segunda-feira, 31 de março de 2008

Direitos Fundamentais e Quadrinhos: Sobre a "Guerra Civil" da Marvel


Amigo George,


nesta primeira postagem como colaborador do blog, não poderia escolher outro tema que não a "Guerra Civil" quadrinhística da qual falamos no último fim de semana.

Embora lamentavelmente poucos apreciem a chamada "Nona Arte" em nosso país, esse memorável arco de estórias faz por merecer nossa atenção. Não somente por bater recordes de vendas, repetindo o que já havia ocorrido quando de sua publicação original, nos EUA; mas porque sua
questão central não é nada menos que a lei restringindo direitos fundamentais - ou, como preferem os ianques, "liberdades civis".


Breve resumo: um grupo de super-heróis, atuando em um reality show, inadvertidamente provoca uma tragédia ao combater certo vilão. 600 pessoas perdem a vida, a grande maioria crianças, o que revolta a opinião pública e motiva o Congresso americano a aprovar, com rapidez inaudita, uma lei obrigando todos os heróis a "se registrar" perante o Governo. Isto significa que deverão, em nome da segurança pública, apresentar seus verdadeiros nomes, endereços, poderes, etc. A "comunidade super-heróica", então, se divide entre aqueles que decidem cumprir a lei e os que resolvem combatê-la.


Para nós, estudiosos de direitos fundamentais, é sempre interessante quando o tema é abordado na cultura pop. Para mim em especial, pois como fã de longa data do mundo dos quadrinhos foi sensacional ver uma discussão jusfundamental ocupar o núcleo central de uma trama que já fez história neste segmento. Seus autores não se limitaram a colocar os heróis para lutar entre si: fizeram com que eles discutissem intensamente até que ponto seria "proporcional" restringir o valor jurídico liberdade, bem como a proteção da esfera íntima de privacidade, em nome de outro valor jurídico - no caso, a segurança. Ou seja, uma colisão entre direitos fundamentais. O slogan da série bem o sintetiza: "what side are you on"?


Na minha modesta opinião, o Capitão América está certo: a Lei de Registro não passa por um teste de proporcionalidade. E você, "de que lado está"?



Links interessantes:
http://www.guerracivil.com.br/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Civil_(Marvel_Comics) http://www.omelete.com.br/conteudo_colunas.aspx?id=100003269&secao=colunas


Upgrade (por George Marmelstein)

Prezados leitores,


iniciando uma nova fase do blog, seguindo a tendência "colaborativa" caracteriza a web 2.0, pedi a ajuda de um grande amigo para animar esse humilde espaço virtual. O Professor Adriano "Drica" Costa irá, a partir de agora, contribuir com seus vastos conhecimentos jurídicos e gerais para dar uma maior pluralismo de idéias nas postagens.

Apesar de o foco continuar a ser os direitos fundamentais, Drica certamente tem muito a acrescentar, até porque sua área de pesquisa acadêmica e profissional é o direito privado (argh!), o que não domino muito bem. Aliás, sua dissertação de mestrado foi sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Não bastasse, Drica possui uma cultura geral inigalável. São poucos que, como ele, dominam áreas do saber que inclui esportes, política, geografia, cotidiano, artes, variedades, entreternimento, ciência natural; enfim, todas as matérias daquele jogo "Master".

E o post inaugural não poderia ser melhor. Afinal, em que outro lugar se fará uma análise tão "jurídica" de um quadrinho?













6 comentários:

George Marmelstein disse...

Grande Driconildes,

para tornar a discussão mais "concreta" me responda: como se dará a utilização desses dados? qual o órgão que o armazenará? qual a punição para aquele que se negar a participar do cadastramento? Enfim, fale-me mais sobre a lei.

De início, "algo me diz" que ela é inconstitucional, mas preciso de mais dados. Afinal, em princípio, o censo é uma atividade milenar e ninguém questionou sua validade. Do mesmo modo, por força do Estatuto do Desarmamento, todos os que portam armas de fogo são obrigados a cadastrar as armas e a se registrarem perante o órgão competente.

George

Anônimo disse...

Vamos lá Big George,
todas as informações colhidas sobre cada herói - incluindo a identidade secreta, endereço residencial, ocupação "civil", etc. - serão armazenadas pelo Estado. O registrado deverá ser submetido a treinamento junto às forças de segurança "oficiais" e passará a agir como verdadeiro "funcionário público", inclusive recebendo salário.
Sua opinião preliminar pela inconstitucionalidade ganhará força agora: os que se recusarem ao registro serão encarcerados "sine die" numa prisão de segurança máxima localizada em outra dimensão, conhecida como "zona negativa" (lembre-se, é quadrinhos!). Vários leitores compararam a situação com a dos confinados em Guantánamo.
Para maiores informações, dá uma olhada nos links que disponibilizei.
Abração,
Drica

Helana disse...

Alan Moore (pra variar) foi um dos pioneiros nessa onda de humanização dos super-heróis. Bem verdade que o homem-aranha já tratava do quotidiano comezinho por trás das capas e cintos de utilidades, mas a série Watchmen foi definitivamente um verdadeiro divisor de águas das histórias dos super-heróis, aliás, dos super-humanos.

