a discussão torna-se mais atual do que nunca, sobretudo diante das conseqüências desastrosas que esse entendimento resultou nas eleições de 2006 quando pessoas sem o mínimo de idoneidade ética obtiveram uma cadeira no parlamento.


Diante disso, analisarei a questão, apresentando novos argumentos capazes de justificar uma mudança de posicionamento no entendimento firmado no “Caso Eurico Miranda”.


Parto do princípio de que nenhum cidadão minimamente consciente do significado de democracia e de república se conforma com o fato de haver no parlamento políticos totalmente inescrupulosos defendendo interesses ocultos "em nome do povo".


Não é razoável que uma pessoa sobre a qual pairam sérias dúvidas quanto à sua honestidade possa se candidatar a um cargo político. Esse sentimento de indignação se intensifica ainda mais quando a "suspeita" é de desvio de verbas públicas que, no final das contas, irá servir justamente para financiar a campanha eleitoral desse político! E para reforçar a revolta popular, esses mesmos políticos ainda têm a cara de pau de confessarem que receberam verbas ilícitas sob a esfarrapada desculpa de quitarem suas "dívidas de campanha". Ou seja: é um atestado indiscutível de que a sua vitória eleitoral foi uma fraude e que democracia representativa, pelo menos nessa ótica, é uma farsa e que se continuar assim a tendência é piorar...


Situação igualmente indignante é a dos políticos que são bandidos da pior espécie, ainda que não existam condenações transitadas em julgado. Quando um sujeito como um "Hildebrando Pascoal", que esquartejava suas vítimas, consegue uma cadeira no parlamento federal, isso significa que alguma coisa não está cheirando bem nesse processo eleitoral tupiniquim.


A idéia de que o político não apenas deve ser honesto, mas, sobretudo, deve parecer honesto, reflete bem essa intuição de que a existência de inquéritos e processos criminais pesa sim contra a candidatura.


Pois bem. Mas por enquanto ainda estou numa fase de mera "especulação intuitiva". É algo ainda muito sensitivo, dentro do "imaginário popular", inconsciente, meio irracional mesmo... É o que se pode chamar de “feeling”.


Esse “feeling” não tem qualquer importância para o direito se não encontrar um respaldo no ordenamento jurídico. A finalidade do direito não é apenas satisfazer os anseios de justiça do povo, custe o que custar. A finalidade do direito é fazer justiça com legitimidade. E a legitimidade deve ter como base principal o ordenamento jurídico constitucional.


Por isso, é preciso submeter esse “feeling” a um pesado teste de consistência, procurando encontrar, no sistema normativo, qualquer fundamento que possa derrubá-lo. Se não houver compatibilidade entre esse sentimento de justiça e a Constituição, então ele não merece prevalecer.


Basicamente, existem quatro argumentos principais utilizados para defender que a mera existência de processos criminais ainda não concluídos não podem servir como base para o indeferimento de registro de candidatos a cargos políticos: (a) o princípio da presunção de não-culpabilidade; (b) a ausência de previsão legal ou constitucional contemplando essa hipótese de inelegibilidade; (c) a possibilidade de uso político da Justiça Criminal; (d) a capacidade do povo de censurar “nas urnas” os políticos desonestos.


Por isso, vou dividir a análise em quatro partes, começando com o princípio da presunção de não-culpabilidade.



Princípio da Presunção de Não-Culpabilidade



Um dos pilares do Estado Democrático do Direito é o princípio segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (art. 5º, inc. LVII, da CF/88). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, também contemplou esse valor como uma idéia universal ao dizer no artigo 11 que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. Por sua vez, o Pacto Internacional de San Jose da Costa Rica, de 1966, estabelece que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.


O princípio da presunção de não-culpabilidade é, sem dúvida, um argumento forte contra o indeferimento da candidatura de políticos suspeitos, mas que, a meu ver, pode ser facilmente vencido.


Esse princípio, por mais importante que seja (e é mesmo!), não tem essa força de “fingir que nada está acontecendo” durante o período em que uma pessoa está sendo investigada ou processada criminalmente. A existência de razoável suspeita da prática de crime pode ser sim invocada para limitar determinados direitos fundamentais, embora sempre excepcionalmente.


Imagine, por exemplo, a seguinte situação hipotética: um respeitável senhor de 40 anos de idade, bem conceituado perante a comunidade, é preso em flagrante pela prática de pedofilia. Em seu computador pessoal, a polícia encontrou inúmeras fotos em que esse senhor participava de orgias sexuais envolvendo crianças e adolescentes. Por ironias do processo penal, foi reconhecido o seu direito de responder ao processo criminal em liberdade.


Digamos que, nesse ínterim, ainda sem qualquer denúncia recebida, esse senhor resolve participar de um concurso público para o cargo de professor de uma escola infantil e consegue ser aprovado em primeiro lugar. Você, sendo o diretor da escola, daria posse a esse sujeito?


Creio que, por mais que se esteja cometendo uma injustiça com esse senhor, já que, no final, ele pode ser considerado inocente, há uma forte razão para impedi-lo de exercer aquela profissão, pelo menos enquanto não for esclarecida a questão. E esse esclarecimento não precisa aguardar o trânsito em julgado do processo penal. Pode ocorrer até mesmo em um processo administrativo, em que o suposto pedófilo irá apresentar sua defesa, contando sua versão para os fatos, dentro do devido processo. Se a autoridade administrativa se convencer dos seus argumentos, pode contratá-lo mesmo sem uma resposta da Justiça Penal. Nesse caso, diante da ausência de condenação ou de absolvição, a responsabilidade criminal não interfere na responsabilidade administrativa.


E para não parecer que o exemplo é meramente retórico, por envolver um crime que abomina a sociedade, pode-se dizer que o mesmo raciocínio se aplica a um caso, por exemplo, de um candidato a um cargo público de motorista que esteja respondendo a vários processos criminais por crimes de trânsito ainda que nenhum deles tenha transitado em julgado. A Administração Pública, certamente, poderá verificar as circunstâncias em que os crimes foram cometidos, as alegações de defesa sustentadas pelo candidato e, num juízo prévio, verificar se há plausibilidade dos argumentos apresentados. Diante disso, pode formular seu próprio juízo - logicamente não vinculante para a instância criminal - e concluir se o candidato preenche os requisitos para o cargo.


Diante disso, não se pode concordar totalmente com a tese de que nenhuma restrição a direito pode ocorrer enquanto o processo penal não chegar ao fim com uma sentença judicial condenatória definitiva.


Um servidor público pode sofrer sanções administrativas e até mesmo perder o cargo, antes de qualquer condenação criminal, bastando que a Administração obedeça ao devido processo administrativo disciplinar. Um estrangeiro pode ser expulso ou deportado do país, independentemente da apuração da conduta na esfera criminal, caso pratique um ato que autorize essas medidas. Uma empresa acusada de praticar crimes ambientais poderá ter a suas atividades embargadas, na via administrativa, embora não exista qualquer processo criminal concluído e os exemplos se seguem...


Essas situações ocorrem com extrema freqüência e não representam qualquer violação ao princípio da presunção de inocência. Há uma razão bastante simples para isso: há duas instâncias diferentes que, em regra, não se comunicam. Ou seja, a instância administrativa e a instância penal correm “em paralelo”, podendo até mesmo gerar resultados diferentes, já que a configuração da responsabilidade penal exige uma comprovação mais intensa da autoria e da materialidade do delito.


Se ninguém pudesse sofrer qualquer sanção administrativa disciplinar enquanto o processo criminal não fosse concluído para apurar os mesmo fatos, então responder a um processo penal seria algo vantajoso, já que imunizaria a pessoa contra qualquer interferência administrativa até o demorado trânsito em julgado.


No fundo, o princípio da presunção da inocência não tem muito a ver com a questão ora debatida. Ninguém está dizendo que um determinado candidato é culpado por responder a inquéritos policiais ou a processos penais. Trata-se tão somente de se exigir um requisito mínimo de idoneidade moral “a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato”, conforme prevê a própria Constituição (art. 14, §9º da CF/88).


Vários cargos públicos exigem requisitos semelhantes para investidura, como a própria magistratura. Pode ter certeza de que um advogado que tenha sido expulso da OAB pela prática de inúmeras infrações éticas dificilmente será aceito em um concurso para a magistratura, mesmo que não existam processos criminais contra ele. Vida pregressa não se confunde com condenação criminal. Aliás, o Ministro Marco Aurélio, que é um dos mais ardorosos defensores da tese de que qualquer pessoa pode se candidatar a cargos políticos enquanto não houver trânsito em julgado da sentença penal condenatória, já aceitou que o levantamento da vida pregressa de candidato para o cargo de investigador de polícia levasse em conta fatores meramente indiciários, como o testemunho de dois outros policiais e um inquérito por posse de droga arquivado por falta de provas (STF, RE 15640/SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. 5/9/1995).


A Justiça Eleitoral, quando aprecia pedidos de registro de candidaturas, está exercendo uma atividade semelhante à de uma comissão de concurso ao analisar a vida pregressa dos candidatos a cargos públicos, com a diferença que os atos são praticados por membros do Judiciário, com muito mais garantias, mais transparência, mais debates, mais aprofundamento quanto à verdade dos fatos, já que a profissão do juiz o habilita a se aproximar da verdade real com muito mais técnica.


