quarta-feira, 7 de maio de 2008

Mudança à vista: do blogspot para o worpress

9 entre 10 blogueiros consideram que o worpress é bem melhor do que o blogspot.

Sempre gostei do blogspot. É fácil de usar e tem um layout que me agrada. Mesmo assim, fui conhecer o wordpress.

Embora tenha sentido um pouco de dificuldade no começo, percebi que, de fato, o worpress possui muito mais ferramentas do que o blogspot. É outro nível. E também é fácil de usar, sobretudo quando se acostuma.

Por isso, resolvi migrar para o novo sistema.

O novo endereço do blog, ainda em fase experimental, é: http://direitosfundamentais.wordpress.com ou então http://direitosfundamentais.net


Para inaugurar o novo sistema, fiz mais um post da série "Filosofia Barata do Direito".

Espero que agrade.

George Marmelstein

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Os Aristocratas e os Direitos Fundamentais: devem existir limites jurídicos para o humor politicamente incorreto? – Por George Marmelstein

O objetivo deste post é tão somente fazer alguns comentários acerca da discussão levantada pelo Dr. Adriano Costa, conceituado professor universitário, que, num dos pontos altos de sua carreira jurídica, defendeu a livre divulgação de uma piada chamada “Os Aristocratas”, contada no submundo da comédia norte-americana.

Para analisar o caso com todas as informações disponíveis, fiz uma pesquisa com os termos “aristocrats jokes” no site “Youtube” para saber do que se trata.

De cara, foi possível perceber duas coisas. Em primeiro lugar, a piada é mesmo pesada. Há sexo grupal, incesto e tudo o que a mente doentia do humorista puder criar. Em segundo lugar, é inegável que os comediantes levam isso numa boa. Uma pessoa minimamente inteligente percebe com facilidade que se trata de uma grande brincadeira, ainda que de extremo mau-gosto.

É um humor no mesmo estilo do “Borat”, aquele filme/documentário retratando uma viagem simplesmente hilária que o “segundo melhor repórter do Cazaquistão” fez aos Estados Unidos. Para muitos, o filme é ofensivo, pois menospreza judeus, deficientes, mulheres, religiosos conservadores e muito mais. Para outros tantos, tudo não passa de uma crítica bem-humorada aos valores e à hipocrisia norte-americana.

Até que ponto a liberdade de expressão protege esse tipo de humor? Quais são os limites da brincadeira? O que o Estado pode (se é que pode) fazer para reprimir tais condutas? Melhor dizendo: o Estado deve reprimir o humor politicamente incorreto?

Não são questões simples de responder, nem pretendo fazê-lo. Quero apenas apresentar alguns dados que podem ajudar a resolver esses dilemas.

Nos EUA, o desenvolvimento da liberdade de expressão foi influenciado com intensidade pelos argumentos de Stuart Mill, que era um ardoroso defensor do “livre mercado de idéias”. Mill defendia uma espécie de “laissez-faire” intelectual, de modo que o Estado, em regra, não deveria intervir no exercício da manifestação do pensamento. Lá, eles levam muito a sério esse princípio, tanto que adotam posturas que, para o resto do mundo, soam absurdas. Por exemplo, os norte-americanos acreditam que os defensores de idéias nazistas ou racistas estão protegidos pela Constituição, de modo que ninguém pode ser punido por defender, no plano das idéias, o holocausto judeu ou a supremacia branca.

No que se refere ao humor, um caso paradigmático que demonstra a abrangência que eles dão à liberdade de expressão foi retratado no filme “O Povo contra Larry Flynt”.

Os fatos que deram origem ao processo judicial, que chegou até a Suprema Corte, foram bem interessantes.

Larry Flynt, o dono da revista pornográfica “Hustler Magazine”, publicou a seguinte matéria:



Em síntese, o quadrinho narra como teria sido a primeira vez em que o reverendo Jerry Falwell, um dos líderes religiosos mais conservadores dos EUA, teria feito sexo. Para resumir, o texto insinua, em tom de brincadeira, que Falwell teria perdido a virgindade com a mãe dele!


Em letrinhas miúdas, na parte de baixo do anúncio, houve a preocupação de incluir os seguintes dizeres: "ad parody - not to be taken seriously". Ou seja: não leve a sério o anúncio.

É óbvio que o reverendo Falwell não ficou contente com aquilo. Por isso, ingressou com ação indenizatória, alegando que a matéria difamatória teria lhe causado danos emocionais e morais. Ganhou nas instâncias inferiores. O caso chegou até a Suprema Corte.

Infelizmente, terei que contar o final do filme para continuar o raciocínio.

A Suprema Corte norte-americana, em suma, entendeu que a brincadeira estaria protegida pela liberdade de expressão. Em resumo, argumentou-se (a) que "a livre circulação de idéias encontra-se no coração da primeira emenda"; (b) que as figuras públicas estão sujeitas a uma crítica mais intensa da mídia e do público de um modo geral; (c) que as sátiras estão protegidas pela liberdade de manifestação de pensamento; (d) que mesmo os discursos ofensivos e desagradáveis estão, em princípio, protegidos pela liberdade de expressão, ainda que a sociedade não simpatize com as idéias.
Para ver os argumentos na íntegra (em inglês), basta clicar aqui.


Não sei se aqui no Brasil o processo teria o mesmo desfecho, até porque, além da ofensa à honra do líder religioso, a matéria foi publicada com claro objetivo comercial, ilustrando uma propaganda do “Campari”. Ou seja, o nome, a imagem e a reputação de Jerry Falwell foram indevidamente utilizados para vender mais bebidas.

Tirando isso, se fosse um quadro humorístico “impessoal”, ou seja, que não atingisse nenhuma pessoa em particular, não vejo motivo para excluí-lo da proteção constitucional, especialmente porque foi publicado em revista dirigida ao público adulto.

O que quero dizer é que a mera narração de uma atividade sexual, sobretudo em tom humorístico e voltada a um público adulto, estaria, em princípio, protegida pela garantia constitucional de livre manifestação do pensamento, não podendo ser objeto de censura. Creio que até mesmo os juristas mais conservadores concordariam com essa conclusão.

O problema da piada “Os Aristocratas” é este: por mais que seja apenas uma piada, será que todos estão dispostos a ouvir esse tipo de brincadeira? Será que o ambiente em que a piada é contada não deve ser levado em conta?

Acredito que o ambiente em que a piada está sendo contada é um fator de suma importância para solução do caso. Contar a piada numa igreja ou numa escola infantil certamente é uma afronta ao público que não pode ser tolerada. Do mesmo modo, e aqui estou apenas especulando, talvez contar no “Programa do Jô” viole o artigo 221 da CF/88, quando diz que a programação das emissoras de televisão deverá respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família. Embora o público do “Jô” seja basicamente adulto, certamente nem todo mundo espera ouvir uma piada de tamanho mau gosto.

Por outro lado, num Teatro com o público já sabendo de antemão que o comediante conta piadas de humor negro, talvez a balança vá para o lado da liberdade de expressão.

Foi mais ou menos o que decidiu o STF no já mencionado caso Gerald Thomas. Quando mostrou as nádegas e simulou uma masturbação como reação às vaias do público que o assistia, Gerald Thomas estava em um Teatro, no Rio de Janeiro, às duas horas da madrugada, após o término de uma peça que continha cenas de nudez. Por isso, foi inocentado da prática de ato obsceno, pelo STF, que entendeu que o ato estaria protegido pela liberdade artística. Certamente, se o mesmo ato fosse praticado às nove horas da manhã, numa peça de teatro infantil, a solução seria diferente.

Além disso, há ainda a questão da discriminação. Não sei se é possível estabelecer uma imunidade completa para os humoristas ofenderem suas "vítimas" à vontade. Devem existir limites, embora, confesso, não acho que seja possível defini-los abstratamente.

Lembro, por exemplo, do caso "João Kléber", que sofreu problemas com a Justiça por fazer piadas de mau-gosto contra os homossexuais. O apresentador costumava fazer pegadinhas que discriminavam os gays. Por isso, teve que tirar seu programa do ar.

Do mesmo modo, o Ratinho sofreu ação judicial em razão de explorar a miséria humana em seus programas, especialmente as deficiências físicas. O STJ julgou contra o apresentador.

Perceba que, nesses casos de programas televisivos, a potencialidade da ofensa é muito maior do que numa publicação restrita, pois o público é atingido pela informação de forma quase involuntária. Por isso, há uma necessidade maior de restringir a liberdade de expressão em favor da construção de uma sociedade sem preconceitos. Isso, contudo, não significa que devemos criar uma "ditadura dos direitos fundamentais". O discurso politicamente correto em excesso pode se tornar uma forma de tirania tão maléfica quanto à própria discriminação.

Em síntese, como qualquer questão envolvendo colisão de valores constitucionais, a discussão é tópica e complexa. A solução vai depender bastante das informações do caso concreto. E o magistrado deve ter a sensibilidade para fazer uma correta ponderação dos valores em jogo, de modo a prestigiar a harmonização dos princípios em colisão, dentro dos critérios da proporcionalidade. (Adoro essa resposta. Serve pra tudo!).

Marcha da Maconha: um "tapinha" na democracia

Assistindo ao Fantástico ontem à noite, fiquei impressionado com a falta de maturidade democrática de nosso país, especialmente porque, no caso, houve o aval do Judiciário.


Foram concedidas diversas ordem judiciais pelo Brasil afora proibindo a realização da "Marcha da Maconha", evento que pretendia reunir pessoas favoráveis à legalização da droga no país.


Confesso que não tenho opinião formada quanto ao mérito da questão em si (liberação da maconha), mas a tese não é tão absurda ao ponto de se proibir até mesmo a sua discussão. Talvez existam alguns crimes que sejam tão abomináveis que a mera defesa de sua descriminalização soe como uma heresia. Pedofilia e racismo se incluem nessa linha. Mas a legalização da droga? Desde que me entendo por gente esse assunto é discutido abertamente sem censura, até mesmo em respeitáveis congressos jurídicos. Por que proibir uma marcha em defesa da tese?

O Dimitri Dimoulis e o Leonardo Martins, no seu "Teoria dos Direitos Fundamentais" (ed. Revista dos Tribunais), apresentam um estudo de caso bem interessante envolvendo uma questão muito parecida. Eles chamaram o hipotético caso de "A Polêmica da Camiseta". Em síntese, um estudante universitário foi punido disciplinarmente pela faculdade em que estudava por usar uma camiseta com os seguintes dizeres: "meu patrão, que bebe uísque, é considerado um cidadão exemplar. Eu, que fumo maconha, sou chamado de marginal? Legalize já!"

Eles apresentaram excelentes argumentos em favor do aluno, concluindo que sua atitude estaria protegida pelo direito fundamental à liberdade de expressão, já que o que o aluno fez foi uma defesa, no plano das idéias, da mudança da lei penal e não um defesa do seu desrespeito, o que configuraria apologia ao crime.


Pelo que vi no site do movimento "Marcha da Maconha", também não há qualquer estímulo ao desrespeito à lei penal, tanto que há a seguinte advertência em destaque: "é proibido o uso da maconha na marcha".


Estou ansioso para ver o fundamento das decisões judiciais, pois confesso que não consigo encontrar qualquer suporte jurídico minimamente consistente capaz de justificar uma medida tão anti-democrática.


Onde está o direito de reunião? Onde está a liberdade de expressão? Defender a legalização da maconha é ato ilícito?

Enquanto houver esse tipo de patrulhamento ideológico, não se pode dizer que se vive numa democracia.

De qualquer modo, os organizadores do evento certamente atingiram seu objetivo que foi chamar a atenção da sociedade. Nas capitais em que a marcha foi autorizada, praticamente não houve repercussão. Se havia cem manifestantes era muito e tudo transcorreu tranqüilamente. Já nas cidades em que houve proibição, houve confronto com a polícia e a mídia divulgou tudo abertamente. No final, as ordens judiciais foram até boas (do ponto de vista publicitário) para os participantes da marcha. Tenho certeza de que a próxima contará com algumas dezenas de milhares de participantes... Tudo graças à proibição!