Watchmen (que aqui ganhou o nome de "vigilantes") foi publicada no final da década de 80. O nome da série veio da quote "quis custodiet ipsos cistodes?", significando "quem vigia os vigilantes?" (sugestivo, não?).

Pois bem, na Watchemn, após a morte de um super-herói, é editado um daqueles 'acts' americanos determinando que haja o registro dos super-humanos. Como em todas as demais histórias que tratam ou trataram desta temática, Watchmen não traz um final conclusivo, deixa nas mãos do leitor a decisão sobre o cadastro obrigatório em nome da segurança pública.

Nesse sentido, essa não é uma realidade muito distante de nós: os médicos, por exemplo, são obrigados, por questões de saúde pública, a enviar informações sobre os aidéticos ao órgão público competente. Não só os portadores do vírus HIV, mas várias outras moléstias de comunicação compulsória exigem o envio da qualificação completa dos doentes, sem contudo haver divulgação destas informações (olhem a ficha aqui ->
http://tc2.sms.fortaleza.ce.gov.br/notificacaocevepi/)

Entretanto, ao contrário do 'case' brasileiro acima, o problema crucial da guerra civil está no fato de as identidades serem publicadas e amplamente noticiadas, escancarando a intimidade dos 'supers', colocando suas vidas em risco. Engraçado que a série da civil war começa justamente com um incidente dentro de um reality-show e a história se desenvolve em torno do verdadeiro big-brother que se torna o universo marvel (aqui na acepção originária do Orwell), com ameaça direta às liberdades e garantias individuais inerentes ao estados totalitários.

Mutatis mutandis, isso também vai na mesma lógica da liminar concedida à OAB-CE para proibir o envio de informações das movimentações bancárias dos correntistas advogados para a Receita Federal: a quebra do sigilo bancário pela via administrativa configura clara ofensa a direitos fundamentais consagrados, numa tentativa clara de controle unificado dos dados dos contribuintes (Marvel tupiniquim reloaded!). Nesse aspecto, confesso que minha opinião é limitada ao que
saiu na mídia, não tive acesso ao processo para falar de maneira mais balizada.

Por fim, para o conhecimento de vocês, tem uma wikipage dedicada só para todos os famosos registrations acts nos quadrinhos:
http://en.wikipedia.org/wiki/Registration_Acts_(comics)

A propósito, quem é que ainda acha mesmo que quadrinhos é coisa de criança?

George Marmelstein disse...

Helana,

muito bem colocadas suas palavras. E o exemplo da identificação de doentes por razões de saúde pública foi bem interessante.
Aliás, depois que li seu comentário, lembrei também da identificação dos portadores de armas pelo Estado. Não seriam os super-heróis "armas ambulantes"?

De fato, aparentemente, a inconstitucionalidade da lei não está tanto no registro em si, mas no seu uso e na sua publicidade.

Mas é algo a se debater...

George Marmelstein

George Marmelstein disse...

Já que se está falando de quadrinhos e super-heróis, uma interessante decisão envolvendo o super-homem (em inglês):
http://uncivilsociety.org/siegel_superman_032608.pdf

Helana disse...

É, George, o exemplo da identificação de porte de arma é até mais adequado ao contexto.

De cara, a gente já acha que a lei é inconstitucional (como você mesmo comentou em relação ao seu 'feeling'), pois mexe com um forte imaginário construído na nossa infância. Explico: no âmbito das revistinhas, acreditamos sempre que o herói nunca agiria contrário à Justiça, ele é a própria Justiça.

Em verdade, quando o herói desobedece à lei, sempre o faz com o salvo-conduto de que o vilão, nesse caso, é o próprio Estado, através de algum político inescrupuloso, por exemplo.

O papel do herói no imaginário infantil é tão importante que não é à toa os freudianos associarem o fim da infância à desconstituição da figura do pai-herói pelo adolescente (lembrei agora do filme "Os heróis não tem idade", com o fantástico Danmey Coleman no papel do espião Jack Flack, o roteiro tratava de maneira bem icônica essa relação da perda dos idólos da infância / imdb -> http://www.imdb.com/title/tt0087065/).


Mas divago novamente!

Bem, ocorre que, mesmo que o herói represente a própria encarnação do bem, isso não autoriza o descumprimento da lei. Platão,

através de seu 'alter-ego' Sócrates, já preconizava o seguimento das leis ainda que houvesse discordância pessoal,
impondo-se, contudo, a necessidade de contestá-las pelas vias cabíveis. O pior é que as HQ's geralmente complicam a situação vilanizando um dos pólos maniqueísmo etc e tal), freqüentemente o Estado.

Se os heróis continuarem tendo essa posição de quarto poder, faz-se necessário uma revitalização do sistema pe pesos e contrapesos, atráves de algum controle externo de suas condutas, não? ;P O que não pode é eles continuarem à margem da lei.

Na Civil War, como o adriano relatou acima, o herói passa a ser oficial do governo, receber soldo. Isso é benéfico, até porque fará com que ele tenha as prerrogativas do estrito cumprimento do dever legal ;)Fica parecendo uma espécie de alistamento militar obrigatório. Em alguns países da Europa (como a suíça) a prestação de serviço militar é contínua, não se resume a dois ou três anos de CPOR.

Enfim, como você disse, há muito o que se debater, vou parando por aqui.