Portanto, há duas instâncias completamente diferentes: a instância criminal e a instância eleitoral. No caso, enquanto não houver qualquer condenação ou absolvição na esfera penal, não há comunicação de instância, ou seja, a responsabilidade penal não interfere na responsabilidade eleitoral.


Por isso, o que está havendo nessa discussão é um "jogo de palavras", onde o princípio da presunção de inocência está sendo manipulado para “blindar” os candidatos a cargos políticos.


Se for perguntado “é justo que uma pessoa sobre a qual pairam meras suspeitas de que praticou ilícitos seja impedida de se candidatar a um cargo político, sabendo que um dos pilares do Estado de Direito é o princípio da presunção de inocência?”, certamente a resposta será negativa.


Por outro lado, se for perguntado “é justo que uma pessoa nitidamente criminosa/corrupta/bandida/desonesta, com fortes indícios de que cometeu crimes graves, possa se candidatar a um cargo político, usando inclusive as verbas obtidas ilicitamente para financiar a sua campanha?”, certamente também a resposta será negativa!


Por isso, a pergunta correta, para que não haja um direcionamento na resposta, é a seguinte: a Justiça Eleitoral pode julgar se um pré-candidato tem as qualificações éticas mínimas necessárias para ocupar um cargo político?


E com isso, a questão da presunção de inocência deixa de ser o foco principal da controvérsia, pois ninguém discute que é um absurdo que uma pessoa seja considerada culpada sem uma condenação definitiva. Mais uma vez, deve ser enfatizado: o requisito de “idoneidade moral” não significa uma “ficha criminal limpa” e sim a ausência de indícios objetivos capazes de justificar o indeferimento da candidatura. São instâncias independentes. Logo, nada impede que, respeitado o devido processo, a Justiça Eleitoral verifique se há base fática suficiente para indeferir o pedido da candidatura, ainda que não exista qualquer sentença condenatória definitiva.


Essa independência de instâncias – criminal e eleitoral – pode ser ilustrada citando o caso do ex-Presidente da República Fernando Collor.


Collor, pelos mesmos fatos, respondeu a um processo político-criminal perante o Congresso Nacional e um processo exclusivamente criminal perante o Supremo Tribunal Federal. Collor foi punido pelo Senado Federal e perdeu seus direitos políticos antes de o processo criminal ter sido concluído. E o mais interessante, é que, no STF, o ex-Presidente foi absolvido por falta de provas, demonstrando, inclusive, que os critérios de formação da convicção para o julgamento são diferentes, exigindo-se um grau de certeza bem mais elevado para justificar uma condenação criminal.


Se o princípio da presunção de inocência fosse interpretado de modo a impedir qualquer restrição de direitos antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o Senado Federal teria que aguardar o julgamento criminal para poder punir o ex-Presidente, o que seria um flagrante absurdo, ante a independência entre as instâncias em questão.


Uma conclusão diferente transformaria o princípio da presunção de não-culpabilidade em um escudo ou uma blindagem instransponível para a imunidade na esfera não-criminal, já que, geralmente, o processo penal é mais demorado, até para que se atinja um grau maior de certeza da culpa. Certamente, não foi intenção do constituinte, ao positivar o princípio da presunção de inocência, permitir que pessoais sem escrúpulos se candidatem a cargos políticos visando precisamente se beneficiar das "imunidades" e do "poder de influência" que o cargo proporciona para satisfazer a interesses pessoais.


Outro ponto importante que será explicado com mais profundidade ao longo deste estudo é o seguinte: a existência de processos ou inquéritos criminais - ou mesmo ações de improbidade administrativa! - não obriga que a Justiça Eleitoral indefira o registro de candidaturas. Apenas autoriza, melhor dizendo, serve como base para que esse registro não seja deferido, diante de indícios razoáveis de falta de idoneidade moral. Dito de outro modo: não é a mera existência de inquéritos ou processos que deve ser o fator preponderante para o indeferimento do registro, mas a demonstração objetiva de que falta ao candidato uma postura ética compatível com a atividade parlamentar. Esse é ponto-chave de todo o raciocínio que será desenvolvido. Antes, porém, vale analisar o fundamento normativo que justifica a tese ora defendida.



Ausência de Previsão Legal ou Constitucional



Outro argumento bastante convincente é a alegação de que não há qualquer previsão legal ou constitucional dando à Justiça Eleitoral o poder para indeferir candidaturas com base em processos ou inquéritos criminais sem o trânsito em julgado. Sustenta-se que a Lei Complementar 64/90 é bastante enfática ao dizer que são inelegíveis os “os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena” (art. 1º, inc. I, “e”).


Logo, de acordo com essa lógica, somente poderiam ser considerados como inelegíveis os candidatos que estivessem enquadrados exatamente nessa situação, o que não é o caso daqueles que ainda não foram condenados na esfera criminal.


Aliás, esse foi o argumento principal acolhido, pelo Tribunal Superior Eleitoral, por uma apertada maioria de 4 contra 3, para autorizar o pedido de candidatura do Presidente do Vasco da Gama, Eurico Miranda, que respondia a inúmeros processos criminais, inclusive com algumas condenações em primeira instância, embora nenhuma sentença transitada em julgado.


Na ementa do acórdão, ficou registrado que “na ausência de lei complementar estabelecendo os casos em que a vida pregressa do candidato implicará inelegibilidade, não poderá o julgador, sem se substituir ao legislador, defini-los” (TSE, RO 1.069/RJ, rel. Min. Marcelo Ribeiro, j. 20/9/2006).


Esse argumento tem dois “furos”.


O primeiro é mais “polêmico”, pelo menos para uma visão tradicionalista do direito: por mais que não exista autorização legal, a Constituição Federal é norma jurídica, de modo que o julgador pode decidir com base unicamente no texto constitucional. Logo adiante, esse ponto será explicado com detalhes.


O segundo é mais convincente para os tradicionalistas: mesmo que a norma constitucional fosse meramente “programática”, não “auto-aplicável”, conforme prevê a súmula 13 do TSE (“não é auto-aplicável o § 9º, Art. 14, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão nº 4-94”), há uma autorização legal contida no artigo 23 da Lei Complementar 64/90, que daria suporte à tese de que a Justiça Eleitoral pode indeferir o registro de candidatura “pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.


Vamos ao primeiro ponto.


Hoje, é pacífico o entendimento de que a Constituição Federal é norma jurídica e, como tal, tem a força de estabelecer comandos obrigatórios para os diversos órgãos do poder público mesmo na ausência de leis. Esse entendimento ficou bastante nítido quando o Supremo Tribunal Federal, na ADC 12/2005, considerou como constitucional a resolução contra o nepotismo no Judiciário, elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No referido julgamento, ficou claro que não apenas a lei em sentido formal, mas também a Constituição pode emitir ordens normativas direcionadas à atividade pública, de modo que o CNJ, com base unicamente nos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, previstos no artigo 37 da CF/88, poderia editar ato normativo secundário (resolução) proibindo a contratação de parentes de magistrados para cargos no Poder Judiciário.


O mesmo raciocínio se aplica igualmente, e com muito mais razão, à Justiça Eleitoral, que também pode extrair diretamente da Constituição obrigações a serem observadas, de forma vinculante, pelos participantes do processo eleitoral. Isso ocorreu de modo particularmente visível quando o Tribunal Superior Eleitoral editou resolução obrigando a “verticalização partidária”, bem como, no ano passado, regulamentou, por resolução, a chamada “fidelidade partidária”, prevendo, inclusive, hipóteses de perda do mandato parlamentar. Em ambos os casos, a fonte normativa que embasou a edição das resoluções foi, sobretudo, a Constituição Federal, inclusive a abstrata cláusula constitucional do “Estado Democrático de Direito”. E, em ambos os casos, o Supremo Tribunal Federal validou o entendimento adotado pelo TSE (no caso da verticalização: STF, ADIn 2.626-DF e ADIn 2.628-DF, rel. orig. Min. Sydney Sanches, red. para o acórdão Ministra Ellen Gracie, 18.4.2002; no caso da fidelidade partidária: STF, MS 26603/DF, rel. Min. Celso de Mello, 3 e 4.10.2007).


Dito isso, já se pode concluir que a Justiça Eleitoral poderia, em tese, retirar diretamente da Constituição uma autorização para indeferir o registro de candidaturas, desde que existisse um comando normativo nessa direção. E há efetivamente. Aliás, o comando normativo é muito mais detalhado do que o genérico princípio da moralidade e da impessoalidade, invocado no caso do nepotismo, e do Estado Democrático de Direito, invocado no caso da fidelidade partidária.


A Constituição Federal de 1988 estabelece, com bastante nitidez, que “lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (art. 14, §9º).


Para justificar a imediata aplicação dos princípios estabelecidos na referida norma constitucional, é preciso se alongar um pouco, até para tentar afastar a teoria da aplicabilidade das normas jurídicas elaborada por José Afonso da Silva.


De início, é preciso que se diga que a referida norma encontra-se no Título II da Constituição, que é intitulado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Trata-se, portanto, de uma norma ligada aos direitos fundamentais, especialmente aos direitos políticos.