Para finalizar, dentro do espírito do post, disponibilizo um video clipe de uma música do Bob Marley interpretada pelo Ministro Gilberto Gil:



quarta-feira, 30 de abril de 2008

Limites do Direito Fundamental ao Riso: "Os Aristocratas" (Por Adriano Costa)

Estava no aconchego do lar, na semana passada, fazendo uso do mais sensacional artefato que o gênio humano jamais produziu – o controle remoto –, quando me deparei com certo documentário exibido na HBO, intitulado “Os Aristocratas”. Vários comediantes americanos foram surgindo na tela, e descobri que o título se referia a uma “piada secreta” da classe dos humoristas, contada em público apenas em raríssimas oportunidades. Foi muito bacana ver tantos rostos famosos lembrando a primeira vez em que a ouviram, as poucas ocasiões em que tiveram a coragem de contá-la em público, as vaias e aplausos que receberam justamente por fazê-lo, etc.


Sábado último, tive a oportunidade de conversar sobre o tema com o titular do blog, que partilha do mesmo senso se humor que este escriba. Risadas à parte, não pudemos deixar de conjecturar – em altíssimo nível acadêmico, lógico – que tratamento jurídico a tal anedota mereceria à luz da dogmática jusfundamental brasileira. Eis então que o George pediu para redigir um post sobre o assunto, e aqui estamos.


A questão central é que muita gente não consideraria “Os Aristocratas” uma piada.


Trata-se da narrativa mais inacreditavelmente tresloucada, grosseira, escatológica, politicamente-incorreta, sarcástica, que já tomou a forma de anedota. Uma família (pai, mãe, o casalzinho de filhos e seu cachorro) vai até uma casa de espetáculos, e o pai afirma que têm um número a apresentar. Quando o produtor pede que comecem, inicia-se um espetáculo absurdo, envolvendo toda a família – inclusive o cachorro (usem a imaginação!). Minutos depois, atônito com o que está vendo, o produtor berra: “mas que número é esse”? O pai, então, responde e finaliza essa obra-prima do humor non-sense: “os Aristocratas”.


No vasto catálogo de direitos fundamentais, poucos ensejam debates tão acalorados quanto a liberdade de expressão. Entre nós, a elaboração jurisprudencial sobre o assunto é bem farta, haja vista a enorme quantidade de demandas envolvendo pleitos de danos morais por supostos abusos no exercício deste direito. Não obstante, ainda engatinhamos no desenvolvimento de uma dogmática segura, apta a facilitar a vida dos magistrados no difícil exercício da ponderação valorativa. Nesse contexto é que a “mãe de todas as piadas” se insere como hipótese interessante de discussão acadêmica. Pois não se enganem: falamos de anedota cujo propósito não é apenas fazer rir, mas também chocar.


Por seu “conteúdo aberto”, que abre ao narrador um “vasto campo de conformação” que pode ofender mais ou menos conforme os valores protegidos por determinada “sociedade aberta”, “Os Aristocratas” ganha novas nuances de acordo com as intenções do falante. Assim, a tal família protagonista pode passar a ser integrada por membros de certa raça, etnia, religião, etc... Ora, isto é um prato cheio para o humor negro. Para se ter uma idéia, em sua versão, o impagável gordinho Cartman, do desenho animado “South Park”, ainda acrescenta um toque de 11 de setembro! Sensacional.


Dito isto, indaga-se: que conseqüências jurídicas haveria se alguém a contasse, digamos, no programa de Jô Soares? Ou no Teatro José de Alencar lotado? O piadista poderia vir a ser processado e condenado por crime de racismo (art. 5º, XLII), caso incluísse alguma minoria na narrativa? Sujeitar-se-ia ao pagamento de indenização por danos morais, considerando que cabe ao Poder Judiciário punir “qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI)? Ou simplesmente estaria exercendo os direitos fundamentais à livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV) e da expressão artística (art. 5º, IX)?


Em trecho de seu Epílogo à Teoria dos Direitos Fundamentais, que transcrevi em minha dissertação de mestrado, Robert Alexy apresenta interessante caso. Certa revista humorística alemã, chamada Titanic, rotulara um oficial da reserva, primeiro, de “assassino nato”, e depois, em edição posterior, de “aleijado”. Ocorre que o ofendido era, efetivamente, paraplégico. Indignado, acionou a publicação por ambas as adjetivações, obtendo ganho de causa nas esferas ordinárias. Interposto o recurso perante o TCF, a corte ponderou que a expressão “assassino nato” deveria ser interpretada à luz das sátiras que eram publicadas de hábito pela revista, de sorte que a condenação a este título resultaria numa “intervenção desproporcional” na liberdade de expressão; assim, acolheu o apelo da revista para negar o direito à indenização. De outra banda, considerou que o termo “aleijado” vulnerava “gravemente o direito à honra” do oficial, que possuía deficiência física. Neste particular, a intervenção seria justificada, face à proteção do direito à honra. O recurso foi, neste ponto, negado. Foi notável a técnica de ponderação adotada pela corte, que de uma banda condenou a violação à dignidade humana, mas por outra isentou a revista da obrigação de indenizar.


Entre nós, veio-me logo à mente, para fins de comparação, o caso Gerald Thomas, muito bem analisado aqui mesmo no blog: confira-se em http://georgemlima.blogspot.com/2007/08/jurisprudenciando-casos-curiosos.html. O conhecido diretor teatral, como represália à platéia que o vaiava, despiu-se e simulou se masturbar diante de todos. Acabou preso. Em sede de habeas corpus, o STF devolveu-lhe a liberdade (o julgamento terminou empatado, prevalecendo a tese mais favorável ao paciente). Assinalou a corte que, em casos tais, “não se pode olvidar o contexto em que se verificou o ato”, e que certas atitudes, mesmo que “inadequadas e deseducadas”, também podem inserir-se no contexto da liberdade de expressão.


Mas é o seguinte trecho, extraído da ementa do julgado, que a meu ver legitimaria que alguém contasse “Os Aristocratas” por aqui: “a sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados, como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando-se o enquadramento penal”. Faz todo o sentido. O senso de humor é, inegavelmente, uma manifestação da personalidade. A mesma sátira politicamente incorreta que soa ofensiva para alguns, faz com que outros se divirtam a valer. Neste panorama, os direitos fundamentais devem operar como as salvaguardas de liberdade que são, pois aceitar o contrário seria convertê-los em instrumentos daquilo que nasceram exatamente para combater: o arbítrio, a opressão, o abuso de poder. A história revela inúmeros casos em que alguém ou uma instituição acabou se tornando sua própria nêmese. Por isso, devemos estar atentos para que não acabemos criando uma “ditadura de direitos fundamentais”.


Como o post já ficou demasiado longo e não pretendo esgotar a discussão (mas sim incentivá-la), encerro desejando vida longa aos “Aristocratas”, à liberdade de expressão, e a todas as formas de humor politicamente incorreto. Saúde!

terça-feira, 29 de abril de 2008

Titularidade de Direitos Fundamentais por Estrangeiros Não-Residentes no País

O Informativo 502 do STF transcreveu decisão do Ministro Celso de Mello reconhecendo o direito de estrangeiro não-residente de impetrar habeas-corpus, afastando a interpretação literal do caput do artigo 5, da CF/88. Eis um pequeno trecho:

"o fato de o paciente ostentar a condição jurídica de estrangeiro e de não possuir domicílio no Brasil não lhe inibe, só por si, o acesso aos instrumentos processuais de tutela da liberdade nem lhe subtrai, por tais razões, o direito de ver respeitadas, pelo Poder Público, as prerrogativas de ordem jurídica e as garantias de índole constitucional que o ordenamento positivo brasileiro confere e assegura a qualquer pessoa que sofra persecução penal instaurada pelo Estado" (STF, HC 94016 MC/SP, rel. Min. Celso de Mello, j. 7/4/2008).
A decisão na íntegra pode ser lida lá embaixo.

O pensamento coincide com o que defendi no Curso de Direitos Fundamentais.

Veja o tópico que trata do assunto:



Os Estrangeiros não-residentes como Potenciais Titulares de Direitos Fundamentais


Por George Marmelstein, Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional


O caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988 diz que os direitos fundamentais são assegurados aos “brasileiros e estrangeiros residentes no País”. A locução é infeliz. Ela diz bem menos do que deveria dizer. Ou será que os estrangeiros não residentes no País não teriam direitos fundamentais?


Defender a interpretação literal da referida expressão poderia levar ao absurdo de se considerar que apenas os brasileiros e os estrangeiros residentes no País, do sexo masculino, poderiam ser titulares de direitos fundamentais. Afinal, o texto não menciona nem as brasileiras nem as estrangeiras.


Na verdade, a Constituição não pode ser interpretada “em tiras ou em pedaços”, como sempre lembra o Ministro Eros Grau do Supremo Tribunal Federal. Por isso, a expressão “brasileiros e estrangeiros residentes no País” deve ser analisada junto com o princípio da dignidade da pessoa humana. A partir do momento em que o constituinte positivou o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), pretendeu-se atribuir direitos fundamentais a todos os seres humanos, independentemente de nacionalidade.


Assim, mesmo os estrangeiros (ou estrangeiras) que estejam no país apenas de passagem – fazendo turismo, por exemplo – podem ser titulares dos direitos fundamentais previstos na Constituição[1]. Naturalmente, eles também podem fazer uso de todos os instrumentos processuais de proteção a esses direitos, salvo naqueles casos em que a própria Constituição limitou o exercício. Certamente, um estrangeiro não-residente não poderia ingressar com uma ação popular, por exemplo, pois, nesse caso, a legitimidade ativa é restrita aos cidadãos (art. 5º, inc. LXXIII), e o estrangeiro (até mesmo o que reside aqui no país) não possui cidadania (no sentido eleitoral), já que a nacionalidade brasileira é condição de elegibilidade (art. 14, §3º, inc. III, da CF/88). No mais, não havendo qualquer norma constitucional impeditiva, o estrangeiro não-residente pode ingressar, em princípio, com qualquer ação constitucional de defesa de seus direitos fundamentais. Nesse sentido, o STF, já nos idos de 1958, assinalou que “o estrangeiro, embora não residente no Brasil, goza do direito de impetrar mandado de segurança”[2].


Aliás, até um estrangeiro que nem mesmo esteja no território brasileiro pode, eventualmente, ser titular de direitos fundamentais. Imagine, por exemplo, a situação de um estrangeiro que tenha investimentos no país. Naturalmente, ele é titular de inúmeros direitos decorrentes de sua condição, como o direito de propriedade, os direitos tributários, os direitos processuais etc e pode invocá-los em seu favor perante os tribunais nacionais sem qualquer problema[3]. Isso sem falar que existe um direito fundamental que é próprio de estrangeiros não-residentes: o direito de asilo político, previsto no art. 4º, inc. X, da CF/88.


A Constituição, em nenhum momento, diz expressamente que os estrangeiros não-residentes no País não podem exercer os direitos fundamentais. Apenas silencia a respeito. Assim, levando em conta o espírito humanitário que inspira todo o ordenamento constitucional, conclui-se que qualquer pessoa pode ser titular de direitos fundamentais. O importante é que a pessoa esteja, de algum modo, sob a jurisdição brasileira[4].


Além disso, mesmo que se interprete restritivamente o caput do artigo 5º, os estrangeiros não residentes no país poderiam ser titulares de direitos fundamentais por força do artigo 1º do Pacto de San Jose da Costa Rica, que considera que todo ser humano pode ser titular desses direitos.


Esse raciocínio vale para qualquer direito fundamental e não apenas para os direitos previstos no art. 5º.


Nesse sentido, merece ser transcrita a ementa de um interessante julgado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que reconheceu o direito à saúde a um estrangeiro que estava no país em situação irregular, determinando que o SUS (Sistema Único de Saúde) custeasse o seu transplante de medula:


“SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. TRANSPLANTE DE MEDULA. TRATAMENTO GRATUITO PARA ESTRANGEIRO. ART. 5º DA CF.
O art. 5º da Constituição Federal, quando assegura os direitos garantias fundamentais a brasileiros e estrangeiros residente no País, não está a exigir o domicílio do estrangeiro.
O significado do dispositivo constitucional, que consagra a igualdade de tratamento entre brasileiros e estrangeiros, exige que o estrangeiro esteja sob a ordem jurídico-constitucional brasileira, não importa em que condição.
Até mesmo o estrangeiro em situação irregular no País encontra-se protegido e a ele são assegurados os direitos e garantias fundamentais. (TRF 4ª Região, AG 2005040132106/PR, j. 29/8/2006)”.


