sexta-feira, 14 de março de 2008

Prisão Civil do Depositário Infiel

Eis a íntegra do voto do Min. Celso de Mello na nova discussão sobre a prisão civil do depositário infiel:

Em suma, ele modificou seu entendimento anterior, firmado antes da EC 45/2004, que entendia que os tratados internacionais de direitos humanos tinham força de lei ordinária.

Agora, ele passou a entender que os tratados aprovados antes da EC 45/2004 possuem o status de norma constitucional.

A discussão, daqui em diante, vai girar em duas frentes: saber se os tratados internacionais de direitos humanos já aprovados possuem uma força jurídica "supralegal" (Gilmar Mendes") ou constitucional (Celso de Mello).

Particularmente, acho mais simples, e, por isso mesmo, mais elegante, a tese do Celso de Mello (aliás, não é nem dele, mas sim da Profa. Flávia Piovesan e do Cançado Trindade, conforme citado no seu voto). Essa idéia de "força supralegal" é meio confusa. Parece coisa dos "Power Rangers". E, na prática, dá quase no mesmo em relação à tese da hierarquia constitucional. É só porque o Min. Gilmar Mendes não quer dar o braço a torcer e dizer que a tese de doutorado da Profa. Flávia Piovesan era a melhor interpretação da constituição originária.

Ah, só pra esclarecer, a tese de doutorado da Profa. Flávia Piovesa já interpretava o artigo 5, par. 2, da CF/88, no sentido de conferir aos tratados internacionais de direitos humanos uma hierarquia constitucional, o que não era aceito pelo STF até então.

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Uma explicação necessária:

desde que li a tese de doutorado da Flávia Piovesa ("Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional"), isso por volta do ano de 1998, me convenci - como hoje o Min. Celso de Mello se convenceu - de que era a melhor solução, antes mesmo de ser aprovada a EC 45/2004.

A idéia é bem simples e, veja bem, estamos falando de tratados de direitos humanos. A lógica não serve para outras modalidades de tratados.

O constituinte originario, através do artigo 5, par. 2, da CF/88, nitidamente conferiu uma posição normativa especial aos tratados. Se os direitos fundamentais previstos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados, é natural concluir que os tratados de direitos humanos veiculam normas pelo menos materialmente constitucionais.

Se a idéia da Constituição é a de "prevalência dos direitos humanos" (art. 4), parece normal que, havendo um conflito entre a Constituição e o tratado, a norma prevalecente será a que melhor conferir uma proteção aos direitos humanos. Ou seja, nem a Constituição vale mais que os tratados, nem o contrário.

Isso já ocorre com as normas trabalhistas e ambientais: em caso de conflito, prevalece a norma que melhor protege os trabalhadores e o meio-ambiente, independentemente de sua hierarquia.

Se uma norma municipal diz que ninguém pode construir a menos de 100 metros de uma determinada lagoa localizada naquele município, essa norma prevalece mesmo havendo uma norma federal que diga que pode construir até 30 metros de qualquer lagoa.

Se uma portaria de uma empresa, diz que o empregado terá 40 dias de férias, duas vezes no ano, essa portaria vale mesmo contra a lei que reconheça o direito de 30 dias de férias no ano.


Ou seja, as normas constitucionais poderiam, dentro dessa lógica, ser revogadas por um tratado de direitos humanos, se fossem menos protetoras dos direitos fundamentais. Se o Brasil assinasse um tratado internacional dizendo que "não haverá pena de morte nem em caso de guerra", acho perfeito. Vale o tratado.

E é mais ou menos isso que está sendo definido no STF, com essa discussão sobre a prisão civil do depositário infiel. Seja prevalecendo a tese da força supralegal, seja prevalecendo a tese da força constitucional, o efeito prático será o mesmo a curto prazo: ninguém pode ser preso pelo descumprimento do encargo judicial assumido, pois o Pacto de San Jose da Costa Rica proíbe, estando revogadas todas as normas infraconstitucionais que autorizam essa modalidade de prisão.




9 comentários:

Unknown disse...

Beleza!
Mas, e agora?
pra que serviu a previsão da emenda 45 sobre o "status de emenda constitucional"?