Todos os direitos fundamentais, por força do artigo 5º, §1º, da CF/88, possuem aplicação imediata. Logo, em hipótese alguma, uma norma definidora de direito fundamental pode deixar de ser concretizada pela ausência de lei, cabendo ao Judiciário tomar as medidas necessárias para que o direito não fique sem efetividade.


Dentro dessa idéia, adotando a conhecida classificação da aplicabilidade das normas constitucionais de José Afonso da Silva, os direitos fundamentais ou seriam normas constitucionais de eficácia plena e, portanto, capazes de produzir todos os efeitos essenciais nela previstos desde a sua entrada em vigor, ou seriam normas constitucionais de eficácia contida, isto é, estariam suficientemente regulamentadas pelo constituinte, mas seriam passíveis de restrições pelo parlamento. Em hipótese alguma, um direito fundamental poderia ser enquadrado como norma de eficácia limitada, já que essa espécie é justamente o oposto da idéia de aplicação imediata. Aliás, essa idéia foi defendida pelo próprio José Afonso da Silva, nas edições mais recentes do seu Curso de Direito Constitucional Positivo.


Não é minha pretensão construir uma nova teoria em torno da aplicabilidade das normas constitucionais, entre tantas outras existentes. Aqui, basta perceber que, atualmente, se reconhece que o Estado tem, em relação aos direitos fundamentais, o dever de respeitá-los (não violar o direito), protegê-los (não deixar que o direito seja violado) e promovê-los (possibilitar que todos usufruam o direito), independentemente de qualquer regulamentação infraconstitucional.


O dever de respeito, proteção e promoção, que é inerente a qualquer direito fundamental, impõe uma multiplicidade de tarefas ao poder público, de modo que a concretização plena dessas normas não se esgota em um mero agir ou não-agir do Estado. Logo, é possível que uma única norma seja, com relação a algum desses comandos, de eficácia plena, mas, em outros, seja de eficácia contida ou até mesmo limitada.


O artigo 14, §9, da CF/88, estabelece que “lei complementar estabelecerá outros casos...”. Seguindo a classificação tradicional de José Afonso da Silva, essa norma segue a mesma estrutura das normas de eficácia limitada, pois depende de uma regulamentação para adquirir plena efetividade. No entanto, essa conclusão se choca com o artigo 5º, §1º, da CF/88, que prevê a cláusula de aplicação imediata. Como então resolver esse conflito?


Alguns constitucionalistas sugerem, como forma de superar essa controvérsia, uma mitigação do sentido da cláusula de aplicação imediata. Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho chega ao ponto de afirmar que o art. 5º, §1º, da CF/88, seria destituído de qualquer significado prático, pois apenas poderiam ter aplicação imediata “as normas completas, suficientemente precisas na sua hipótese e no seu dispositivo, para que possam ter a plenitude da eficácia” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 296).


Essa solução, contudo, viola um princípio básico da hermenêutica segundo o qual não há palavras inúteis na Constituição. A cláusula da aplicação imediata tem sim uma importância prática extraordinária. Ela é a consagração expressa do princípio da máxima efetividade, que é inerente a todas as normas constitucionais, especialmente as definidoras de direitos. Ela é o reconhecimento formal por parte do constituinte de que os direitos fundamentais têm uma força jurídica especial e potencializada.


Portanto, quando se analisa uma norma como a contida no artigo 14, §9º, da CF/88, deve-se partir do princípio de que ela tem aplicação imediata, ainda que seu efeito principal dependa da atuação do legislador. Explicando melhor: a referida norma enuncia não um simples comando dirigido ao legislador, mas inúmeras ações e diretrizes a serem seguidas pelo Estado como um todo. Trata-se, em última análise, de uma cláusula geral de proteção da legitimidade ética das eleições. Essa cláusula terá aplicação imediata na medida em que impõe, desde logo, o dever de respeito, proteção e promoção da moralidade eleitoral, a ser observado por todos os agentes públicos, independentemente de qualquer regulamentação. O juiz eleitoral deve pautar suas decisões sempre com uma preocupação na moralidade. Esse dever não precisa, em regra, aguardar o legislador para gerar efeitos imediatos, ainda que o legislador tenha a obrigação de densificar, ou seja, regulamentar os pressupostos de validade da norma, para que ela alcance um grau máximo de efetividade. Enquanto o legislador não fizer isso, cabe ao Judiciário se pautar por essa diretriz imposta pela Constituição, agindo sempre pensando em dar a máxima efetividade à norma.


Com base nisso, pode-se dizer que a Justiça Eleitoral poderia perfeitamente invocar o artigo 14, §9º, da CF/88, para indeferir registro de candidaturas “a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.


E mesmo que se ache essa interpretação é “invencionice”, já que confere um poder muito grande para os juízes eleitorais sem o necessário suporte legislativo/democrático, pode-se lembrar que a Lei Complementar 64/1990, que regulamenta os casos de inelegibilidade, já prevê uma autorização semelhante. Trata-se, no caso, da autorização do artigo 23 redigida nos seguintes termos: “Art. 23. O Tribunal formará sua convicção [a respeito da inelegibilidade] pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.


Com base nisso, pode-se dizer que há duas situações completamente distintas de inelegibilidade previstas na LC 64/90: (a) a do artigo 1º, inc. I, “e”, que exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e (b) a do artigo 23, que não prevê um juízo criminal definitivo.


A primeira é vinculante e pode ser reconhecida por qualquer membro da Justiça Eleitoral, independentemente de requerimento. Já a segunda tem uma margem maior de discricionariedade, mas dependerá de requerimento para ser apreciada pela Justiça Eleitoral e será precedida de um processo mais longo, onde o contraditório e a ampla defesa ganharão uma dimensão bem mais abrangente do que na primeira situação.


No processo de impugnação de registro de candidatura, todos os documentos contidos nos inquéritos e processos criminais, ou mesmo nas ações de improbidade administrativa, até aqueles ainda não concluídos em definitivo, poderão ser “emprestados” para embasar a decisão da Justiça Eleitoral. A mera existência de processos e de inquéritos em andamento não justifica o indeferimento do registro. Será o conteúdo das provas e indícios apresentados nesses procedimentos criminais que justificará um eventual indeferimento da candidatura, cabendo à Justiça Eleitoral realizar a “livre apreciação” desse material, conforme determina o artigo 23 da LC 64/90. A decisão deverá ser consistente e bem fundamentada, devendo se pautar em dados objetivos que justifiquem o indeferimento do registro da candidatura.


Na análise desse requisito de idoneidade moral, a Justiça Eleitoral deverá sopesar todos os elementos que podem demonstrar a prática de atos antiéticos cometidos por esse candidato, ainda que não criminosos. Punições administrativas, condenações por parte dos tribunais de contas, ações de improbidade administrativa etc., tudo isso poderá ser levado em consideração. Logicamente, as acusações de práticas criminosas pesarão bem mais. E também poderão pesar em diferentes intensidades. Um mero inquérito em tramitação pesa menos do que uma denúncia recebida que pesa menos do que uma sentença condenatória, mesmo não transitada em julgado, que pesa menos do que uma sentença condenatória confirmada pela instância recursal, mas ainda passível de recurso extraordinário ou especial. Do mesmo modo, o teor das acusações deve ser levado em conta. Um crime de difamação praticado por um político não é tão grave quanto um crime de peculato que não é tão grave quanto um crime de homicídio e por aí vai... Finalmente, o tipo de prova também é um fator importante. Uma prisão em flagrante tem um peso considerável; uma escuta telefônica idem; uma confissão também; uma prisão cautelar declarada por um juiz criminal é um indício razoável de autoria e materialidade do delito... Enfim, são muitas variáveis a se pensar.


O magistrado eleitoral, ao realizar essa atividade ponderativa, que não é simples, deverá se pautar pelo princípio de que qualquer limitação de direito fundamental deve ser considerada como uma medida excepcional. Como a elegibilidade é um direito fundamental, somente diante de razões fortes que justifiquem o indeferimento do registro, o magistrado deverá adotar essa medida, impondo-se, nesse caso, um ônus argumentativo particularmente pesado, até para que se possa avaliar se o dever de coerência está sendo observado; afinal, ao se exigir que o magistrado manifeste expressamente quais os argumentos que o convenceram a tomar uma determinada decisão, pressupõe-se que, diante de um caso semelhante, em que os mesmos argumentos podem ser adotados, a solução não será diferente.


Dito isso, passa-se a uma questão bastante problemática: será que a Justiça Criminal não poderá ser utilizada apenas para fins de perseguição “político-eleitoral”, no intuito de justificar o indeferimento de registro de determinados candidatos que não possuam tanta influência nos corredores do Judiciário?


É o que se verá a seguir.


O Uso Político da Justiça Criminal/Eleitoral


Quanto mais poder for dado à Justiça Eleitoral, maior será a possibilidade de abuso. Afinal, como dizia Montesquieu, “todo homem que tem poder é tentado a abusar dele” (MONTESQUIEU, Barão de La Brède e de. Do Espírito das Leis. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 200).

Logo, não há dúvida de que permitir que a Justiça Eleitoral indefira o registro de candidaturas com base em um juízo condenatório ainda não-definitivo abrirá margem para perseguições judiciais em relação aos candidatos que não possuem um bom trânsito perante o meio forense eleitoral.