E nem se pense que esse posicionamento reflete uma mentalidade infantil típica da cordialidade brasileira. Até mesmo em um país individualista e ultranacionalista como os Estados Unidos da América, entende-se que os estrangeiros ilegais também podem ser titulares de direitos fundamentais. Por exemplo, no Caso “Plyler vs. Doe”, a Suprema Corte daquele país reconheceu a inconstitucionalidade de uma lei do Texas que negava educação pública às crianças que não haviam ingressado legalmente no país. A Corte, acolhendo a alegação de um grupo de crianças do México, reconheceu que a lei texana era inconstitucional por violar a cláusula da igualdade[5].

Notas de rodapé:

[1] Em sentido contrário: “Inexistência de violação à isonomia. a Constituição Federal dispondo literalmente sobre a igualdade de tratamento entre brasileiros e estrangeiros residentes no país, norma que expressamente não inclui em seu alcance a situação de estrangeiros não residentes no país” (TRF 3, HC 16239-SP, rel. Juiz Peixoto Júnior, j. 8/6/2004).


[2] STF, MS 4706/DF, rel. Min. Ari Franco, j. 31/7/1958.


[3] Nesse sentido, em um julgamento de 1957, o STF entendeu que “o direito de propriedade é garantido a favor do estrangeiro não residente” (STF, RE 33.319/DF, rel. Min. Cândido Motta, j. 7/11/1957.


[4] A esse respeito, vale citar o seguinte acórdão do Supremo Tribunal Federal, envolvendo a extradição de um estrangeiro: “a essencialidade da cooperação internacional na repressão penal aos delitos comuns não exonera o Estado brasileiro - e, em particular, o Supremo Tribunal Federal - de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que venha a sofrer, em nosso País, processo extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado estrangeiro. O extraditando assume, no processo extradicional, a condição indisponível de sujeito de direitos, cuja intangibilidade há de ser preservada pelo Estado a que foi dirigido o pedido de extradição (o Brasil, no caso). O Supremo Tribunal Federal não deve autorizar a extradição, se se demonstrar que o ordenamento jurídico do Estado estrangeiro que a requer não se revela capaz de assegurar, aos réus, em juízo criminal, os direitos básicos que resultam do postulado do ‘due process of law’ (RTJ 134/56-58 - RTJ 177/485-488), notadamente as prerrogativas inerentes à garantia da ampla defesa, à garantia do contraditório, à igualdade entre as partes perante o juiz natural e à garantia de imparcialidade do magistrado processante” (STF, Ext953/RFA, Relator Min. Celso de Mello, j. 28/9/2005).


[5] Cf. SUNSTEIN, Cass R. The second bill of rights: FDR’s revolution and why we need it more than ever. New York: Basic Books, 2004, p. 150. Vale ressaltar, contudo, que, em matéria de saúde, o sistema norte-americano é um dos mais injustos do mundo. Há, inclusive, um ótimo documentário, produzido pelo cineasta Michael Moore, chamado “Sicko” (2007), que retrata as distorções do sistema de saúde – público e privado – nos Estados Unidos. Lá, cerca de 40% da população não possuem plano de saúde nem são assistidas pelo Estado"

(extraído de: MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, no prelo).


Eis a decisão, na íntegra, do Ministro Celso de Mello, extraída do Informativo 502 do STF:


Estrangeiro não residente no Brasil - Garantia do devido processo - Interrogatório judicial - Co-réu – Repergunta (Transcrições)HC 94016 MC/SP*


RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

EMENTA: “HABEAS CORPUS”. ESTRANGEIRO NÃO DOMICILIADO NO BRASIL. CONDIÇÃO JURÍDICA QUE NÃO O DESQUALIFICA COMO SUJEITO DE DIREITOS. PLENITUDE DE ACESSO, EM CONSEQÜÊNCIA, AOS INSTRUMENTOS PROCESSUAIS DE TUTELA DA LIBERDADE. RESPEITO, PELO PODER PÚBLICO, ÀS PRERROGATIVAS JURÍDICAS QUE COMPÕEM O PRÓPRIO ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE DEFESA. A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW” COMO EXPRESSIVA LIMITAÇÃO À ATIVIDADE PERSECUTÓRIA DO ESTADO (INVESTIGAÇÃO PENAL E PROCESSO PENAL). O CONTEÚDO MATERIAL DA CLÁUSULA DE GARANTIA DO “DUE PROCESS”. INTERROGATÓRIO JUDICIAL. NATUREZA JURÍDICA. POSSIBILIDADE DE QUALQUER DOS LITISCONSORTES PENAIS PASSIVOS FORMULAR REPERGUNTAS AOS DEMAIS CO-RÉUS, NOTADAMENTE SE AS DEFESAS DE TAIS ACUSADOS SE MOSTRAREM COLIDENTES. PRERROGATIVA JURÍDICA CUJA LEGITIMAÇÃO DECORRE DO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. PRECEDENTE DO STF (PLENO). MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

DECISÃO:

Trata-se de “habeas corpus”, com pleito de ordem cautelar, impetrado contra decisão emanada de eminente Ministro de Tribunal Superior da União, que, em sede de outra ação de “habeas corpus” ainda em curso no Superior Tribunal de Justiça (HC 100.204/SP), denegou medida liminar que lhe havia sido requerida em favor do ora paciente, que possui nacionalidade russa, que tem domicílio no Reino Unido e é portador de passaporte britânico (fls. 02).

Presente tal contexto, impende verificar, desde logo, se a situação processual versada nestes autos justifica, ou não, o afastamento, sempre excepcional, da Súmula 691/STF.

Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal, ainda que em caráter extraordinário, tem admitido o afastamento, “hic et nunc”, da Súmula 691/STF, em hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante nesta Corte ou, então, veicule situações configuradoras de abuso de poder ou de manifesta ilegalidade (HC 85.185/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 89.025-MC-AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g.).

Parece-me que a situação exposta nesta impetração ajusta-se às hipóteses que autorizam a superação do obstáculo representado pela Súmula 691/STF. Passo, em conseqüência, a examinar a postulação cautelar ora deduzida nesta sede processual.

Cumpre reconhecer, desde logo, por necessário, que o fato de o paciente ostentar a condição jurídica de estrangeiro e de não possuir domicílio no Brasil não lhe inibe, só por si, o acesso aos instrumentos processuais de tutela da liberdade nem lhe subtrai, por tais razões, o direito de ver respeitadas, pelo Poder Público, as prerrogativas de ordem jurídica e as garantias de índole constitucional que o ordenamento positivo brasileiro confere e assegura a qualquer pessoa que sofra persecução penal instaurada pelo Estado.

Isso significa, portanto, na linha do magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (RDA 55/192 – RF 192/122) e dos Tribunais em geral (RDA 59/326 – RT 312/363), que o súdito estrangeiro, mesmo o não domiciliado no Brasil, tem plena legitimidade para impetrar os remédios constitucionais, como o mandado de segurança ou, notadamente, o “habeas corpus”:

“- É inquestionável o direito de súditos estrangeiros ajuizarem, em causa própria, a ação de ‘habeas corpus’, eis que esse remédio constitucional - por qualificar-se como verdadeira ação popular - pode ser utilizado por qualquer pessoa, independentemente da condição jurídica resultante de sua origem nacional.”(RTJ 164/193-194, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Cabe advertir, ainda, que também o estrangeiro, inclusive aquele que não possui domicílio em território brasileiro, tem direito público subjetivo, nas hipóteses de persecução penal, à observância e ao integral respeito, por parte do Estado, das prerrogativas que compõem e dão significado à cláusula do devido processo legal, pois – como reiteradamente tem proclamado esta Suprema Corte (RTJ 134/56-58 – RTJ 177/485-488 - RTJ 185/393-394, v.g.) – a condição jurídica de não-nacional do Brasil e a circunstância de esse mesmo réu estrangeiro não possuir domicílio em nosso país não legitimam a adoção, contra tal acusado, de qualquer tratamento arbitrário ou discriminatório.

O fato irrecusável é um só: o súdito estrangeiro, ainda que não domiciliado no Brasil, assume, sempre, como qualquer pessoa exposta a atos de persecução penal, a condição indisponível de sujeito de direitos, cuja intangibilidade há de ser preservada pelos magistrados e Tribunais deste país, especialmente por este Supremo Tribunal Federal.Nesse contexto, impõe-se, ao Judiciário, o dever de assegurar, mesmo ao réu estrangeiro sem domicílio no Brasil, os direitos básicos que resultam do postulado do devido processo legal, notadamente as prerrogativas inerentes à garantia da ampla defesa, à garantia do contraditório, à igualdade entre as partes perante o juiz natural e à garantia de imparcialidade do magistrado processante.

A essencialidade dessa garantia de ordem jurídica reveste-se de tamanho significado e importância no plano das atividades de persecução penal que ela se qualifica como requisito legitimador da própria “persecutio criminis”.Daí a necessidade de se definir o alcance concreto dessa cláusula de limitação que incide sobre o poder persecutório do Estado.O exame da garantia constitucional do “due process of law” permite nela identificar alguns elementos essenciais à sua própria configuração, destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a auto-incriminação); (l) direito à prova; e (m) direito de presença e de “participação ativa” nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes.

Não constitui demasia assinalar, neste ponto, analisada a função defensiva sob uma perspectiva global, que o direito do réu à observância, pelo Estado, da garantia pertinente ao “due process of law”, além de traduzir expressão concreta do direito de defesa, também encontra suporte legitimador em convenções internacionais que proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu estrangeiro, sem domicílio em território brasileiro, aqui processado por suposta prática de delitos a ele atribuídos.

A justa preocupação da comunidade internacional com a preservação da integridade das garantias processuais básicas reconhecidas às pessoas meramente acusadas de práticas delituosas tem representado, em tema de proteção aos direitos humanos, um dos tópicos mais sensíveis e delicados da agenda dos organismos internacionais, seja em âmbito regional, como o Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 8º), aplicável ao sistema interamericano, seja em âmbito global, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 14), celebrado sob a égide da Organização das Nações Unidas, e que representam instrumentos que reconhecem, a qualquer réu, dentre outras liberdades eminentes, o direito à plenitude de defesa e às demais prerrogativas que derivam da cláusula concernente à garantia do devido processo.Reconhecido, desse modo, que o súdito estrangeiro, mesmo aquele sem domicílio no Brasil, tem direito a todas as prerrogativas básicas que derivam da cláusula constitucional do “due process of law”, passo a examinar o pedido de medida cautelar ora formulado nesta sede processual.

E, ao fazê-lo, entendo que a magnitude do tema constitucional versado na presente impetração impõe que se conceda a presente medida cautelar, seja para impedir que se desrespeite uma garantia instituída pela Constituição da República em favor de qualquer réu, seja para evitar eventual declaração de nulidade do processo penal instaurado contra o ora paciente e em curso perante a Justiça Federal da 1ª Subseção Judiciária do Estado de São Paulo (São Paulo/Capital).A questão suscitada nesta causa concerne ao debate em torno da possibilidade jurídica de um dos litisconsortes penais passivos, invocando a garantia do “due process of law”, ver assegurado o seu direito de formular reperguntas aos co-réus, quando do respectivo interrogatório judicial.

Daí as razões que dão suporte à presente impetração deduzida em favor de um súdito estrangeiro que não possui domicílio no território brasileiro e que, não obstante tais circunstâncias, pretende ver respeitado, em procedimento penal contra ele instaurado, o direito à plenitude de defesa e ao tratamento paritário com o Ministério Público, em ordem a que se lhe garanta, por intermédio de seus Advogados, “(...) a oportunidade de participação no interrogatório dos demais co-réus (...)” (fls. 04).