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Na verdade, George, não acho que seja Power Rangers... Embora tenha gostado bastante da figura.
Convenci-me de que os tratados têm hierarquia intermédia entre a Constituição e a legislação infraconstitucional lendo o livro do Prof. Alberto Xavier (Direito Tributário Internacional - Forense). Fiz um post (bem incompleto, por sinal) sobre isso, mas acho que vou fazer outro em face do voto do min. Celso de Mello, que é muito interessante.
Na verdade, TODO tratado deve ter essa posição hierarquica, como, em matéria tributária, didaticamente expõe o art. 98 do CTN.
Respondendo ao comentário anterior, do Rodrigo, que levanta questão relevante, acho que a questão se resolve assim:
- o tratado tem hierarquia intermédia entre cf e legislação (mas não pode contrariar CF);
- se aprovado pelo procedimento de EC (três quintos nas duas casas duas vezes etc.), e versar sobre direitos humanos, tem status de emenda (e não mera posição intermédia entre CF e lei). Vale dizer, pode até mudar a própria CF, desde que não esbarre no art. 60....

Em suma, antes da EC45, tratado está entre CF e leis
Depois da EC45, o tratado aprovado com procedimento de emenda tem a mesma hierarquia da CF(superior, portanto, aos demais tratados, que não podem alterar nem mesmo o texto 'modificável' da CF...)

Na verdade, o que estava errado, redondamente, terrivelmente, data maxima venia, era o entendimento anterior do STF. Foi esse erro que justificou a EC 45, na parte relativa aos tratados... Uma distorção justificando outra.

Tratado não é igual ao decreto legislativo que apenas instrumentaliza o seu referendo, não podendo, por isso, ser equiparado à lei ordinária. O STF, aqui, cometia dois erros: 1- confundia o tratado com um pedacinho do procedimento de sua aprovação; 2- interpretava o art. 5 "a contrario senso", vale dizer, o que o art. 5.º não assegurava o tratado "não poderia" assegurar, como se a CF estivesse "mandando" impor a prisão civil ao depositário infiel...

Anônimo disse...

O que aconteceria, se por algum motivo, algum artigo desses tratados contrariasse em tese a Constituição? Iriamos falar de inconstitucionalidade ou de não recepcionamento,já que a norma não foi editada em nosso ordenamento juridico?
Na Holanda, e admissivel a entrada de um tratado que esteja de encontro a Constituição desde que 2/3 do Congresso Nacional aprove.
Tenho medo que isso ocorra no Brasil, imagine o Congresso aprovando tratados que vão de encontro a CF. Seria uma loucura!
Sergio Lima.

Anônimo disse...

ORESTE DALLOCCHIO NETO - ADVOGADO EM SÃO PAULO.


Com toda o respeito a tese da Prof. Piovesan, tenho que concordar com o segundo comentário. Grande parte da tese citada visa estirpar da constituição a proibição da prisão do depositário infiel, que é norma originária da CF e está dentro da proteção do art. 60. Ficando claro que por mais que o art. 5° p. 2° tenha dado aplicabilidade imediata ao tratados de direitos humanos estes não podem ferir os preceitos das cláusulas pétreas. O que faço coro é para a vedação da interpretação que permitia a transformação do contrato de alienação fiduciária em depósito. Deixando claro que a prisão do depositário infiel, infelizmente, é medida necessária em um País que pouco se respeita as leis e o processo.

George Marmelstein disse...

Alguns comentários sobre os comentários.

Os tratados em matéria tributária têm força de lei complementar, na minha ótica. Supralegal, portanto. Nesse ponto, concordo com o Hugo, embora não aceite esse mesmo raciocínio em relação aos tratados de direitos humanos, tendo em vista que a própria CF/88 exigiu que houvesse uma "prevalência dos direitos humanos".

A CF/88 não obriga a prisão civil do depositário infiel, apenas autoriza que a legislação infraconstitucional regulamente essa modalidade de execução indireta. Logo, mesmo que os tratados internacionais tivessem a força de lei ordinária, revogariam a legislação anterior.

A prisão civil do depositário infiel não é uma mera questão patrimonial. Além da questão patrimonial, há um desrespeito ao Poder Judiciário. Logo, a questão ficou um pouco distorcida, pois a iniquidade da prisão civil do depositário infiel não é tão clara quanto aparenta.

Isso não significa dizer que a prisão civil do depositário infiel é compatível com a dignidade humana. Hoje, na prática, a aplicação do bacenjud (penhora do dinheiro) tem sido muito mais eficiente e menos danoso à liberdade do que a prisão civil. Ou seja, no final das contas, a prisão civil do depositário infiel, muitas vezes, não será adequado, nem necessário, nem proporcional em sentido estrito.