Esse é um dos argumentos mais fortes contra a tese que ora se sustenta. Afinal, é inegável que o Poder Judiciário pode violar os direitos fundamentais como qualquer outro poder. Se os juízes fossem santos ou seres imaculados, então não precisariam existir tantos direitos fundamentais e garantias processuais previstos justamente para limitar os poderes dos magistrados!


Não há dúvida de que a máquina judiciária eleitoral – promotores/advogados/juízes manipulados/corruptos/mal-intencionados – pode fazer tanto mal à democracia quanto o pior dos tiranos. A situação se agrava diante de eleições municipais, quando os juízes nas mais longínquas comarcas estão distantes dos holofotes e, portanto, menos suscetíveis a uma fiscalização pública mais intensa.


Diante disso, há fundado receio de que poderão surgir denúncias criminais com a única finalidade de obstaculizar candidaturas, embora, conforme visto, esse argumento em particular não é tão relevante, pois não é a mera existência de inquéritos ou processos criminais que deve motivar o indeferimento de candidaturas, mas sim a existência de elementos objetivos capazes de levar a um juízo preliminar de falta de idoneidade moral do candidato. De qualquer modo, não há dúvida de que o uso eleitoreiro da máquina judiciária é uma ameaça real.


E é aqui que surge o seguinte dilema: é melhor “pagar para ver” ou é melhor manter as coisas como estão?


Creio que vale a pena correr o risco. É preciso acreditar, ainda que “com o pé atrás”, na magistratura. Ou seja, é preciso acreditar, desconfiando; fiscalizando os juízes; controlando o funcionamento do sistema; questionando decisões pouco fundamentadas; criticando condutas duvidosas; representando desvios; denunciando fraudes. Enfim, a probidade ética que se exige de um processo eleitoral vale não somente para os candidatos, mas, sobretudo, para quem fiscaliza a lisura das eleições.


Mudar é preciso, pois situação atual é inaceitável. O número de candidatos com forte demonstração de desonestidade que foram eleitos no pleito de 2006 foi muito grande. Houve o caso de um deputado federal que saiu direto da prisão para ser diplomado pela Justiça Eleitoral. Que grande paradoxo! Um sistema eleitoral no qual o fator mais importante para vencer uma eleição é a quantidade de dinheiro que o candidato está disposto a pagar para se eleger está errado em si mesmo. Isso é tudo menos democracia.


O processo de impugnação de registro, embora célere, atende aos requisitos de um processo justo. Nele, o pré-candidato poderá apresentar suas razões, indicar testemunhas, questionar todos os documentos que forem apresentados nos autos. E ainda caberá recurso para instância superior caso o seu registro não seja deferido. É preciso frisar: não se trata de indeferir o registro pela existência de meros inquéritos ou processos criminais em andamento, mas por existirem indícios suficientes e não justificados, devidamente apreciados pela Justiça Eleitoral, de que o candidato não apresenta os requisitos mínimos de idoneidade moral para ocupar um cargo político.


Os abusos, que certamente existirão, serão pontuais e passíveis de correção via recurso. Caberá aos tribunais, em especial ao Tribunal Superior Eleitoral, fixar os parâmetros de objetividade necessários para podar eventuais excessos, estabelecendo os indícios mínimos que poderão ser utilizados para embasar uma negativa de registro de candidaturas. Assim, por exemplo, poderá ficar definido que uma prisão em flagrante homologada pela Justiça é um indício objetivo, uma confissão em juízo idem, uma prisão cautelar não reformada do mesmo jeito e assim por diante... É algo a se construir, inclusive com a ajuda da "sociedade aberta" dos intérpretes da Constituição...



A capacidade do povo de censurar “nas urnas” os políticos desonestos



Finalmente, um argumento muito mais retórico do que pragmático é a alegação de que o povo será capaz de, ele próprio, dentro dos mecanismos democráticos, escolher os candidatos mais capacitados, inclusive sob o aspecto ético, para representá-lo no parlamento, não cabendo ao Poder Judiciário interferir nessa liberdade de escolha.


Quem defende esse argumento ataca seus adversários dizendo que aqueles que não acreditam no povo são antidemocráticos por não confiarem nas virtudes da soberania popular.


Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Particularmente, sou fã daquela frase de Lord Russel que dizia que “quando ouço falar que um povo não está suficientemente preparado para a democracia, pergunto se haverá algum homem suficientemente preparado para ser déspota”. Mesmo assim, acredito que o processo democrático não funciona adequadamente se não houver limites éticos a serem observados.


Dizer que a democracia é auto-suficiente lembra, embora o contexto seja diferente, aquela idéia de “mão invisível” desenvolvida por Adam Smith, pela qual o mercado é capaz de se auto-regular. A história já demonstrou claramente que a “mão invisível” do mercado é ela própria responsável por instabilidades e crises sociais, que exigirão, mais cedo ou mais tarde, a intervenção do Estado, seja para reprimir os conflitos que surgem, seja para minorar o problema da população oprimida, seja para evitar o abuso do poder econômico por grandes corporações.


A “mão invisível” é a mesma mão que afaga os poderosos e apedreja os desvalidos. Isso vale tanto para liberdade econômica sem limites éticos quanto para a liberdade política sem limites éticos.


Por isso, é necessária a intervenção judicial para permitir que as engrenagens democráticas reflitam fielmente a vontade do povo. O “deixar fazer, deixar passar” (“laissez-faire, laissez-passer”) no jogo eleitoral significa, no final das contas, fechar os olhos para o abuso do poder econômico, para o voto de cabresto, para o clientelismo, para a compra de votos etc.


Aliás, até mesmo os mais severos críticos do ativismo judicial, como Habermas, Ely, entre outros, acreditam que é papel do Judiciário promover o funcionamento adequado da democracia, assegurando a abertura dos canais de participação e de mudanças políticas.


E isso se mostra ainda mais necessário quando se percebe que diversos candidatos, sem compromissos éticos, manipulam o processo eleitoral com técnicas desonestas de captação de eleitores, através da compra de votos, caixa dois, lavagem de dinheiro, financiamento de campanha por grupos criminosos, corrupção e fraude à legislação eleitoral. Um candidato com histórico de criminalidade e desonestidade somente pensará, após ser eleito, em como pagar as dívidas de campanha, como retribuir àqueles que patrocinaram sua eleição, como angariar fundos e apoio político para vencer as próximas eleições; e mais: como aproveitar a influência do cargo para se livrar do processo criminal! Enfim, a busca pelo bem comum e pelo interesse público parece ser uma das últimas preocupações desse parlamentar. Não é preciso ser gênio, nem ter curso superior, para saber disso.


Por isso, antes de desmerecer as virtudes da sociedade democrática, a exigência de se observar padrões éticos, fixados e fiscalizados por um órgão imparcial, é essencial para que não existam desvios e manipulações ilícitas do jogo eleitoral. Daí porque a Justiça Eleitoral, com todos os seus problemas e limitações, ainda é a instituição mais legitimada, tanto sob o aspecto social quanto jurídico, para exercer esse papel de guardiã da moralidade do processo democrático, conforme autoriza a própria Constituição.


Com isso, já se pode concluir.


Conclusões


Diante de tudo que se falou, pode-se concluir que a solução que melhor espelha a “pretensão de correção” para utilizar a expressão cunhada por Robert Alexy ou a “idéia de Justiça” para ficar com um termo de John Rawls é a seguinte:


(a) é papel da Justiça Eleitoral exercer o controle da legitimidade ética do processo eleitoral, através do julgamento das ações de impugnação de registro de candidaturas, entre outras ações semelhantes;


(b) a Justiça Eleitoral, nesse processo, pode formar sua convicção livremente, através de um processo judicial em que sejam observados o contraditório, a ampla defesa e o direito de recurso para uma instância superior;


(c) dentro da fase probatória do processo de impugnação de registro de candidaturas, a Justiça Eleitoral poderá utilizar qualquer elemento que possa ser útil à formação de sua convicção, inclusive provas e indícios produzidos por outros órgãos, através da chamada "prova emprestada";


(d) a prova emprestada pode envolver até mesmo a utilização de documentos, depoimentos, decisões judiciais, autos de prisão, degravação de interceptações telefônicas, dados bancários e fiscais etc. de processos criminais e inquéritos policiais ainda não concluídos, bem como provas produzidas em ações de improbidade administrativa, processos que tramitam nos tribunais de contas etc., desde que tenham sido obtidos licitamente;


(e) a decisão judicial que resulte no indeferimento do registro da candidatura deverá ser consistentemente fundamentada (argumentação forte), e deve se basear em elementos objetivos capazes de levar a uma convicção concreta de que o candidato em questão não possui idoneidade ética suficiente para exercer um cargo político;


(f) a mera existência de inquéritos e processos criminais em andamento, ainda que com sentenças condenatórias, não é suficiente, por si só, para gerar um juízo negativo de idoneidade moral, pois o mais importante é o conteúdo das acusações (gravidade dos crimes supostamente cometidos) e a robustez das provas já produzidas, a serem valoradas motivadamente pelo juízo eleitoral;


(g) enquanto não houver condenação ou absolvição definitivas na esfera penal, a responsabilidade criminal, ainda em fase de apuração, não pode interferir na responsabilidade eleitoral, pois são instâncias distintas, com critérios distintos de formação do convencimento;


(h) indícios fortes de autoria e materialidade do delito supostamente praticado, como prisões em flagrante homologadas pela Justiça Criminal, decretação de prisão cautelar não reformada, escutas telefônicas incriminadoras, confissões, sentenças condenatórias de crimes graves, recebimento de denúncia através de decisão fundamentada e não reformada, entre outros elementos semelhantes, podem ser considerados como dados objetivos capazes de levar a um juízo de inidoneidade moral para fins de indeferimento de registro de candidatura, caso o pré-candidato não apresente justificativa plausível para modificar a convicção do juízo eleitoral.