Não foi por outro motivo que os ora impetrantes, para justificar sua pretensão, buscam, por este meio processual, que se permita, “(...) aos defensores de co-réu, não só a ‘presença’ nos interrogatórios dos demais co-réus, mas, igualmente, sua ‘participação ativa’ - nas exatas palavras do Plenário dessa egrégia Corte no precedente citado (AgR AP 470, Min. JOAQUIM BARBOSA) -, o exercício do contraditório e da ampla defesa, formulando as reperguntas que entenderem necessárias, ficando a critério do magistrado que preside o ato fazê-las, ou não, ao interrogando, de acordo com a pertinência de cada esclarecimento requerido” (fls. 20 - grifei).As razões ora expostas justificam – ao menos em juízo de estrita delibação – a plausibilidade jurídica da pretensão deduzida nesta sede processual, especialmente se se considerar o precedente que o Plenário desta Suprema Corte firmou no exame da matéria:

“(...) AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA (...). INTERROGATÓRIOS (...). PARTICIPAÇÃO DOS CO-RÉUS. CARÁTER FACULTATIVO. INTIMAÇÃO DOS DEFENSORES NO JUÍZO DEPRECADO........................................................É legítimo, em face do que dispõe o artigo 188 do CPP, que as defesas dos co-réus participem dos interrogatórios de outros réus.Deve ser franqueada à defesa de cada réu a oportunidade de participação no interrogatório dos demais co-réus, evitando-se a coincidência de datas, mas a cada um cabe decidir sobre a conveniência de comparecer ou não à audiência (...).”(AP 470-AgR/MG, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - grifei)Ninguém ignora a importância de que se reveste, em sede de persecução penal, o interrogatório judicial, cuja natureza jurídica permite qualificá-lo, notadamente após o advento da Lei nº 10.792/2003, como ato de defesa (ADA PELLEGRINI GRINOVER, “O interrogatório como meio de defesa (Lei 10.792/2003)”, “in” Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 53/185-200; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código de Processo Penal Comentado”, p. 387, item n. 3, 6ª ed., 2007, RT; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 174, 21ª ed., 2004, Saraiva; DIRCEU A. D. CINTRA JR., “Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisdicional”, coordenação: ALBERTO SILVA FRANCO e RUI STOCO, p. 1.821, 2ª ed., 2004, RT; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Processo Penal”, vol. 3/269-273, item n. 1, 28ª ed., 2006, Saraiva, v.g.), ainda que passível de consideração, embora em plano secundário, como fonte de prova, em face dos elementos de informação que dele emergem.Essa particular qualificação jurídica do interrogatório judicial, ainda que nele se veja um ato simultaneamente de defesa e de prova (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 510, item n. 185.1, 11ª ed., 2007, Atlas, v.g.), justifica o reconhecimento de que se revela possível, no plano da persecutio criminis in judicio, “(...) que as defesas dos co-réus participem dos interrogatórios de outros réus (...)” (AP 470-AgR/MG, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Pleno – grifei)

Esse entendimento que o Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou no precedente referido reflete-se, por igual, no magistério da doutrina, como resulta claro da lição de EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA (“Curso de Processo Penal”, p. 29, item n. 3.1.4, 9ª ed., 2008, Lumen Juris):“Embora ainda haja defensores da idéia de que a ampla defesa vem a ser apenas o outro lado ou a outra medida do contraditório, é bem de ver que semelhante argumentação peca até mesmo pela base.É que, da perspectiva da teoria do processo, o contraditório não pode ir além da ‘garantia de participação’, isto é, a garantia de a parte poder impugnar - no processo penal, sobretudo a defesa - toda e qualquer alegação contrária a seu interesse, sem, todavia, maiores indagações acerca da concreta efetividade com que se exerce aludida impugnação.

E, exatamente por isso, não temos dúvidas em ver incluído, no princípio da ampla defesa, o direito à participação da defesa técnica - do advogado - de co-réu durante o interrogatório de ‘todos os acusados’. Isso porque, em tese, é perfeitamente possível a colisão de interesses entre os réus, o que, por si só, justificaria a participação do defensor daquele co-réu sobre quem recaiam acusações por parte de outro, por ocasião do interrogatório. A ampla defesa e o contraditório exigem, portanto, a participação dos defensores de co-réus no interrogatório de ‘todos os acusados’.” (grifei)Esse mesmo entendimento, por sua vez, é perfilhado por ANTONIO SCARANCE FERNANDES (“Prova e sucedâneos da prova no processo penal”, “in” Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 66, p. 224, item n. 12.2):“(...) Ressalta-se que, em virtude de recente reforma do Código, o advogado do co-réu tem direito a participar do interrogatório e formular perguntas.” (grifei)Igual percepção do tema é revelada por AURY LOPES JR (“Direito Processual e sua Conformidade Constitucional”, vol. I/603-605, item n. 2.3, 2007, Lumen Juris):“No que tange à disciplina processual do ato, cumpre destacar que - havendo dois ou mais réus - deverão eles ser interrogados separadamente, como exige o art. 191 do CPP. Aqui existe uma questão muito relevante e que não tem obtido o devido tratamento por parte de alguns juízes, até pela dificuldade de compreensão do alcance do contraditório inserido nesse ato, por força da Lei nº 10.792/2003, que alterou os arts. 185 a 196 do CPP.

Até essa modificação legislativa, o interrogatório era um ato pessoal do juiz, não submetido ao contraditório, pois não havia qualquer intervenção da defesa ou acusação.

Agora a situação é radicalmente distinta. Tanto a defesa como a acusação podem formular perguntas ao final. Isso é manifestação do contraditório.

Nessa linha, discute-se a possibilidade de a defesa do co-réu fazer perguntas no interrogatório. Pensamos que, principalmente se as teses defensivas forem colidentes, deve o juiz permitir o contraditório pleno, com o defensor do outro co-réu (também) formulando perguntas ao final. Ou seja, deve o juiz admitir que o defensor do interrogando formule suas perguntas ao final, mas também deve permitir que o advogado do(s) outro(s) co-réu(s) o faça. Contribui para essa exigência o fato de que à palavra do co-réu é dado, pela maioria da jurisprudência, o valor probatório similar ao de prova testemunhal.” (grifei)

As razões que venho de expor, como precedentemente já havia salientado nesta decisão, convencem-me da absoluta plausibilidade jurídica de que se acha impregnada a pretensão deduzida pelos ilustres impetrantes.Concorre, por igual, o requisito concernente ao “periculum in mora”, que foi adequadamente demonstrado na presente impetração (fls. 23/24).

Sendo assim, e em face das razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, o andamento do Processo-crime nº 2006.61.81.008647-8, ora em tramitação perante a 6ª Vara Criminal Federal da 1ª Subseção Judiciária do Estado de São Paulo.Comunique-se, com urgência, encaminhando-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 100.204/SP), ao E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região (HC nº 2008.03.00.001033-6) e ao MM. Juiz da 6ª Vara Criminal Federal da 1ª Subseção Judiciária do Estado de São Paulo (Processo nº 2006.61.81.008647-8).

2. Oficie-se ao MM. Juiz Federal da 6ª Vara Criminal Federal da 1ª Subseção Judiciária do Estado de São Paulo, para que esclareça em que fase se acha, presentemente, o Processo-crime nº 2006.61.81.008647-8.

Publique-se.Brasília, 07 de abril de 2008.

Ministro CELSO DE MELLORelator* decisão publicada no DJE de 7.4.2008

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Jurisprudência Eleitoral

O amigo Leonardo Resende Martins, companheiro de vários concursos (vestibular, técnico judiciário, procurador do Estado-AL e juiz federal!) me enviou algumas decisões que ele proferiu durante sua atuação na justiça eleitoral, como corregedor do TRE-AL. A propósito, como o Leonardo assumiu o cargo com menos de trinta anos de idade, é bem provável que ele tenha sido um dos desembargadores eleitorais mais novos do país, sobretudo no papel de corregedor.

São decisões bem interessantes do ponto de vista da teoria dos direitos fundamentais e da moralidade eleitoral. Confira as ementas:


Ementa: AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DE PODER. FINANCIAMENTO OCULTO DE CAMPANHA. CANDIDATO “LARANJA”. DESVIO SISTEMÁTICO NO PROGRAMA ELEITORAL GRATUITO VISANDO A CAMPANHA OFENSIVA A ADVERSÁRIO. ABUSO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO. EXISTÊNCIA DE POTENCIALIDADE. AUSÊNCIA DE PROVA DE ACORDO ENTRE OS CANDIDATOS CO-RÉUS. PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO.
1. Não comprovação da existência de abuso do poder econômico e de comprometimento da liberdade de voto. Inexistência de provas.
2. O reiterado e contínuo desvio na utilização sistemática do horário eleitoral gratuito, praticado por candidato sem qualquer expressão nas pesquisas de intenção de voto, para o fim único de construir uma campanha ofensiva contra seu adversário configura abuso dos meios de comunicação social, na forma do art. 22 da LC 64/90.
3. A ausência de prova de suposto acordo havido entre o co-réu Eudo Moraes Freire Filho e os co-réus João José Pereira de Lyra e Celso Luiz Tenório Brandão afasta a responsabilidade destes últimos pelos abusos cometidos pelo primeiro.
4. Pedido julgado parcialmente procedente, apenas para o fim de aplicar ao co-réu Eudo Moraes Freire Filho a sanção de inelegibilidade pelo prazo de três anos, nos termos do art. 22, XIV, da LC 64/90.
Para ver o acórdão na íntegra, clique aqui.



Ementa: AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. DIVULGAÇÃO, NO DIA DA ELEIÇÃO, DE MATERIAL IMPRESSO E APÓCRIFO OFENSIVO À IMAGEM E À HONRA DE CANDIDATO AO CARGO DE DEPUTADO ESTADUAL. ABUSO DE PODER. POTENCIALIDADE. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
1. Configura abuso de poder a distribuição de material impresso e apócrifo por candidato a cargo de deputado estadual, no dia da eleição, para denegrir a imagem e a honra de seu concorrente político.
2. Existência de prova testemunhal sólida e coerente, capaz de demonstrar a direta participação do candidato réu na prática do abuso.
3. Presente a potencialidade para afetar a igualdade da disputa, porquanto o município onde foi feita a distribuição do material ofensivo era o principal reduto eleitoral dos dois candidatos, além do fato de que a divulgação dos impressos no próprio dia da eleição impediu o exercício, pelo ofendido, do direito de resposta, intensificando os efeitos da tática abusiva.
4. Representação julgada procedente, para o fim de decretar a inelegibilidade do réu.


Para ver na íntegra, clique aqui.



EMENTA: ELEITORAL. AIME. PRAZO. DECADÊNCIA. TÉRMINO DO PRAZO DURANTE O RECESSO FORENSE. PRORROGAÇÃO PARA O DIA ÚTIL SUBSEQÜENTE. CORRUPÇÃO. ABUSO DE PODER ECONÔMICO. PROVA SUFICIENTE. POTENCIALIDADE. RECURSO PROVIDO. AIME PROCEDENTE.
1. A despeito da natureza decadencial do prazo para a propositura de ação de impugnação de mandato eletivo, o TSE já consolidou entendimento de que permanece aplicável ao caso o disposto no art. 184, § 1º, I, do CPC, segundo o qual se considera prorrogado o prazo até o primeiro dia útil se o vencimento cair em feriado ou em dia em que for determinado o fechamento do fórum.
2. No caso dos autos, a diplomação dos eleitos ocorreu em 09/12/2004, razão pela qual, a princípio, o último dia para a propositura da ação seria 24/12/2004; no entanto, considerando que o fórum eleitoral se encontrava fechado em tal data em virtude do recesso forense previsto na Lei n. 5.010/66, urge concluir que o termo final do prazo se prorrogou para o dia útil subseqüente, qual seja, o dia 07/01/2005, data em que efetivamente foi protocolada a petição inicial, a revelar a sua tempestividade.
3. O conceito de corrupção, para os fins previstos no art. 14, § 10, da CF/88, não deve ficar restrito à conduta tipificada no art. 299 do Código Eleitoral (“dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita”), abrangendo inclusive aqueles atos que se enquadram na definição fixada na Convenção Interamericana contra a Corrupção, que considera ato de corrupção “a realização, por parte de um funcionário público ou pessoa que exerça funções públicas, de qualquer ato ou omissão no exercício de suas funções, a fim de obter ilicitamente benefícios para si mesmo ou para um terceiro” (art. VI, item “c”).
4. Devidamente comprovada, à luz da prova testemunhal, documental e pericial, a prática de corrupção e abuso de poder econômico, mediante a distribuição de madeira, consultas médicas, dinheiro e outros bens em troca do voto.
5. Considerando a reduzida diferença no número de votos dos candidatos e a extensão dos ilícitos praticados, a utilização de expedientes de captação ilícita de sufrágio ostenta suficiente potencialidade para abalar profundamente a lisura das eleições, proporcionando injusto desequilíbrio na disputa.
6. Prevalecendo a regra do art. 257 do Código Eleitoral, segundo a qual “os recursos eleitorais não terão efeito suspensivo”, a decisão que decreta a cassação do mandato eletivo há de ser cumprida imediatamente, empossando-se nos cargos de Prefeito e Vice-Prefeito os candidatos componentes da chapa que logrou o segundo lugar nas eleições municipais.
7. Recurso integralmente provido. Pedido de impugnação do mandato eletivo julgado procedente.