Anônimo disse...

Caro George,

Ha poucos dias perguntei a voce se em seu livro constaria alguma discussao sobre a incorporacao dos tratados internacionais de direitos humanos no direito interno, acaso lembra o que disse?

Que a conclusao a que chegou o sr. Gilmar Mendes era satisfatoria, que concordava inteiramente quanto a tal supralegalidade. Colocando, inclusive, em seu livro tal conclusao. De um post para o outro, vem afirmar que o que era lucido e coerente agora eh tao-soh um power ranger?

Por essas e outras nao compro manuais de Direito Constitucional, TEORIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS, ou qualquer coisa que seja mera copia do que decide o STF. Melhor eh estudar pelos informativos do STF: gratuitos, atualizados...

Muitas interpretacoes do Supremo sao baseadas em atos de vontade, e nao de conhecimento. Sempre que a norma nao impoe qual solucao deve ser escolhida entre duas consequencias normativas possiveis, pode-se escolher qualquer delas sem nenhum problema. Corrija-se: quem pode escolher eh o aplicador do direito, e nao o cientista do Direito. Esse deve apenas contentar-se em apontar as escolhas possibilitadas pela norma. Escolher uma delas soh faz sentido a quem aplica o Direito, pois como nao ha norma que impoe a escolha de uma ou d'outra, tal solucao serah permeada de motivos politicos, filosoficos, sociologicos...

Por obvio, nenhum operador do direito serah penalizado por escolher uma outra. Pode apontar a escolha como a "correta" quando quiser. Mas desde que avise aos nao iniciados que ultrapassou os limites da ciencia juridica. Que estah dando tao-somente uma opiniao nao juridica.

Joao Paulo

George Marmelstein disse...

João Paulo,

você tem razão. Considero a solução preconizada pelo Gilmar Mendes satisfatória, já que, na prática, dá quase no mesmo: o tratado internacional ganha uma importância normativa especial. Se for essa a solução a prevalecer, não tenho nada a reclamar.

Porém, acho muito mais elegante - e defendia isso desde 1998 - a tese da Professora Flávia Piovesan, que não foi acolhida pelo STF.
Agora, há uma possibilidade de o STF rever seu posicionamento anterior. Tanto melhor.

Eis como coloquei no meu livro:

"Mesmo que a idéia da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos não seja aceita, o certo é que as normas de direito internacional que protegem os direitos humanos devem ser vistas como importantes instrumentos jurídicos de garantia da dignidade humana e da limitação do poder, servindo tanto como fonte de direitos subjetivos quanto como critério de balizamento e de legitimação da atividade estatal".

Aliás, mesmo se eles tivessem a força de lei ordinária, deveriam ter a força de revogar as normas infraconstitucionais que autorizam a prisão civil do depositário infiel. Ou seja, na verdade, os tratados internacionais de direitos humanos não tinham força nenhuma.

Anônimo disse...

George,
O status de norma constitucional conferido aos tratados de direitos humanos, pela EC/45 causa também algo que pode vir a ser estranho, sob o ponto de vista do processo legislativo: os tratados internacionais, mesmo que tratem especificamente sobre direitos humanos, vão trazer em seu bojo algumns artigos que não contenham este conteúdo, como alguns critérios procedimentais e coisas do gênero. Ao incorporar estes tratados, do ponto de vista legislativo, o Congresso pode aceitá-los in totum (assim, mesmo aqueles artigos que não versam sobre dir. humanos passariam a ser norma constitucional), ou aceitariam apenas parcialmente (e o restante do tratado, como ficaria?)
Por isso, acho criativa a tese da força jurídica "supralegal", do Min. Gilmar, que, provavelmente, encarou este problema ao criá-la (abstraindo-nos de eventuais dissídios entre o Min. Gilmar e a Profa. Piovesan).
Abraços

George Marmelstein disse...

Rafael,

me parece que as normas de organização e de procedimento previstas nos tratados não terão aplicação interna. Elas se destinam, em princípio, a regulamentar o direito internacional.

O que vai ser incorporado ao direito constitucional são os direitos previstos em tratado, e ainda assim se melhorarem a situação dos direitos fundamentais.

George