Políticos Corruptos/Políticos Bandidos/Políticos Perseguidos - Última parte

Chegando ao fim dessa aventura (parte 1 - parte 2 - parte 3 - parte 4), passo a analisar o último ponto e apresentar minhas conclusões. Ei-las:

A capacidade do povo de censurar “nas urnas” os políticos desonestos

Finalmente, um argumento muito mais retórico do que pragmático é a alegação de que o povo será capaz de, ele próprio, dentro dos mecanismos democráticos, escolher os candidatos mais capacitados, inclusive sob o aspecto ético, para representá-lo no parlamento, não cabendo ao Poder Judiciário interferir nessa liberdade de escolha.

Quem defende esse argumento ataca seus adversários dizendo que aqueles que não acreditam no povo são antidemocráticos por não confiarem nas virtudes da soberania popular.

Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Particularmente, sou fã daquela frase de Lord Russel que dizia que “quando ouço falar que um povo não está suficientemente preparado para a democracia, pergunto se haverá algum homem suficientemente preparado para ser déspota”. Mesmo assim, acredito que o processo democrático não funciona adequadamente se não houver limites éticos a serem observados.

Dizer que a democracia é auto-suficiente lembra, embora o contexto seja diferente, aquela idéia de “mão invisível” desenvolvida por Adam Smith, pela qual o mercado é capaz de se auto-regular. A história já demonstrou claramente que a “mão invisível” do mercado é ela própria responsável por instabilidades e crises sociais, que exigirão, mais cedo ou mais tarde, a intervenção do Estado, seja para reprimir os conflitos que surgem, seja para minorar o problema da população oprimida, seja para evitar o abuso do poder econômico por grandes corporações.

A “mão invisível” é a mesma mão que afaga os poderosos e apedreja os desvalidos. Isso vale tanto para liberdade econômica sem limites éticos quanto para a liberdade política sem limites éticos.

Por isso, é necessária a intervenção judicial para permitir que as engrenagens democráticas reflitam fielmente a vontade do povo. O “deixar fazer, deixar passar” no jogo eleitoral significa, no final das contas, fechar os olhos para o abuso do poder econômico, para o voto de cabresto, para o clientelismo, para a compra de votos etc.

Aliás, até mesmo os mais severos críticos do ativismo judicial, como Habermas, Ely, entre outros, acreditam que é papel do Judiciário promover o funcionamento adequado da democracia, assegurando a abertura dos canais de participação e de mudanças políticas.

E isso se mostra ainda mais necessário quando se permite que um candidato, sem compromissos éticos e sem um histórico de preocupação com o interesse público, participe do processo eleitoral. Certamente, será esse candidato que irá sujar e deslegitimar o processo democrático através da compra de votos, caixa dois, lavagem de dinheiro, financiamento de campanha por grupos criminosos, corrupção e fraude à legislação eleitoral. Um candidato com histórico de criminalidade e desonestidade somente pensará, após ser eleito, em como pagar as dívidas de campanha, como retribuir àqueles que patrocinaram sua eleição, como angariar fundos e apoio político para vencer as próximas eleições. Enfim, a busca pelo bem comum e pelo interesse público parece ser uma das últimas preocupações desse parlamentar. Não é preciso ser gênio, nem ter curso superior, para saber disso.

Por isso, antes de desmerecer as virtudes da sociedade democrática, a exigência de se observar padrões éticos, fixados e fiscalizados por um órgão imparcial, é essencial para que não existam desvios e manipulações ilícitas do jogo eleitoral. Daí porque a Justiça Eleitoral, com todos os seus problemas e limitações, ainda é a instituição mais legitimada, tanto sob o aspecto social quanto jurídico, para exercer esse papel de guardiã da moralidade do processo democrático, conforme autoriza a própria Constituição.


Com isso, já se pode concluir.

Conclusões

(a) é papel da Justiça Eleitoral exercer o controle da legitimidade ética do processo eleitoral, através do julgamento das ações de impugnação de registro de candidaturas, entre outras ações semelhantes;

(b) a Justiça Eleitoral, nesse processo, pode formar sua convicção livremente, através de um processo judicial em que sejam observados o contraditório, a ampla defesa e o direito de recurso para uma instância superior;

(c) dentro da fase probatória do processo de impugnação de registro de candidaturas, a Justiça Eleitoral poderá utilizar qualquer elemento que possa ser útil à formação de sua convicção, inclusive provas e indícios produzidos por outros órgãos, através da chamada "prova emprestada";

(d) a prova emprestada pode envolver até mesmo a utilização de documentos, depoimentos, decisões judiciais, autos de prisão etc. de processos criminais e inquéritos policiais ainda não concluídos, bem como provas produzidas em ações de improbidade administrativa, processos que tramitam nos tribunais de contas etc., desde que tenham sido obtidos licitamente;

(e) a decisão judicial que resulte no indeferimento do registro da candidatura deverá ser consistentemente fundamentada (argumentação forte), e deve se basear em elementos objetivos capazes de levar a uma convicção concreta de que o candidato em questão não possui ideoneidade ética suficiente para exercer um cargo político;

(f) a mera existência de inquéritos e processos criminais em andamento, ainda que com sentenças condenatórias, não é suficiente, por si só, para gerar um juízo negativo de idoneidade moral, pois o mais importante é o conteúdo das acusações (tipo de crimes supostamente cometidos) e a robustez das provas já produzidas, a serem valoradas motivadamente pelo juízo eleitoral;

(g) enquanto não houver condenação ou absolvição definitivas na esfera penal, a responsabilidade criminal, ainda em fase de apuração, não pode interferir na responsabilidade eleitoral, pois são instâncias distintas, com critérios distintos de formação do convencimento;

(h) indícios fortes de autoria e materialidade do delito supostamente praticados, como prisões em flagrante homologadas pela Justiça Criminal, decretação de prisão cautelar não reformada, escuta telefônica incriminadora, confissões, sentenças condenatórias de crimes graves, recebimento de denúncia através de decisão fundamentada e não reformada, entre outros elementos semelhantes, podem ser considerados como dados objetivos capazes de levar a um juízo de inidoneidade moral para fins de indeferimento de registro de candidatura, caso o pré-candidato não apresente justificativa plausível para modificar a convicção do juízo eleitoral.

Pronto. Creio que cumpri o meu dever cívico. Agora é só convencer pelo menos um dos ministros do TSE de que essa tese é a que melhor reflete o sentimento de justiça da sociedade e é compatível com ordenamento jurídico. Se pelo menos um ministro mudar de opinião, então teremos uma reversão no placar que hoje está em 4 a 3 contra o entendimento acima. Ainda há esperança...

Cabe a nós, membros da "sociedade aberta" dos intérpretes da Constituição, fazer com que a idéia acima prevaleça. Acredito que, com isso, um passo importante será dado.

Em breve, vou transformar esse material num artigo para publicação. Aguardem...

Ah, e enquanto isso, críticas são bem-vindas...

Políticos Corruptos / Políticos Bandidos / Políticos Perseguidos - Terceira Parte

Depois de haver explicado como funciona meu raciocínio jurídico aqui, depois de tercer algumas considerações sobre o princípio da presunção de não-culpabilidade aqui, depois de analisar o fundamento normativo do indeferimento de registro de candidaturas aqui, já caminhando para uma conclusão, tecerei alguns comentários sobre a possibilidade de uso político da Justiça Criminal/Eleitoral.


Eis o texto:


O Uso Político da Justiça Criminal/Eleitoral


Quanto mais poder for dado à Justiça Eleitoral, maior será a possibilidade de abuso. Afinal, como dizia Montesquieu, “todo homem que tem poder é tentado a abusar dele” (MONTESQUIEU, Barão de La Brède e de. Do Espírito das Leis. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 200).

Logo, não há dúvida de que permitir que a Justiça Eleitoral indefira o registro de candidaturas com base em um juízo condenatório ainda não-definitivo abrirá margem para perseguições judiciais em relação aos candidatos que não possuem um bom trânsito perante o meio forense eleitoral.

Pra dizer a verdade, considero esse o argumento mais forte contra o meu “feeling”. Tenho plena convicção que o Poder Judiciário pode violar os direitos fundamentais como qualquer outro poder. A máquina judiciária eleitoral – promotores/advogados/juízes manipulados – pode fazer tanto mal à democracia quanto o pior dos tiranos. A situação se agrava diante de eleições municipais, quando os juízes nas mais longínquas comarcas estão distantes dos holofotes e, portanto, menos suscetíveis a uma fiscalização pública mais intensa.