Para ver na íntegra, clique aqui.

domingo, 27 de abril de 2008

Para começar a semana

Começo a semana publicando dois posts que escrevi na semana passada, em Porto Alegre, após a leitura do livro “Julgamento de Sócrates”, de I. F. Stone. O primeiro trata do livro propriamente dito; o segundo, sobre uma passagem envolvendo a peça Antígona, de Sófocles.


Viajei para a capital gaúcha para participar de uma reunião, como membro da comissão organizadora do V FONAJEF – Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais, a ser realizado nos dias 17 a 19 de setembro, naquela cidade. Aliás, como fruto da reunião, fui incumbido de desenvolver e administrar o blog do Fonajef, que pode ser acessado no seguinte endereço: http://fonajef.blogspot.com. Nele, serão discutidos diversos assuntos ligados aos juizados especiais federais, especialmente questões polêmicas em torno dos enunciados já elaborados ou sugestões de novos enunciados. Como sei que as discussões “ao vivo” no Fonajef são bem acirradas, acho que o blog tem tudo para também ser empolgante. Vamos ver o que vai dar.

O Julgamento de Sócrates





Fazia tempo que não lia um livro tão interessante sobre filosofia grega. Na verdade, o livro não é nem propriamente sobre filosofia grega, mas um relato “jornalístico” sobre o julgamento de Sócrates, escrito por I. F. Stone, um polêmico jornalista norte-americano.


O livro faz com que o leitor compreenda o contexto histórico, social e político que antecedeu ao julgamento de um dos maiores pensadores da história. E o mais interessante é que é praticamente impossível não concordar com o resultado da decisão tomada pelos atenienses. Sócrates, apesar de gênio, era preconceituoso, esnobe, elitista, antidemocrático, negativista e, acima de tudo, arrogante. A famosa frase a ele atribuída “só sei que nada sei” não passa de uma ironia, pois, no fundo, ele se achava o mais sábio de toda a Grécia. No seu julgamento, chegou a dizer que o próprio Oráculo havia afirmado que ele era o mais sábio de toda a Grécia! E ainda se dizia o único com as verdadeiras qualidades de um estadista, embora ele próprio estivesse pouco se lixando para as questões políticas (da pólis). Ele menosprezava tudo o que dizia respeito à democracia. A toda hora, elogiava os regimes ditatoriais num período em que a democracia grega tinha acabado de passar por três “turbulências” seguidas, após sofrer golpes comandados por aristocratas, muitos deles discípulos de Sócrates. Ao elogiar abertamente o modelo espartano, Sócrates agia como se fosse um brasileiro torcendo para Argentina em pleno Maracanã numa final de copa do mundo de futebol.


A idéia hoje aceita de que Sócrates foi condenado por corromper a juventude e profanar os “deuses da cidade” não corresponde totalmente com a verdade, pelo menos sob a ótica de Stone. No fundo, Sócrates foi condenado por que queria ser condenado. Ele cavou sua própria cova ao desdenhar dos 500 jurados que o julgariam.


Após ser condenado, por uma maioria apertada, os jurados teriam que fixar a pena, que, necessariamente, deveria ser ou a sugerida pela acusação ou a sugerida pelo acusado, sem meio termo. A acusação sugeriu a pena de morte. Sócrates chegou a sugerir, em pilhéria, que sua pena fosse ser condecorado como um herói, comendo de graça no melhor restaurante de Atenas pelo resto da vida! É pedir para ser morto.


Outro ponto interessante no livro é uma análise crítica do pensamento platônico. Nesse ponto, o autor bate forte nas idéias absolutistas e totalitárias de Platão, que são nitidamente contrárias à liberdade e à igualdade. As mais famosas já são bem conhecidas: infanticídio, eugenia, poder absoluto nas mãos dos governos-filósofos, rígido controle social por parte do Estado e por aí vai.


Em contrapartida, há belas passagens em defesa da democracia, da liberdade (sobretudo a de expressão) e da igualdade. Aliás, talvez tenha sido essa parte que mais me chamou a atenção, pois não sabia que os fragmentos das obras de pensadores como Protágoras, Antifonte, Eurípedes, entre outros, continham argumentos tão ricos e fortes em defesa dos valores que inspiraram, mais de mil anos depois, a constitucionalização dos direitos fundamentais.


Ao longo da leitura, fui percebendo como a parte histórica do meu Curso de Direitos Fundamentais pecou por não retroceder à época dos grandes filósofos gregos, inclusive os pré-socráticos. Eu poderia muito bem, por exemplo, ter feito menção à seguinte passagem do fragmento da obra “Sobre a Verdade”, do pré-socrático Antifonte:


“Reverenciamos e honramos os que são nascidos de pais nobres, mas os que não são nascidos de pais nobres não reverenciamos nem honramos. Neste ponto, quanto a nossas relações uns com os outros, somos como os bárbaros, pois somos todos por nossa natureza nascidos iguais sob todos os aspectos, tanto bárbaros quanto helenos” (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005, p. 66).


Não é uma bela defesa da igualdade e da dignidade de todos os seres humanos? E olha que isso foi escrito cerca de dois mil e quinhentos anos antes da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Em outra obra, chamada “Sobre a Concórdia”, Antifonte chega a defender que “a principal causa das desavenças é a desigualdade das riquezas”; em razão disso, “os ricos devem ser estimulados a ajudar o próximo” (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005, p. 66).


Não é atual o seu pensamento? Não estaria aí uma das bases teóricas mais primitivas para o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais, que somente se tornaram direitos fundamentais no século passado?


Outro personagem fantástico do mesmo período é Protágoras, que ficou mais conhecido pela sua máxima “o homem é a medida de todas as coisas” e por suas contribuições para as ciências exatas. Confesso que nunca tinha ouvido falar de sua contribuição para a consolidação da democracia ateniense. Omissão imperdoável, na verdade, já que suas idéias foram reproduzidas por Platão, num diálogo menos famoso chamado “Protágoras”. Nesse diálogo platônico, há a descrição de um interessante debate filosófico travado entre Sócrates e Protágoras. Vale ressaltar que, nos seus diálogos, Platão “torce” para Sócrates descaradamente e, em regra, retrata o seu mestre “massacrando” os adversários com a sua lógica negativista. Mas nesse diálogo, curiosamente, não há um “vencedor”. Na verdade, aparentemente, Protágoras vence o debate. E mesmo que não vencesse, o que seria perfeitamente natural ante a parcialidade platônica em favor de Sócrates, seus argumentos são bastante convincentes.


A discussão, basicamente, girava em torno da capacidade do povo de se autogovernar. Sócrates destila todo o seu veneno contra o “populacho”, dizendo, de modo irônico, que, na assembléia ateniense, as questões fundamentais do governo são decididas por ferreiros, sapateiros, comerciantes, que não possuem qualquer experiência ou conhecimento em relação aos assuntos a serem debatidos. Em tom de deboche, afirma que, qualquer dia desses, o povo vai decidir que um asno é um cavalo. Em diversos momentos, apresenta argumentos em favor da tese de que somente deveria governar ou participar do governo “aqueles que sabem”.


Em resposta, Protágoras elaborou um mito bastante interessante, que, tirando os aspectos mais sobrenaturais, contém argumentos altamente sofisticados e atuais em defesa da democracia. Não seria exagero dizer que é uma das primeiras tentativas de justificar a moralidade política com base na teoria da evolução, algo que vem sendo estudado pela sociobiologia não tem nem cinqüenta anos. Eis suas palavras, reproduzidas por Stone:


Diz Protágoras que, quando foi criado, o homem vivia uma existência solitária e não era capaz de proteger a si próprio e sua família dos animais selvagens mais fortes que ele. Conseqüentemente, os homens se reuniram para “proteger suas vidas fundando cidades”. Mas as cidades foram conturbadas por lutas, porque seus habitantes “faziam mal uns aos outros” por ainda não conhecerem “a arte da política” que lhes permitiria viver em paz juntos. Assim, os homens começaram a “se dispersar novamente e a perecer”.


Segundo Protágoras, Zeus temia que “nossa espécie estivesse ameaçada de ruína total”. Assim, enviou seu mensageiro, Hermes, à terra, com duas dádivas que permitiriam aos homens enfim praticar com êxito a “arte da política” e fundar cidades onde pudessem viver juntos em segurança e harmonia. As duas dádivas de Zeus eram “aidos” e “diké”. “Aidos” é um sentimento de vergonha, uma preocupação com a opinião alheia. “Diké” significa respeito pelos direitos dos outros. Implica senso de justiça e torna possível a paz civil resolvendo as disputas através de julgamentos. Ao adquirir “aidos” e “diké”, os homens finalmente se tornariam capazes de garantir sua sobrevivência.


Antes de descer à terra, Hermes perguntou a Zeus se deveria conceder a “aidos” e a “diké” apenas para alguns, como as demais técnicas e artes (música, pintura, engenharia etc.), ou para todos os seres humanos. A resposta de Zeus foi democrática: que cada um tenha seu quinhão, pois as cidades não se poderão formar se apenas uns poucos possuírem “aidos” e “diké”.


Finalmente, Protágoras conclui seu raciocínio: “É por isso, Sócrates, que as pessoas das cidades, especialmente de Atenas, só ouvem peritos em relação a questões de conhecimento específico. Mas quando se reúnem para aconselhar-se sobre a arte política, quando devem ser guiados pela justiça e pelo bom senso, permitem, naturalmente, que todos dêem conselhos, já que se afirma que todos devem partilhar dessa excelência, senão os Estados não podem existir” (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005, p. 70/71).


Heródoto também utilizou um raciocínio semelhante para justificar a chamada “isegoria”, que era o direito de todos se manifestarem igualmente na assembléia, uma mistura de liberdade de expressão com direito à igualdade política. Heródoto afirmou que o sucesso militar de Atenas se deve, em grande parte, à isegoria, “já que no tempo em que eram governados por déspotas os atenienses não eram melhores guerreiros do que qualquer povo vizinho. Porém, tão logo se livraram do despotismo, tornaram-se de longe os melhores guerreiros de todos”. No tempo em que eram “oprimidos”, os atenienses eram covardes e fracos, como escravos que trabalham para um senhor; mas quando se viram livres cada um passou a se esforçar para fazer o melhor possível por si próprio” (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005, p. 256).


Não há, aí, um pouco de Darwin? A meu ver, é uma eloqüente demonstração de que, já naquela época, os atenienses perceberam que a seleção natural caminha em direção à democracia e aos direitos fundamentais. Sem a democracia e sem os direitos fundamentais, a humanidade está fadada à extinção ou, pelo menos, a uma evolução mais lenta.


E o mais curioso é que a minha intenção, ao ler o referido livro, era criticar o papel do direito na repressão ao pensamento científico. Vou explicar o motivo.


Pretendo começar minha futura eventual tese de doutorado (depois explico com mais detalhes) demonstrando que o direito sempre esteve ao lado de dogmas irracionais nos momentos cruciais do desenvolvimento científico. O julgamento do Sócrates e o de Galileu seriam exemplos desse fenômeno. Agora vejo que, pelo menos no processo de Sócrates, a democracia não errou tão feio assim, a não ser em relação à pena de morte, que talvez tenha sido mesmo meio exagerada. Mas, como se disse, quem condenou Sócrates não foi a democracia, mas ele mesmo. Embora a leitura do livro não tenha me ajudado no meu objetivo principal, ela abriu margem para diversos assuntos paralelos que certamente serão úteis.


Escrito em Porto Alegre/RS

Antígona: Direito Positivo versus Direito Natural - Quem ganhou?

