quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Os Juristas e os Poetas

Escrevi o texto abaixo por volta do ano de 1999, quando eu tinha acabado de me formar. O texto serviu como prefácio de um livro que escrevi na mesma época sobre “O Direito Fundamental à Ação”. Apesar disso, jamais pensei que ele tivesse alguma importância especial.
Para minha surpresa, alguns anos depois (acho que em 2002) recebi um telefonema de uma professora do mestrado da USP, elogiando o texto e informando que ele teria sido objeto de debate entre os alunos do Mestrado. Fiquei extremamente feliz com a notícia. É pra encher o ego de qualquer um. Por isso, acho que o texto merece ser compartilhado aqui com vocês. Também pretendo incluir na "Parte Zero" do Curso de Direitos Fundamentais. Aí vai:

Os Juristas e os Poetas

Os poetas parnasianos cultuavam a forma ao extremo. A produção literária desses poetas era, como dizia Bilac, uma profissão de fé, que invejava o ourives ao escrever, torcendo, aprimorando, alteando, limando a frase, na busca da Serena Forma, em prol do Estilo. A estética era tudo. Nada importava que fosse vazio o conteúdo, se a estrofe cristalina, dobrada ao jeito do ourives, saísse da oficina sem um defeito. A simples descrição de um Vaso Grego, por exemplo, exigia do poeta todo o seu talento, fazendo surgir um dos mais belos sonetos em língua portuguesa, mas que, no fundo, trazia nenhuma substância. A norma era "reduzir sem danos a fôrmas a forma", como o sapo-boi de Manuel Bandeira.
No outro extremo literário, apareciam, décadas depois, os dadaístas, para quem o objetivo seria destruir a forma ou qualquer espécie de ordenação lógica. Para os poetas dadaístas havia, contra tudo e contra todos, "um grande trabalho destrutivo, negativo, a executar" (Tristan Tzara, no seu Manifesto Dadá 1918). Ser "dadá" era, antes de tudo, ter como princípio abominar todos os princípios: era um verdadeiro anarquismo poético.
Se fôssemos buscar um meio termo entre esses dois movimentos pendulares, teríamos uma espécie de poeta romântico. Não os românticos de segunda geração, "mal do século", com suas poesias impregnadas de egocentrismo, negativismo, pessimismo e dúvidas; mas uma evoluída geração condoreira, cuja forma poética seria apenas um meio de propagar suas idéias libertárias. A estética não seria um fim em si mesmo: o importante seria bradar contra o escravismo e todas as formas de aprisionamento humano. Viva liberdade!, era o lema, afinal a praça é do povo como o céu é do condor.
Fazendo uma simbólica comparação, pode-se dizer que há três espécies de juristas: os parnasianos, os dadaístas e os românticos.
O jurista parnasiano seria aquele jurista tradicional, que cultua a lei até as últimas conseqüências. No campo processual, o processo seria um fim em si mesmo, completamente abstrato e autônomo. As formas, para este operador do direito, deveriam ser sempre e sempre observadas, mesmo que em sacrifício a um valor superior; afinal, para ele o valor não existiria na norma. Não haveria espaço para liberdade. A solução jurídica do caso concreto deveria se pautar nos estritos limites da lógica formal de subsunção dos fatos à norma (leia-se: à lei). O juiz seria meramente a "boca da lei", ao gosto de Montesquieu. Uma sentença prolatada por um jurista dessa espécie seria esteticamente perfeita: um relatório minucioso, uma fundamentação com vastas citações de leis e regulamentos que sustentariam a convicção do juiz e um dispositivo incisivo, retirado de um modelo de um livro qualquer. Uma bela e objetiva sentença, sem dúvida, mas completamente vazia, destituída de qualquer espírito de justiça, completamente imune a paixões e sentimentos sociais. Se para o poeta parnasiano a Língua Portuguesa seria "inculta e bela", para o jurista desta espécie a Lei poderia até ser injusta, mas seria segura como uma corrente, e, dessa forma, o juiz deveria ser seu fiel executor, sob pena de institucionalizar o caos. Por isso mesmo, a forma, ou melhor, a lógica formal teria assim sepultado o Direito, aprisionando a criatividade do jurista como uma algema, tornado-o escravo da lei.
Já para o jurista dadaísta, não haveria limites. A lei? Que lei? Essa lei desses parlamentares corruptos? Essa a gente não aceita. E se não aceitamos esta, não aceitamos lei alguma. Nossas veleidades devem prevalecer, pois somos os senhores da razão. Somente nós sabemos o que é justiça. Somos, portanto, absolutamente livres para dizer o que é o direito. Este seria, hipotética e exageradamente, o discurso de um "jurista dadá". O juiz, então, julgaria conforme sua própria vontade, ou melhor, seu arbítrio, jogando no lixo qualquer possibilidade de solução racional e minimamente objetiva.
E como seria o jurista "romântico", o "condoreiro"? Este saberia impor à sua criatividade limites objetivos e racionais. A Constituição seria a sua "musa inspiradora". Mas esta musa não seria igual àquelas dos românticos de outrora, intangível e idealizada. Pelo contrário, seria uma musa quase "realista", com seus defeitos e imperfeições e que, por isso mesmo, deveria estar em constante estado de aperfeiçoamento. O culto à lei não mais prevaleceria de forma absoluta; afinal, este jurista já tem uma paixão: a Constituição. A lei, porém, teria o seu valor: dar um norte ou um auxílio ao jurista, sem esvaziar a sua criatividade. Se essa norma infraconstitucional não servisse para dar mais efetividade à Constituição, não serviria ela para mais nada. A sentença "romântica" seria realmente uma sentença, ou seja, um sentir, onde a vontade de fazer justiça ao caso concreto circularia como sangue nas veias do juiz. Esse magistrado saberia mesclar com perfeição seu subjetivismo, que é inafastável, e o objetivismo necessário a garantir toda a racionalidade exigida pelo direito. Como os poetas condoreiros, os juristas desta espécie também teriam na liberdade a sua pedra de toque, mas com um outro nome: a libertação. E não apenas isto: a igualdade, ou melhor, a igualização seria a meta. Da mesma forma, a fraternidade, a solidariedade, enfim, todos os valores consagrados constitucionalmente.
Esse “sentimento de justiça” que circula nas veias dos juristas românticos é fruto de uma paixão desenfreada pela democracia e resultado de uma enorme crença na força normativa da Constituição.
É preciso ter consciência, porém, de que não basta "sentir", ficar "suspirando" como os poetas de antigamente. Sonhar é importante, mas não suficiente. É preciso fundamentalmente "agir". Agir para dar vida à Constituição. Agir para fazer valer o espírito de justiça que está em nossos corações. Agir para reduzir as desigualdades sociais. Agir para concretizar os direitos fundamentais. À ação, portanto!

Um comentário:

Gean Quintão disse...

Caro Amigo, se me permite chama-lo assim.

Excelente o texto, espero que desperte no publico-alvo(operadores do direito) a necessidade de entender a sistematica juridica de forma mais
dinamica.
Parabens!!!
Forte Abraço.