Poderão surgir denúncias criminais com a única finalidade de obstaculizar candidaturas, embora, conforme visto, esse argumento em particular não é tão relevante, pois não é a mera existência de inquéritos ou processos criminais que deve motivar o indeferimento de candidaturas, mas sim a existência de elementos objetivos capazes de levar a um juízo preliminar de falta de idoneidade moral do candidato. De qualquer modo, não há dúvida de que o uso eleitoreiro da máquina judiciária é uma ameaça real.

E é aqui que surge o seguinte dilema: é melhor “pagar para ver” ou é melhor manter as coisas como estão?

Creio que vale a pena correr o risco. É preciso acreditar, ainda que “com o pé atrás”, na magistratura. Ou seja, é preciso acreditar, desconfiando; fiscalizando os juízes; controlando o funcionamento do sistema; questionando decisões pouco fundamentadas; criticando condutas duvidosas; representando desvios; denunciando fraudes. Enfim, a probidade ética que se exige de um processo eleitoral vale não somente para os candidatos, mas sobretudo para quem fiscaliza a lisura das eleições.

Mudar é preciso, pois situação atual é inaceitável. O número de candidatos com forte demonstração de desonestidade que foram eleitos no pleito de 2006 foi muito grande. Houve o caso de um deputado federal que saiu direto da prisão para ser diplomado pela Justiça Eleitoral. Que grande paradoxo!

O processo de impugnação de registro, embora célere, atende aos requisitos de um processo justo. Nele, o pré-candidato poderá apresentar suas razões, indicar testemunhas, questionar todos os documentos que forem apresentados nos autos. E ainda caberá recurso para instância superior caso o seu registro não seja deferido. É preciso frisar: não se trata de indeferir o registro pela existência de meros inquéritos ou processos criminais em andamento, mas por existirem indícios suficientes e não justificados, devidamente apreciados pela Justiça Eleitoral, de que o candidato não apresenta os requisitos mínimos de idoneidade moral para ocupar um cargo político.


Os abusos, que certamente existirão, serão pontuais e passíveis de correção via recurso. Caberá aos tribunais, em especial ao Tribunal Superior Eleitoral, fixar os parâmetros de objetividade necessários para podar eventuais excessos, estabelecendo os indícios mínimos que poderão ser utilizados para embasar uma negativa de registro de candidaturas. Assim, por exemplo, poderá dizer que uma prisão em flagrante homologada pela Justiça é um indício objetivo, uma confissão em juízo idem, uma prisão cautelar não reformada do mesmo jeito e assim por diante... É algo a se construir, inclusive com a ajuda da "sociedade aberta" dos intérpretes da Constituição...






quarta-feira, 26 de março de 2008

Políticos Corruptos / Político Bandidos / Políticos Perseguidos - Segunda Parte

Passo agora a analisar um novo argumento contra o meu "feeling": a questão da ausência de previsão legal ou constitucional que justifique meu ponto de vista.

A propósito, se você ainda não leu os dois últimos posts é melhor não continuar. Comece lendo este e depois este.

Ausência de Previsão Legal ou Constitucional


Outro argumento bastante convincente é a alegação de que não há qualquer previsão legal ou constitucional dando à Justiça Eleitoral o poder para indeferir candidaturas com base em processos ou inquéritos criminais sem o trânsito em julgado. Pelo contrário. Sustenta-se que a Lei Complementar 64/90 é bastante enfática ao dizer que são inelegíveis os “os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena” (art. 1º, inc. I, “e”).

Logo, somente poderiam ser considerados como inelegíveis os candidatos que estivessem enquadrados exatamente nessa situação, o que não é o caso daqueles que ainda não foram condenados na esfera criminal.

Aliás, esse foi o argumento principal acolhido, pelo Tribunal Superior Eleitoral, por uma apertada maioria de 4 contra 3, para autorizar o pedido de candidatura do Presidente do Vasco da Gama, Eurico Miranda, que respondia a inúmeros processos criminais, inclusive com algumas condenações em primeira instância, embora nenhuma sentença transitada em julgado.

Na ementa do acórdão, ficou registrado que “na ausência de lei complementar estabelecendo os casos em que a vida pregressa do candidato implicará inelegibilidade, não poderá o julgador, sem se substituir ao legislador, defini-los” (TSE, RO 1.069/RJ, rel. Min. Marcelo Ribeiro, j. 20/9/2006).

Esse argumento tem dois “furos”. O primeiro é mais “polêmico”, pelo menos para uma visão tradicionalista do direito: a Constituição Federal é norma jurídica, de modo que o julgador pode decidir com base unicamente no texto constitucional. O segundo é mais convincente para os tradicionalistas: mesmo que a norma constitucional fosse meramente “programática”, não “auto-aplicável”, conforme prevê a súmula 13 do TSE (“não é auto-aplicável o § 9º, Art. 14, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão nº 4-94”), há uma autorização legal contida no artigo 23 da Lei Complementar 64/90, que daria suporte à tese de que a Justiça Eleitoral pode indeferir o registro de candidatura “pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.

Vamos ao primeiro ponto.

Hoje, é pacífico o entendimento de que a Constituição Federal é norma jurídica e, como tal, tem a força de estabelecer comandos obrigatórios para os diversos órgãos do poder público mesmo na ausência de leis. Esse entendimento ficou bastante nítido quando o Supremo Tribunal Federal, na ADC 12/2005, considerou como constitucional a resolução contra o nepotismo no Judiciário, elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No referido julgamento, ficou claro que não apenas a lei em sentido formal, mas também a Constituição pode emitir ordens normativas direcionadas à atividade pública, de modo que o CNJ, com base unicamente nos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, previstos no artigo 37 da CF/88, poderia editar ato normativo secundário (resolução) proibindo a contratação de parentes de magistrados para cargos no Poder Judiciário.

O mesmo raciocínio se aplica igualmente, e com muito mais razão, à Justiça Eleitoral, que também pode extrair diretamente da Constituição obrigações a serem observadas, de forma vinculante, pelos participantes do processo eleitoral. Isso ocorreu de modo particularmente visível quando o Tribunal Superior Eleitoral editou resolução obrigando a “verticalização partidária”, bem como, no ano passado, regulamentou, por resolução, a chamada “fidelidade partidária”, prevendo, inclusive, hipóteses de perda do mandato parlamentar. Em ambos os casos, a fonte normativa que embasou a edição das resoluções foi, sobretudo, a Constituição Federal, inclusive a abstrata cláusula constitucional do “Estado Democrático de Direito”. E, em ambos os casos, o Supremo Tribunal Federal validou o entendimento adotado pelo TSE (no caso da verticalização: STF, ADIn 2.626-DF e ADIn 2.628-DF, rel. orig. Min. Sydney Sanches, red. para o acórdão Ministra Ellen Gracie, 18.4.2002; no caso da fidelidade partidária: STF, MS 26603/DF, rel. Min. Celso de Mello, 3 e 4.10.2007).

Dito isso, já se pode concluir que a Justiça Eleitoral poderia, em tese, retirar diretamente da Constituição uma autorização para indeferir o registro de candidaturas, desde que existisse um comando normativo nessa direção. E há efetivamente.

A Constituição Federal de 1988 estabelece que “lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (art. 14, §9º).

Para justificar a imediata aplicação dos princípios estabelecidos na referida norma constitucional, é preciso se alongar um pouco, até para tentar afastar a teoria da aplicabilidade das normas jurídicas elaborada por José Afonso da Silva.

De início, é preciso que se diga que a referida norma encontra-se no Título II da Constituição, que é intitulado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Trata-se, portanto, de uma norma ligada aos direitos fundamentais, especialmente aos direitos políticos.

Todos os direitos fundamentais, por força do artigo 5º, §1º, da CF/88, possuem aplicação imediata. Logo, em hipótese alguma, uma norma definidora de direito fundamental pode deixar de ser concretizada pela ausência de lei, cabendo ao Judiciário tomar as medidas necessárias para que o direito não fique sem efetividade.

Dentro dessa idéia, adotando a conhecida classificação da aplicabilidade das normas constitucionais de José Afonso da Silva, os direitos fundamentais ou seriam normas constitucionais de eficácia plena e, portanto, capazes de produzir todos os efeitos essenciais nela previstos desde a sua entrada em vigor, ou seriam normas constitucionais de eficácia contida, isto é, estariam suficientemente regulamentadas pelo constituinte, mas seriam passíveis de restrições pelo parlamento. Em hipótese alguma, um direito fundamental poderia ser enquadrado como norma de eficácia limitada, já que essa espécie é justamente o oposto da idéia de aplicação imediata.

Não é minha pretensão construir uma nova teoria em torno da aplicabilidade das normas constitucionais, entre tantas outras existentes. Aqui, basta perceber que a classificação estanque adotada por José Afonso da Silva não é totalmente compatível com a idéia atualmente aceita de que o Estado tem, em relação aos direitos fundamentais, o dever de respeitá-los (não violar o direito), protegê-los (não deixar que o direito seja violado) e promovê-los (possibilitar que todos usufruam o direito).