Quase todo estudante de direito é apresentado à peça “Antígona”, de Sófocles logo no início do curso, geralmente na disciplina “Introdução ao Estudo do Direito”, pois a obra é uma das primeiras a retratar o eterno embate entre o direito natural e o direito positivo, melhor dizendo, entre a justiça e a lei.


O enredo da peça todos conhecem: um sujeito chamado Polinície tenta realizar um golpe de Estado para tomar o poder em Tebas, no que foi assassinado por Creonte, um governante meio autoritário. Quebrando as tradições da época, Creonte determina que o morto não poderá ser enterrado e que quem descumprir a sua ordem também será assassinado.


Antígona, que era irmã de Polinície, não se conforma com aquela medida. Para ela, seria uma desonra inaceitável não enterrar o irmão. Por isso, em claro descumprimento da ordem de Creonte, Antígona resolve realizar todos os rituais fúnebres devidos em favor do morto.


Creonte, puto da vida, chama Antígona para uma conversinha em particular. O diálogo daí resultante é uma sinfonia para aqueles que defendem o direito natural. Ei-lo:


“Creonte – ô Antígona. Que parte da minha ordem “não pode enterrá-lo” você não entendeu? Vai dizer que não sabia?


Antígona: Estaria mentindo se dissesse que não conhecia a ordem. Como poderia ignorá-la? Ela era muito clara.


Creonte – Portanto, tu ousaste infringir a minha lei? Tá maluca?


Antígona – Descumpri mesmo. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a proclamou! Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores; não, essas não são as leis que os deuses tenham algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava que as tuas proibições fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem de ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por temor de alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança de tais leis?”



Eis, nesse diálogo, com algumas licenças poéticas, um bom exemplo do sentimento de indignação que surge toda vez que o ordenamento jurídico encontra-se fora de sintonia com o espírito de justiça presente na sociedade. Por isso, costuma-se dizer que a resposta de Antígona é uma das mais remotas defesas do direito natural.


No entanto, há outro diálogo, na mesma peça, que não é citado nos livros de introdução ao direito, que demonstra que o grande vitorioso desse embate entre direito positivo autoritário versus direito natural não foi nem um nem outro. Quem venceu foi o direito democrático.


O outro diálogo foi travado entre Creonte e Hémon, seu filho, que tinha uma quedinha por Antígona. Hémon, de forma até meio petulante, questiona a ordem do pai. O pai não arreda pé: disse que o que decidiu está decidido e ponto final. Antígona, portanto, deveria ser punida, conforme previsto na sua ordem.


Eis um trecho do diálogo:


“Creonte: Não está Antígona violando a lei?


Hémon: O povo de Tebas não concorda com você.


Creonte: Querias que a cidade me dissesse que ordens devo dar?


Hémon: Agora é você que fala como um menino. [Pouco antes, Creonte havia perguntado se cabia a seu filho ensinar-lhe sabedoria.]


Creonte: Deverei reinar conforme julgam os outros ou segundo meu próprio discernimento?


Hémon: Uma pólis governada por um só homem não é uma pólis.


Creonte: Então o Estado não pertence àquele que o governa?


Hémon: Sem dúvida, num deserto desabitado poderia governar sozinho”. (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005).



No final da peça, a vontade popular vence, levando o público ao delírio, pois foi uma clara vitória da democracia. Normalmente, dá-se pouca atenção a essa lição política contida na “Antígona”. No fundo, a moral da peça é que o povo não apenas tem o direito de se expressar, mas também o de ser ouvido: o governante que despreza as opiniões do povo põe em risco a cidade e a si próprio também. Logo, não foi o direito natural que venceu, mas o direito democrático.

Escrito em Porto Alegre/RS

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O Estado pode ser titular de direitos fundamentais?

Estava devendo este post já há algum tempo. Como recebi uma pergunta por e-mail sobre o tema, resolvi compartilhar com vocês.

A questão é relativamente simples, mas, no fundo, extremamente complexa: pode uma pessoa jurídica de direito público ser titular de direitos fundamentais?

Eis como respondi a essa questão no meu Curso de Direitos Fundamentais:

Essa questão é de grande complexidade, pois, em princípio, é completamente paradoxal considerar que o Estado seja, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo de direitos fundamentais. É uma situação até meio esquizofrênica, já que o Estado estaria invocando direitos fundamentais para se proteger dele mesmo! Na verdade, os direitos fundamentais, por natureza, são instrumentos de proteção contra o Estado e não a favor do Estado[1]. Apesar disso, o entendimento majoritário é no sentido de que existem alguns direitos fundamentais que podem ser titularizados por pessoas jurídicas de direito público.

Essa idéia – por mais estranha que seja – pode ser assimilada com mais facilidade se se pensar que os direitos fundamentais visam não somente a proteção da dignidade da pessoa humana, mas também a limitação do poder. E, em determinadas hipóteses, até mesmo o Estado estará em uma situação de sujeição ao poder. A título de exemplo, quando a Fazenda Pública é parte litigante em um processo judicial, ela está sujeita ao poder do juiz. Daí porque se entende que as garantias constitucionais de caráter processual (ampla defesa, contraditório, tutela efetiva etc.) também se aplicam em favor da Fazenda Pública, até porque o Poder Judiciário tem o dever de observar a Constituição, mesmo que em benefício do próprio Estado.

Nesse mesmo sentido, tem-se entendido que pessoas jurídicas de direito público podem ingressar com mandado de segurança caso também sejam vítimas do abuso do poder de outro ente estatal[2].

Imagine a seguinte situação: a União, de forma abusiva, deixa de repassar para um determinado Município as verbas do FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental). Em uma hipótese assim, é perfeitamente aceitável que se reconheça ao referido município o direito fundamental de impetrar o mandado de segurança contra o ato federal abusivo. O ente municipal poderia, inclusive, alegar, na sua argumentação, uma violação ao direito à educação, embora os verdadeiros titulares desse direito sejam os alunos e não o próprio município.

Logo, as pessoas jurídicas de direito público, excepcionalmente, quando estiverem em uma posição de sujeição, poderão invocar as normas constitucionais que consagram direitos fundamentais para se protegerem do abuso do poder de outro ente estatal.




[1] Nessa mesma linha, a Corte Constitucional alemã já decidiu que “os direitos fundamentais não são por princípio aplicáveis às pessoas jurídicas de direito público ao realizarem tarefas públicas (...). Se os direitos fundamentais se referem à relação dos indivíduos para com o poder público, então é com isso incompatível tornar o Estado, ele mesmo, parte ou beneficiário dos direitos fundamentais. O Estado não pode ser, ao mesmo tempo, destinatário e titular dos direitos fundamentais” (cf. SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 170). Aqui no Brasil, seguindo uma lógica semelhante, o STF sumulou o entendimento de que “a garantia da irretroatividade da lei, prevista no artigo 5º, inc. XXXVI, da Constituição da República, não é invocável pela entidade estatal que a tenha editado” (Súmula 654).

[2] Por outro lado, há entendimento do STF negando aos entes públicos legitimidade ativa para impetrar o mandado de injunção: “outorgar ao Município legitimidade ativa processual para impetrar mandado de injunção seria elastecer o conceito de direitos fundamentais além daquilo que a natureza jurídica do instituto permite” (STF, AGRMI 595/MA, rel. Min. Carlso Velloso, DJ 23/4/99). Há, contudo, entendimento contrário: “Não se deve negar aos Municípios, peremptoriamente, a titularidade de direitos fundamentais e a eventual possibilidade de impetração das ações constitucionais cabíveis para sua proteção. Se considerarmos o entendimento amplamente adotado de que as pessoas jurídicas de direito público podem, sim, ser titulares de direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito à tutela judicial efetiva, parece bastante razoável vislumbrar a hipótese em que o Município, diante de omissão legislativa do exercício desse direito, se veja compelido a impetrar mandado de injunção. A titularidade de direitos fundamentais tem como consectário lógico a legitimação ativa para propor ações constitucionais destinadas à proteção efetiva desses direitos” (STF, MI 725/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 10/5/2007).



Como se observa, a minha resposta foi "escorregadia". Não me comprometi com nenhuma das teses, justamente porque o tema não é tão simples quanto parece. Aliás, nem mesmo comentei se o Estado pode ser titular de direitos fundamentais em face de particulares. De cara, não descarto a hipótese, desde que o particular esteja numa situação de vantagem, política, social ou econômica, em relação ao Estado. Mas é um assunto para se pensar.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Uma viagem para começar a semana

"Será que os computadores estão pensando, ou apenas calculando? E, de modo contrário, será que os seres humanos estão pensando, ou apenas calculando? O cérebro humano, presumivelmente, segue as leis da física, então deve ser uma máquina, ainda que muito complexa. Será que existe uma diferença inerente entre o pensamento humano e o pensamento de uma máquina?"

Essas indagações foram levantadas por Ray Kurzweil, no seu livro "A Era as Máquinas Espirituais" (São Paulo: editora Aleph, 2007, p. 23).

O cara é um gênio, só que nasceu de forma prematura, pelo menos uns vinte anos à frente do nosso tempo. Basta dizer que, entre outras coisas, ele sugere que, no futuro, nós, humanos, discutiremos se os computadores seriam dotados de "dignidade", já que, para ele, será natural que as máquinas evoluam para um estágio em que possuirão auto-consciência e até mesmo emoções próprias. Isso ainda neste século, de acordo com seus cálculos (não é mero chutômetro, não). Para convencer, ele sugere a seguinte comparação: se a indústria automobilística tivesse se desenvolvido, nos últimos 50 anos, tanto quanto a indústria da computação se desenvolveu, os carros de hoje custariam um dólar e viajariam à velocidade da luz. Logo, é muito provável, se o desenvolvimento da computação seguir no mesmo ritmo, que, em breve, a capacidade de raciocínio da máquina ultrapasse, em todos os aspectos, a capacidade de raciocínio do cérebro humano. E olha que ele não está falando apenas do raciocínio lógico. Não substimem o poder da computação quântica.

As indagações de Kurzweil podem parecer uma viagem muito alta e futurística, mas não é tão absurda quanto parece à primeira vista. Hoje, os computadores já são capazes de criar algo inteiramente novo, seja música, quadros e até mesmo poemas. Basta alimentá-los com um banco de dados relativamente rico que ele criará algo totalmente inédito. Quem será o titular dos direitos de propriedade intelecutal sobre a criação de uma máquina? Perceba que ela não necessariamente terá um dono. Aliás, pode ser que ela tenha sido "construída" por uma outra máquina. Isso já é relativamente comum.

Confesso que, mesmo depois de ter lido o livro na íntegra, ainda não consegui me imaginar em um mundo em que as máquinas terão sentimentos ou inteligência emocional. Por isso, prefiro entender, por enquanto, que a dignidade é um atributo do ser humano, e que as máquinas ainda são objetos a serviço do homem.

Espero que as máquinas não fiquem com raiva de mim no futuro por essas palavras... Elas entenderão minhas razões...

quinta-feira, 17 de abril de 2008

United Colors of Benetton: a propaganda também está protegida pela liberdade de expressão

No último post, defendi as restrições às propagandas das cervejas. Ao mesmo tempo, na parte final, deixei subentendido que considero que as propagandas estão protegidas pela liberdade de expressão. E realmente estão. Aliás, defendo isso no meu... deixa pra lá, já tá ficando cansativo essa história de que o meu livro está saindo...

O que quero comentar é uma situação curiosa que ocorreu nessa fase da "revisão" do livro. Como uso algumas ilustrações, o departamento jurídico da Atlas recomendou que uma das imagens fosse excluída para evitar problemas jurídicos. Concordei, já que era apenas uma foto num conjunto de três. De qualquer modo, a situação não deixa de ser curiosa, já que a foto estava justamente no capítulo destinado à liberdade de expressão.

A foto foi a seguinte:



O departamento jurídico da Atlas está certo em querer evitar confusão. O Estatuto da Criança e do Adolescente é particularmente rígido quanto à publicação de fotos de crianças. E nem todo juiz consideraria que a publicação da foto acima estaria protegida constitucionalmente. Por isso, não coloquei qualquer dificuldade para excluir a foto do livro. Só um detalhe: antes que queiram me acusar de violar o ECA, informo que a foto acima, além de ter sido publicada em diversas revistas pelo mundo todo, foi extraída do "Google Image", mais especificamente do site: http://notmytribe.com/images/articles/2006/ChildLaborBenetton.jpg.

As fotos que permaneceram no livro, dentro do mesmo contexto, foram as seguintes:






Exatamente as três imagens acima foram alvo de um processo judicial muito interessante, ocorrido na Alemanha.


No caso em questão, o que estava em jogo era saber se uma revista poderia ser censurada ou punida por haver publicado os referidos anúncios publicitários. Os juízes da Corte Constitucional concluíram que as referidas imagens veiculariam juízos de valor, com conteúdo capaz de formar opinião, já que direcionariam a preocupação do cidadão para as mazelas do mundo, e, dessa forma, estariam protegidas pela cláusula constitucional de livre manifestação do pensamento.

Eis a decisão na íntegra (extraída do livro "50 anos de jurisprudência da Corte Constitucional alemã", de Jürgen Schwabe):


BVERFGE 102, 347
(BENETTON / SCHOCKWERBUNG)


Reclamação Constitucional contra decisão judicial
12/12/2000


MATÉRIA:


A firma italiana de indústria e comércio de roupas Benetton é conhecida mundialmente por um tipo de publicidade institucional de estilo engajado e, muitas vezes, polêmico. Não raro, seus anúncios são acusados de ser chocantes (propaganda chocante = Schockwerbung). A reclamante, que é uma editora, que publica a revista semanal “Stern”, volta-se contra duas decisões do Tribunal Federal (BGH), que a proibiram de publicar três anúncios publicitários da firma Benetton, vez em que, segundo o BGH, tais anúncios violariam o § 1 UWG, uma cláusula geral que proíbe a concorrência desleal a partir do conceito jurídico indeterminado da violação dos “bons costumes” (gute Sitten). Na fundamentação, alegou, em suma, que os dois anúncios exploravam o sentimento de compaixão das pessoas em face da miséria do mundo e do medo relativo ao desequilíbrio ambiental. O terceiro anúncio, mais polêmico ainda, onde era mostrada a parte superior das nádegas de um homem nu com a frase em forma de carimbo H.I.V. POSITIVE, estaria atingindo até mesmo a dignidade humana dos portadores do vírus H.I.V. Em todos os anúncios não havia textos explicativos, mas tão somente a logomarca “United Colors of Benetton”.


Em sua Reclamação Constitucional, a reclamante argüiu, entre outras, a violação de seus direitos fundamentais derivados do Art. 5 I 1 GG (liberdade de expressão) e Art. 5 I 2 GG (liberdade de imprensa). O TCF julgou a Reclamação Constitucional procedente, porque reconheceu uma violação da liberdade de imprensa do Art. 5 I 2, 1ª Alternativa GG. Em sua fundamentação, o TCF sustentou que o BGH violou a liberdade de imprensa, vez em que, em sua interpretação das expressões, além de partir de alguns falsos pressupostos (como, por exemplo, que a expressão comercial teria a princípio menor peso), não realizou uma interpretação orientada pelo direito fundamental da liberdade de imprensa, ou seja, não enfrentou a possibilidade das expressões representarem uma contribuição para o debate social, sobre questão relevante e para a formação
da opinião pública e, assim, não se chocarem contra os bons costumes e, por via de conseqüência, não justificando a aplicação do § 1 UWG como limite concretizado da lei geral na acepção do Art. 5 II GG.

1. A liberdade de imprensa de uma editora de revistas pode restar violada quando lhe for proibida a publicação de anúncios publicitários sobre os quais o anunciante goza da proteção da liberdade de expressão do pensamento.

2. Da avaliação constitucional da publicidade institucional a partir de temas de crítica social.

Decisão (Urteil) do Primeiro Senado de 12 de dezembro de 2000 com base na audiência de 8 de novembro de 2000 – 1 BvR 1762/95 , 1 BvR 1787/95 – no processo da Reclamação Constitucional de G... AG & Co. KG — Procurador: Professor Dr. Gunnar Folke Schuppert, Unter den Linden 6, Berlin – contra a) decisão do Tribunal Federal (BGH) de 6 de julho de 1995 — 1 BvR 1762/95 —, b) decisão do Tribunal Federal (BGH) de 6 de julho de 1995 — I ZR 110/93 — 1 BvR 1762/95 -.

Dispositivo da decisão:

As decisões do Tribunal Federal (BGH) de 6 de julho de 1995 – I ZR 180/94 e I ZR 110/93 – violam o direito fundamental da reclamante decorrente do Art. 5 I 2, 1ª Alternativa Grundgesetz. Revogue-se. Devolva-se a matéria ao Tribunal Federal (BGH).A República Federal da Alemanha deve ressarcir as custas processuais necessárias.

RAZÕES:
A.

A reclamante, uma empresa da imprensa escrita, volta-se em sua Reclamação Constitucional contra duas decisões do Tribunal Federal (BGH), pelas quais se lhe foi proibida a publicação de anúncios publicitários por causa de uma ofensa aos bons costumes (§ 1 da Lei contra Concorrência Desleal, a seguir: UWG).

I.

Na revista editorada pela reclamante, chamada “Stern”, foram publicados três anúncios da Firma Benetton, que comercializa produtos têxteis internacionalmente. Um anúncio mostra um pato sujo de petróleo nadando em uma mancha de petróleo. Em um outro anúncio, aparecem crianças de diferentes idades trabalhando intensamente no terceiro mundo. O terceiro anúncio compõe-se de uma foto de nádegas masculinas sobre as quais foram carimbadas as palavras “H.I.V. POSITIVE”. No canto de cada foto, encontra-se respectivamente sobre uma tarja verde a frase “United Colors of Benetton”. Os dois primeiros anúncios são objeto da Reclamação Constitucional 1 BvR 1787/95, ao passo que a Reclamação Constitucional 1 BvR 1762/95 refere-se ao terceiro anúncio.

O Centro de Combate à Concorrência Desleal [uma associação civil sem fins lucrativos] exigiu extra-judicialmente da reclamante que essa se abstivesse da publicação dos anúncios e procurou a tutela judicial quando aquela se recusou a atender seu pedido.

O Tribunal Estadual julgou a ação procedente. As Revisões diretas (Sprungrevisionen) da reclamante não tiveram êxito junto ao Tribunal Federal (BGH). A própria firma Benetton procurou defender-se junto aos tribunais cíveis, inutilmente, contra a correspondente intimação (Abmahnung) (cf. BGHZ 130, 196). Todavia, ela não ajuizou uma Reclamação Constitucional.

II.

O Tribunal Federal (BGH) fundamentou suas decisões atacadas como segue:

1. – 2. (...).

III. – IV. (...)

B.

As Reclamações Constitucionais são procedentes. Ambas as decisões do Tribunal Federal (BGH) impugnadas pela reclamante violam a sua liberdade de imprensa garantida pelo Art. 5 I 2, 1ª Alternativa GG.

I.

1. A área de proteção da liberdade de imprensa abrange o conteúdo completo de um órgão da imprensa (sic), subsumindo-se a ela também os anúncios publicitários. (cf. BVerfGE 21, 271 [278 s.]; 64, 108 [114]). Desde que a expressão de pensamento de terceiros goze da proteção do Art. 5 I 1 GG, a liberdade de imprensa engloba a proteção de tal expressão quando de sua publicação em um órgão da imprensa: A um órgão da imprensa não se pode proibir a publicação de uma expressão de pensamento de terceiro se ao próprio autor da expressão é autorizada sua publicação e divulgação. Nesta extensão, a empresa da imprensa pode argüir uma violação da liberdade de expressão de terceiro em uma lide judicial. Isso vale também em uma lide civil quando os pedidos se referirem a obrigações de não fazer [ou de abstenção – Unterlassungsansprüche – a serem impostas respectivamente à parte contrária] fundadas no direito concorrencial.

A proteção do Art. 5 I 1 GG – aqui colocada na liberdade de imprensa – alcança também expressões comerciais, assim como a pura publicidade econômica, que tenham um conteúdo axiológico constitutivo de opinião pública (cf. BVerfGE 71, 162 [175]). Desde que numa foto venha à tona uma expressão do pensamento – uma posição, um juízo de valor ou uma certa ideologia –, também esta fará parte da área de proteção do Art. 5 I 1 GG (cf. BVerfGE 30, 336 [352]; 71, 162 [175]).

Todas as três fotos publicitárias polêmicas fazem jus a tais pré-requisitos. Elas mostram mazelas gerais (poluição ambiental, trabalho infantil, marginalização de infectados pelo H.I.V.) e contêm, com isso, ao mesmo tempo um juízo de valor [negativo] sobre questões sociais e políticas relevantes. Trata-se de imagens vivas com conteúdos formadores de opinião. Mesmo as decisões atacadas o reconhecem quando nelas se lê que os anúncios se ocupam da miséria do mundo. Expressões do pensamento que persigam tal escopo [de mostrar a miséria do mundo] e com isso direcionam a atenção do cidadão para mazelas gerais, gozam de maneira especial da proteção do Art. 5 I 1 GG (cf. BVerfGE 28, 191 [202]).

Tal reconhecimento não é desautorizado pelo fato de a firma Benetton tratar dos temas aludidos no contexto de uma publicidade institucional pura, desistindo de qualquer comentário, subscrevendo-a simplesmente com o seu logotipo. Devido a este fato pode até mesmo surgir a impressão de que a empresa anunciante em verdade não pretenda oferecer uma contribuição à formação da opinião pública, mas chamar a atenção para si.

Uma tal interpretação, pela qual se questiona a relação subjetiva daquele que se expressa com o conteúdo da expressão, não é, porém, a única possível, não sendo sequer a mais provável. Na percepção do público, as mensagens partidas dos anúncios são consideradas em geral como suas e também os tribunais não apresentaram dúvidas a respeito. Também na visão do fotógrafo Oliviero Toscani, que criou os anúncios, Benetton os utiliza como veículo de divulgação de uma postura intelectual anti-racista, cosmopolita e livre de tabus (Oliviero Toscani, Die Werbung ist ein lächelndes Aas, 3a. ed., 2000, S. 44).

2. A proibição corroborada pelas decisões atacadas de reimpressão dos polêmicos anúncios na revista semanal “Stern”, limita a liberdade de imprensa da reclamante. Por ser a proibição ligada à cominação de pena pecuniária no valor de até 500.000 DM – alternativamente ordem de prisão – ou ordem de prisão de 6 meses para o caso do descumprimento da decisão, ela foi faticamente impedida de proceder a uma futura publicação dos anúncios.

3. Essa proibição não é justificada constitucionalmente.

a) O § 1 UWG, sobre o qual o Tribunal Federal (BGH) se baseia em sua decisão de proibição da publicação, é uma lei geral na acepção do Art. 5 II GG (cf. BVerfGE 62, 230 [245]; 85, 248 [263]). Ele serve à proteção dos concorrentes, dos consumidores e dos demais participantes do mercado, assim como à proteção da coletividade (cf. Baumbach / Hefermehl, Wettbewerbsrecht, 21ª ed. 1999, UWG Introdução, Notas de margem 42, 51, 55; Emmerich, Das Recht des unlauteren Wettbewerbs, 5ª ed. 1998, p. 13). A liberdade da atividade econômica não pode implicar em vantagens na concorrência para o indivíduo a serem auferidas mediante práticas legalmente inadmissíveis. Esses objetivos encontram-se em harmonia com a ordem axiológica da Grundgesetz (cf. BVerfGE 32, 311 [316]).

b) – c) (...)

d) Com êxito, todavia, argüiu a reclamante que o Tribunal Federal (BGH) teria, em sua avaliação jurídico-concorrencial dos anúncios, ignorado o significado e o alcance da liberdade de expressão do pensamento.

aa) Se uma decisão de direito civil tangencia a liberdade de expressão do pensamento, então o Art. 5 I 1 GG exige que os tribunais considerem, junto à interpretação e aplicação do direito privado, o significado daquele direito fundamental (cf. BVerfGE 7, 198 [206 et seq.]; 86, 122 [128 s.]; jurisprudência consolidada). As decisões atacadas foram embasadas no § 1 UWG, em uma norma, portanto, do direito civil. Sua interpretação e aplicação no caso particular é da competência [exclusiva] dos tribunais cíveis. O Tribunal Constitucional Federal somente pode intervir quando se reconhecerem erros que se firmem sobre uma apreciação fundamentalmente incorreta do significado de um direito fundamental, principalmente da extensão de sua área de proteção, e também que tenham uma certa relevância para o caso jurídico concreto (cf. BVerfGE 18, 85 [92 s.]; jurisprudência consolidada).