O dever de respeito, proteção e promoção, que é inerente a qualquer direito fundamental, impõe uma multiplicidade de tarefas ao poder público, de modo que a concretização plena dessas normas não se esgota em um mero agir ou não-agir do Estado. Logo, é possível que uma única norma seja, com relação a algum desses comandos, de eficácia plena, mas, em outros, seja de eficácia contida ou até mesmo limitada.

O artigo 14, §9, da CF/88, estabelece que “lei complementar estabelecerá outros casos...”. Seguindo a classificação tradicional de José Afonso da Silva, essa norma segue a mesma estrutura das normas de eficácia limitada, pois depende de uma regulamentação para adquirir plena efetividade. No entanto, essa conclusão se choca com o artigo 5º, §1º, da CF/88, que prevê a cláusula de aplicação imediata. Como então resolver esse conflito?

Alguns constitucionalistas sugerem, como forma de superar essa controvérsia, uma mitigação do sentido da cláusula de aplicação imediata. Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho chega ao ponto de afirmar que o art. 5o, §1o, da CF/88, seria destituído de qualquer significado prático, pois apenas poderiam ter aplicação imediata “as normas completas, suficientemente precisas na sua hipótese e no seu dispositivo, para que possam ter a plenitude da eficácia” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 296).

Essa solução, contudo, viola um princípio básico da hermenêutica segundo o qual não há palavras inúteis na Constituição. A cláusula da aplicação imediata tem sim uma importância prática extraordinária. Ela é a consagração expressa do princípio da máxima efetividade, que é inerente a todas as normas constitucionais, especialmente as definidoras de direitos. Ela é o reconhecimento formal por parte do constituinte de que os direitos fundamentais têm uma força jurídica especial e potencializada.

Portanto, quando se analisa uma norma como a contida no artigo 14, §9º, da CF/88, deve-se partir do princípio de que ela tem aplicação imediata, ainda que seu efeito principal dependa da atuação do legislador. Explicando melhor: a referida norma enuncia não um simples comando dirigido ao legislador, mas inúmeras ações e diretrizes a serem seguidas pelo Estado como um todo. Trata-se, em última análise, de uma cláusula geral de proteção da legitimidade ética das eleições. Essa cláusula terá aplicação imediata na medida em que impõe, desde logo, o dever de respeito, proteção e promoção da moralidade eleitoral, a ser observado por todos os agentes públicos, independentemente de qualquer regulamentação. O juiz eleitoral deve pautar suas decisões sempre com uma preocupação na moralidade. Esse dever não precisa, em regra, aguardar o legislador para gerar efeitos imediatos, ainda que o legislador tenha a obrigação de densificar, ou seja, regulamentar os pressupostos de validade da norma, para que ela alcance um grau máximo de efetividade. Enquanto o legislador não fizer isso, cabe ao Judiciário se pautar por essa diretriz imposta pela Constituição, agindo sempre pensando em dar a máxima efetividade à norma.

Com base nisso, pode-se dizer que a Justiça Eleitoral poderia perfeitamente invocar o artigo 14, §9º, da CF/88, para indeferir registro de candidaturas “a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

E mesmo que se ache essa interpretação é “invencionice”, já que confere um poder muito grande para os juízes eleitorais sem o necessário suporte legislativo/democrático, pode-se lembrar que a Lei Complementar 64/1990, que regulamenta os casos de inelegibilidade, já prevê uma autorização semelhante. Trata-se, no caso, da autorização do artigo 23 redigida nos seguintes termos: “Art. 23. O Tribunal formará sua convicção [a respeito da inelegibilidade] pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.

Com base nisso, pode-se dizer que há duas situações completamente distintas de inelegibilidade previstas na LC 64/90: (a) a do artigo 1º, inc. I, “e”, que exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e (b) a do artigo 23, que não prevê um juízo criminal definitivo.

A primeira é vinculante e pode ser reconhecida por qualquer membro da Justiça Eleitoral, independentemente de requerimento. Já a segunda tem uma margem maior de discricionariedade, mas dependerá de requerimento para ser apreciada pela Justiça Eleitoral e será precedida de um processo mais longo, onde o contraditório e a ampla defesa ganharão uma dimensão bem mais abrangente do que na primeira situação.

No processo de impugnação de registro de candidatura, todos os documentos contidos nos inquéritos e processos criminais, ou mesmo nas ações de improbidade administrativa, até aqueles ainda não concluídos em definitivo, poderão ser “emprestados” para embasar a decisão da Justiça Eleitoral. A mera existência de processos e de inquéritos em andamento não justifica o indeferimento do registro. Será o conteúdo das provas e indícios apresentados nesses procedimentos criminais que justificará um eventual indeferimento da candidatura, cabendo à Justiça Eleitoral realizar a “livre apreciação” desse material, conforme determina o artigo 23 da LC 64/90. A decisão deverá ser consistente e bem fundamentada, devendo se pautar em dados objetivos que justifiquem o indeferimento do registro da candidatura.


Na análise desse requisito de idoneidade moral, a Justiça Eleitoral deverá sopesar todos os elementos que podem demonstrar a prática de atos antiéticos cometidos por esse candidato, ainda que não criminosos. Punições administrativas, condenações por parte dos tribunais de contas, ações de improbidade administrativa etc., tudo isso poderá ser levado em consideração. Logicamente, as acusações de práticas criminosas pesarão bem mais. E também poderão pesar em diferentes intensidades. Um mero inquérito em tramitação pesa menos do que uma denúncia recebida que pesa menos do que uma sentença condenatória, mesmo não transitada em julgado, que pesa menos do que uma sentença condenatória confirmada pela instância recursal, mas ainda passível de recurso extraordinário ou especial. Do mesmo modo, o teor das acusações deve ser levado em conta. Um crime de difamação praticado por um político não é tão grave quanto um crime de peculato que não é tão grave quanto um crime de homicídio e por aí vai... Finalmente, o tipo de prova também é um fator importante. Uma prisão em flagrante tem um peso considerável; uma escuta telefônica idem; uma confissão também; uma prisão cautelar declarada por um juiz criminal é um indício razoável de autoria e materialidade do delito... Enfim, são muitas variáveis a se pensar.


O magistrado eleitoral, ao realizar essa atividade ponderativa, que não é simples, deverá se pautar pelo princípio de que qualquer limitação de direito fundamental deve ser considerada como uma medida excepcional. Como a elegibilidade é um direito fundamental, somente diante de razões fortes que justifiquem o indeferimento do registro, o magistrado deverá adotar essa medida, impondo-se, nesse caso, um ônus argumentativo particularmente pesado, até para que se possa avaliar se o dever de coerência está sendo observado; afinal, ao se exigir que o magistrado manifeste expressamente quais os argumentos que o convenceram a tomar uma determinada decisão, pressupõe-se que, diante de um caso semelhante, em que os mesmos argumentos podem ser adotados, a solução não será diferente.

Dito isso, passa-se a uma questão bastante problemática: será que a Justiça Criminal não poderá ser utilizada apenas para fins de perseguição “político-eleitoral”, no intuito de justificar o indeferimento de registro de determinados candidatos que não possuam tanta influência nos corredores do Judiciário?

É o que se verá a seguir.

Políticos Corruptos / Políticos Bandidos / Políticos Perseguidos - Primeira Parte

Sem mais embromação, vou apresentar meu ponto de vista sobre a questão do indeferimento das candidaturas de políticos que estejam respondendo a processos criminais. Para os que não leram o post passado, que chamei de "filosofia barata do direito", recomendo que o leia antes de seguir em frente.

Parto do princípio de que nenhum cidadão minimamente consciente do significado de democracia e de república se conforma com o fato de haver no parlamento políticos totalmente inescrupulosos defendendo interesses ocultos "em nome do povo".


Algo me diz, portanto, que não é justo que uma pessoa sobre a qual pairam sérias dúvidas quanto à sua honestidade possa se candidatar a um cargo político. Esse "feeling" se intensifica ainda mais quando a "suspeita" é de desvio de verbas públicas que, no final das contas, irá servir justamente para financiar a campanha eleitoral desse político! E para reforçar, esses mesmos políticos ainda têm a cara de pau de confessarem que receberam verbas ilícitas sob a esfarrapada desculpa de quitarem suas "dívidas de campanha". Ou seja: é um atestado indiscutível de que a democracia representativa, pelo menos em grande parte, é uma farsa e que se continuar assim a tendência é piorar...


Situação igualmente indignante é das políticos que são bandidos da pior espécie, ainda que não existam condenações transitadas em julgado. Quando um sujeito como um "Hildebrando Pascoal", que esquartejava suas vítimas, consegue uma cadeira no parlamento federal, isso significa que alguma coisa não está cheirando bem nesse processo eleitoral tupiniquim.


A idéia de que o político não apenas deve ser honesto, mas sobretudo deve parecer honesto, reflete bem essa intuição de que a existência de inquéritos e processos criminais pesa sim contra a candidatura.


Pois bem. Mas por enquanto ainda estamos na fase da "especulação intuitiva".


É algo ainda muito sensitivo, dentro do "imaginário popular", sem muita base jurídica.


Mas é desse ponto que parto para a próxima fase, na qual vou submeter meu “feeling” a um pesado teste de consistência, procurando encontrar qualquer fundamento que possa derrubá-lo.