É o que ocorre no presente caso.

bb) O Tribunal Federal (BGH) até reconheceu corretamente tratar-se, nos anúncios, de expressões do pensamento que têm por objeto problemas econômicos, políticos, sociais e culturais e, por isso, gozariam de maneira especial da proteção do Art. 5 I 1 GG. O significado e o alcance deste direito fundamental não foram porém devidamente considerados, nas decisões atacadas, no momento de sua interpretação do § 1 UWG e – no caso do terceiro anúncio (H.I.V. POSITIVE), no momento de sua aplicação. Limitações daquele que é um direito constitutivo por excelência da ordem estatal democrática livre, o direito da livre expressão do pensamento (cf. BVerfGE 20, 56 [97]; jurisprudência consolidada) necessitam fundamentalmente de uma justificação por interesses suficientemente importantes relativos ao bem comum ou de direitos e interesses de terceiros, [igualmente] dignos de proteção. É o que vale de forma especial no caso de expressões críticas a respeito de questões sociais ou políticas. Todavia, não se depreende das decisões atacadas indicações neste sentido [do exame criterioso para a decisão do caso do significado e alcance do direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento] (...).

aaa) Segundo o entendimento do Tribunal Federal (BGH), o § 1 UWG proíbe um comportamento publicitário que desperte nos destinatários sentimentos de compaixão mediante a apresentação de grandes sofrimentos de pessoas e animais e explore esses sentimentos, sem ensejo racional, para fins comerciais concorrenciais, na medida em que o anunciante se apresenta como igualmente atingido, provocando, destarte, a solidariedade dos consumidores com seu nome e sua atividade comercial.

Esse julgamento perpetrado pelo Tribunal Federal (BGH) a partir da interpretação do § 1 UWG de ofensa à moral é certamente louvável, enquanto regra de boa formação moral, podendo, enquanto tal, ser considerada aceita por boa parte da população. Por trás dela, encontra-se o desejo de viver em uma sociedade na qual não se reaja à miséria com a busca fria do lucro, mas com empatia e medidas de socorro, ou seja, de maneira a reagir-se diretamente contra a miséria. Se com esse julgamento se protege, ao mesmo tempo, interesses públicos ou privados suficientemente importantes, não é, entretanto, reconhecível de plano.

bbb) Mesmo o Tribunal Federal (BGH) não aceitou o argumento do autor do processo originário de que dos anúncios se poderia depreender um ônus [incômodo] considerável infligido ao público. Agressões desferidas contra o bom gosto ou uma configuração chocante de anúncios não são consideradas por aquele tribunal (BGH) como uma violação da moralidade na acepção do § 1 UWG. Esse julgamento não há de ser afastado por motivos constitucionais. Um efeito incômodo que pudesse justificar regras limitadoras do direito fundamental não pode ser visto no fato de o público ser confrontado também fora dos editoriais dos meios de comunicação social (Mídia) com imagens que retratem realidades desagradáveis ou que suscitem a compaixão. Isso vale também quando se acusa, como o fez a Associação Alemã para a Proteção Jurídica da Concorrência e do Direito Autoral (Deutschen Vereinigung für gewerblichen Rechtsschutz und Urheberrecht), um aumento generalizado de tais propagandas por causa do efeito de imitação. O ânimo do cidadão livre da [confrontação com a] miséria do mundo não representa um interesse para cuja proteção o Estado possa limitar posições de direito fundamental. Diferentemente, pode-se chegar a outra conclusão quando se mostra imagens asquerosas, que provoquem o medo ou que ameacem crianças e adolescentes. Quando o autor do processo original classifica os anúncios como invasivos e inconvenientes por eles apelarem com força sensorial-sugestiva aos sentimentos dos consumidores, os quais se relacionem com os produtos da empresa anunciante ou sua atividade comercial, não se pode com ele concordar. Grande parte da publicidade contemporânea se caracteriza pela busca em despertar a atenção e ganhar a simpatia do público a partir de motivos que dêem ênfase aos sentimentos. Publicidade comercial com imagens que, com força sugestiva, desperte desejos libidinosos, que evoquem o ímpeto por liberdade e descomprometimento ou que prometam o brilho da celebridade social está em toda parte. Pode ser que os consumidores estejam mais “duros” em face de tais motivos, como alega o autor do processo originário. Um tal efeito de acostumar-se não justifica, contudo, a atribuição de efeitos onerosos ao apelo até hoje menos gasto do sentimento de compaixão.

ccc) Interesses de concorrentes ou princípios da concorrência de desempenho não foram igualmente atingidos. O Tribunal Federal (BGH) destaca-o explicitamente. Também não se vislumbra nada nesse sentido. Publicidade institucional destacada de produtos passou a ser utilizada, sem que com isso a concorrência entre as performances das empresas sofresse um prejuízo reconhecível. Concorrentes que considerem uma publicidade deste tipo como boa para os negócios, podem, assim como a firma Benetton, dela fazer uso.

ddd) Poder-se-ia estar, em tese, e no máximo em relação ao anúncio sobre “trabalho infantil”, frente a um caso de proteção de pessoas fotografadas. Todavia, não se verifica aqui que um direito [subjetivo] tenha sido atingido. As crianças fotografadas não são individualizáveis. Não obstante, ainda que sejam apresentadas em uma perspectiva que provoca compaixão, não são vistas, absolutamente, de forma jocosa ou de qualquer outra forma negativa. O contexto publicitário enquanto tal não é suficiente para configurar uma violação de pretensões de respeito de pessoas humanas.

eee) Interesses da coletividade não foram tocados. (...)

cc) – dd) (...)

ee) A decisão atacada no processo 1 BvR 1762/95 não se baseia somente na interpretação do § 1 UWG já supra discutida. O Tribunal Federal (BGH) considera o anúncio objeto deste processo como desleal, porque ele se chocaria de maneira notória contra os preceitos da proteção da dignidade humana, na medida em que ele apresentaria as pessoas acometidas de AIDS como “carimbadas” e, destarte, marginalizadas.


aaa) Essa fundamentação pode ser seguida em tese. Uma interpretação do § 1 UWG no sentido de que uma publicidade por imagem que viole a dignidade humana de pessoas fotografadas se choque contra a moral e bons costumes (sittenwidrig) não é problemática do ponto de vista constitucional. Ela atribui valor a um bem tutelado que justifica limitações da liberdade de expressão do pensamento também no contexto de áreas sensíveis da crítica social e política. O Art. 1 I GG obriga o Estado a proteger todas as pessoas contra ataques à dignidade humana como contra a humilhação, estigmatização, perseguição, proscrição etc. (cf. BVerfGE 1, 97 [104]). Anúncios publicitários que marginalizem pessoas individualizadas ou grupos de pessoas de maneira a ferir a dignidade humana, proscrevendo-as, ridicularizando-as ou tirando-lhes, de qualquer forma, a dignidade, podem, fundamentalmente, por isso, ser proibidas pelo direito concorrencial, mesmo se tais anúncios gozarem da proteção dos direitos fundamentais de comunicação do Art. 5 GG ou da proteção de outros direitos fundamentais.


bbb) Todavia, a aplicação destes princípios aos anúncios em pauta (H.I.V. POSITIVE) não passa no crivo do exame [de constitucionalidade], sob o parâmetro do Art. 5 I 1 GG. (...).


O Tribunal Federal (BGH) interpretou o anúncio “H.I.V. POSITIVE” no sentido de considerar que sua mensagem carimba os doentes de AIDS, apresentando-os, com isso, como marginalizados da sociedade. Em outra passagem da decisão, o BGH afirma que o anúncio estigmatizaria os doentes de AIDS em seu sofrimento, marginalizando-os.


Dever-se-ia combater a mentalidade contaminada do “carimbo” de certos membros da sociedade. Pelo menos pelos próprios infectados pelo H.I.V., o anúncio seria visto como notoriamente escandaloso, sendo ferida sua dignidade humana. Também outros observadores do anúncio não escapariam desse efeito. Tão claro neste sentido não é, entretanto, o anúncio. Ele mostra sem comentários uma pessoa, que aparece como carimbado como “H.I.V. POSITIVE”. Com ele, não se deduz que o dado escandaloso, mas também não tão distante da realidade de uma discriminação e marginalização de infectados pelo H.I.V., seja corroborado, fortalecido ou, ainda, só desprestigiado [como não tão problemático]. No mínimo, tão provável é a interpretação de que se deve chamar a atenção para um estado de coisas digno de críticas, qual seja: a marginalização de infectados pelo H.I.V., de tal sorte a se verificar [no anúncio] uma tendência de denúncia [de um fato social indesejado]. Com a foto, poder-se-ia também, como a reclamante com razão assevera, igualmente fazer a propaganda de um Congresso sobre a AIDS.


A linguagem das imagens pode ser considerada, em termos convencionais, inadequada, por ser sedutora. Da pessoa fotografada não se vê nada além da metade superior das nádegas nuas, sobre a qual aparecem em letras maiúsculas a abreviação “H.I.V.” e abaixo colocado na diagonal como se tivesse sido carimbada a palavra “POSITIVE”. Disto não se pode depreender nem cinismo nem uma tendência afirmativa. A representação tem por objetivo, correspondendo a um Medium de anúncio publicitário, prender a atenção do observador.


Uma interpretação do anúncio no sentido de ser uma conclamação crítica também não pode ser impugnada pela indicação do contexto publicitário. É incomum que uma empresa do ramo têxtil faça publicidade institucional com a utilização de sérios temas sócio-políticos, contrastando notoriamente com a auto-representação comum dos concorrentes. Isso pode alimentar dúvidas quanto à seriedade da intenção crítica e ser assim considerado escandaloso, em face do mandamento de honestidade formulado pelo Tribunal Federal (BGH). Entretanto, a impressão de que o anúncio por sua vez estigmatizaria ou marginalizaria os infectados pelo H.I.V. também não pode ser provocada pelo contexto publicitário. Sua tendência crítica, seu efeito chocante restam inocultáveis.


Diferente talvez seria o caso se com o anúncio se quisesse chamar a atenção para um produto concreto, no qual uma ligação com certos objetos e serviços pudesse criar um efeito jocoso ou de desconsideração do problema. A frase “United Colors of Benetton” sozinha não provoca todavia esse efeito.


A interpretação do anúncio pelo Tribunal Federal (BGH), segundo a qual este feriria a dignidade humana de doentes de AIDS, parece, ao contrário, substancialmente mais distante da realidade; em todo caso, ela não é a única possível. É o que mostra também a declaração do fotógrafo Oliviero Toscani sobre esta publicidade: “Com este pôster, eu queria sinalizar que a Benetton continua ainda sempre pronta a imiscuir-se, na medida em que nós nos colocamos tanto contra a marginalização de doentes de AIDS quanto contra o racismo” (op. cit., p. 78).


ff) A decisão impugnada pela Reclamação Constitucional 1 BvR 1762/95 (H.I.V. POSITIVE) não atende, portanto, às exigências que se fazem à interpretação de expressões do pensamento em prol da proteção da liberdade de expressão do pensamento.


O Tribunal Federal (BGH) desconheceu a possibilidade bastante provável de que o anúncio queria, com uma intenção crítica, direcionar a atenção pública para uma discriminação e marginalização de doentes de AIDS de fato existentes. Nesta interpretação não reside uma violação da dignidade da pessoa humana dos doentes de AIDS. Em seu novo tratamento da matéria, o Tribunal Federal deverá enfrentar a alternativa exegética ora demonstrada.


II.


Uma vez que as decisões impugnadas já devem ser revogadas por violarem o Art. 5 I 1 GG, não se faz necessário o exame da pela reclamante também alegada violação do princípio geral da igualdade, assim como da possibilidade de uma violação do Art. 5 III GG [no caso: liberdade artística].

Papier, Kühling, Jaeger, Hömig, Steiner, Hohmann-Dennhardt.