Basicamente, encontrei quatro argumentos principais: (a) o princípio da presunção de não-culpabilidade; (b) a ausência de previsão legal ou constitucional contemplando essa hipótese de inelegibilidade; (c) a possibilidade de uso político da Justiça Criminal; (d) a capacidade do povo de censurar “nas urnas” os políticos desonestos.


Por isso, vou dividir a análise em quatro partes, começando com o princípio da presunção de não-culpabilidade.


Princípio da Presunção de Não-Culpabilidade


Um dos pilares do Estado Democrático do Direito é o princípio segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (art. 5º, inc. LVII, da CF/88). A DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948) também contemplou esse valor como uma idéia universal ao dizer no artigo 11 que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. Por sua vez, o PISJCR (Pacto Internacional de San Jose da Costa Rica, de 1966), estabelece que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.


É um argumento forte contra o indeferimento da candidatura de políticos suspeitos, mas que, a meu ver, pode ser facilmente derrubado.


O princípio da presunção de inocência ou de não-culpabilidade não tem essa força de “fingir que nada está acontecendo” durante o período em que uma pessoa está sendo investigada ou processada criminalmente. A existência de razoável suspeita da prática de crime pode ser sim invocada para limitar determinados direitos fundamentais, embora sempre excepcionalmente.


Imagine, por exemplo, a seguinte situação hipotética: um respeitável senhor de 40 anos de idade, bem conceituado perante a comunidade, é preso em flagrante pela prática de pedofilia. Em seu computador pessoal, a polícia encontrou inúmeras fotos em que esse senhor participava de orgias sexuais envolvendo crianças e adolescentes. Por ironias do processo penal, foi reconhecido o seu direito de responder ao processo criminal em liberdade.


Digamos que, nesse ínterim, ainda sem qualquer denúncia recebida, esse senhor resolve participar de um concurso público para o cargo de professor de uma escola infantil e consegue ser aprovado em primeiro lugar. Você, sendo o diretor da escola, daria posse a esse sujeito?


Creio que, por mais que se esteja cometendo uma injustiça com esse senhor, já que, no final, ele pode ser considerado inocente, há uma forte razão para impedi-lo de exercer aquela profissão, pelo menos enquanto não for esclarecida a questão. E esse esclarecimento não precisa aguardar o trânsito em julgado do processo penal. Pode ocorrer até mesmo em um processo administrativo, em que o suposto pedófilo irá apresentar sua defesa, contando sua versão para os fatos, dentro do devido processo. Se a autoridade administrativa se convencer dos seus argumentos, pode contratá-lo mesmo sem uma resposta da Justiça Penal. Nesse caso, diante da ausência de condenação ou de absolvição, a responsabilidade criminal não interfere na responsabilidade administrativa.

E para não parecer que o exemplo é meramente retórico, por envolver um crime que abomina a sociedade, pode-se dizer que o mesmo raciocínio se aplica a um caso, por exemplo, de um candidato a um cargo público de motorista que esteja respondendo a vários processos criminais por crimes de trânsito ainda que nenhum deles tenha transitado em julgado. A Administração Pública, certamente, poderá verificar as circunstâncias em que os crimes foram cometidos, as alegações de defesa sustentadas pelo candidato e, num juízo prévio, verificar se há plausibilidade dos argumentos apresentados. Diante disso, pode formular seu próprio juízo - logicamente não vinculante para a instância criminal - e concluir se o candidato preenche os requisitos para o cargo.



Diante disso, não se pode concordar totalmente com o Min. Celso de Mello quando diz que “não podem repercutir, contra o réu, sob pena de transgressão ao postulado constitucional da não-culpabilidade (CF, art. 5º, LVII), situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, porque inexistente, em tal contexto, título penal condenatório definitivamente constituído” (STF, RE 464497, rel. Min. Celso de Mello, j. 17/10/2005).


O princípio da presunção de inocência não deveria ser interpretado de forma tão inflexível ao ponto de “fingir que nada está acontecendo”. O posicionamento em sentido contrário, embora reflita uma boa intenção no sentido de evitar a supressão de direitos de uma pessoa que ainda não foi definitivamente condenada, gera, perante a sociedade, um sentimento de revolta e de impunidade que enfraquece a credibilidade do Judiciário por se afastar dos marcos consensuais existentes na população. Não estou defendendo, com isso, que os juízes devem pautar suas decisões pelo calor nem sempre racional da opinião pública, mas que a decisão judicial espelhe o senso de justiça presente na sociedade. Afinal, “uma jurisprudência que não encontra a compreensão e, por conseguinte, não é aceita, ameaça os pressupostos fundamentais de sua eficácia” (BENDA, H. C. Ernst. O Espírito da Nossa Lei Fundamental. p. 102. In: CARNEIRO, José Mário Brasiliense & FERREIRA, Ivette Senise (org.). 50 Anos da Lei Fundamental. São Paulo: Edusp, 2001, pp. 91/109). E quando as instituições enfraquecem, a população acaba procurando outros métodos informais de resolução de conflitos, nem sempre legítimos, como o linchamento, os tribunais paralelos e a justiça com as próprias mãos.


E, no fundo, o princípio da presunção da inocência não tem muito a ver com a questão ora debatida. Ninguém está dizendo que um determinado candidato é culpado por responder a inquéritos policiais ou a processos penais. Trata-se tão somente de se exigir um requisito mínimo de idoneidade moral “a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato”, conforme prevê a própria Constituição (art. 14, §9º da CF/88).


Vários cargos públicos exigem requisitos semelhantes para investidura, como a própria magistratura. Pode ter certeza de que um advogado que tenha sido expulso da OAB pela prática de inúmeras infrações éticas dificilmente será aceito em um concurso para a magistratura, mesmo que não existam processos criminais contra ele. Vida pregressa não se confunde com condenação criminal. Aliás, o Ministro Marco Aurélio, que é um dos mais ardorosos defensores da tese de que qualquer pessoa pode se candidatar a cargos políticos enquanto não houver trânsito em julgado da sentença penal condenatória, já aceitou que o levantamento da vida pregressa de candidato para o cargo de investigador de polícia levasse em conta fatores meramente indiciários, como o testemunho de dois outros policiais e um inquérito por posse de droga arquivado por falta de provas (STF, RE 15640/SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. 5/9/1995).


A Justiça Eleitoral, quando aprecia pedidos de regitro de candidaturas, está exercendo uma atividade semelhante a de uma comissão de concurso ao analisar a vida pregressa dos candidatos a cargos públicos, com a diferença que os atos são praticados por membros do Judiciário. No caso, enquanto não houver qualquer condenação ou absolvição na esfera penal, não há comunicação de instância, ou seja, a responsabilidade penal não interfere na responsabilidade administrativa. Por isso, o que está havendo nessa discussão é um "jogo de palavras", onde o princípio da presunção de inocência está sendo manipulado para encobrir uma impunidade na esfera administrativa-eleitoral. Ou será que toda vez em que um servidor público comete um crime a Administração Pública precisa aguardar o resultado do processo criminal para aplicar uma sanção disciplinar? É claro que não. Logo, nada impede que, respeitado o devido processo, a Justiça Eleitoral verifique se há base fática suficiente para indeferir o pedido da candidatura, ainda que não exista qualquer sentença condenatória definitiva.


Essa independência de instâncias – criminal e eleitoral – pode ser ilustrada citando o caso do ex-Presidente Fernando Collor. Collor, pelos mesmos fatos, respondeu a um processo político-criminal perante o Congresso Nacional e um processo exclusivamente criminal perante o Supremo Tribunal Federal. Collor foi punido pelo Senado Federal e perdeu seus direitos políticos antes de o processo criminal ter sido concluído. E o mais interessante, é que, no STF, Collor foi absolvido por falta de provas, demonstrando, inclusive, que os critérios de formação da convicção para o julgamento são diferentes, exigindo-se um grau de certeza bem mais elevado para justificar uma condenação criminal.


Se o princípio da presunção de inocência fosse interpretado de modo a impedir qualquer restrição de direitos antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o Senado Federal teria que aguardar o julgamento criminal para poder punir o ex-Presidente, o que seria um flagrante absurdo, ante a independência entre as instâncias em questão.

Se a conclusão fosse diferente, o princípio da presunção de não-culpabilidade se transformaria em um escudo ou uma blindagem instransponível para permitir que pessoais sem escrúpulos se candidatem a cargos políticos visando precisamente se beneficiar das "imunidades" e do "poder de influência" que o cargo proporciona para satisfazer a interesses pessoais.

Outro ponto importante que será melhor compreendido quando eu concluir meu raciocínio é o seguinte: a existência de processos ou inquéritos criminais - ou mesmo ações de improbidade administrativa! - não obriga que a Justiça Eleitoral indefira o registro de candidaturas. Apenas autoriza, melhor dizendo, serve como base, diante de indícios razoáveis de falta de ideoneidade moral, para que esse registro não seja deferido. Dito de outro modo: não é a mera existência de inquéritos ou processos que deve ser o fator preponderante para o indeferimento do registro, mas a demonstração objetiva de que falta ao candidato uma postura ética compatível com a atividade parlamentar.

Depois explico melhor, já que esse é um ponto-chave no meu raciocínio.

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