segunda-feira, 6 de agosto de 2007

O Direito como Instrumento de Luta

Sempre tive consciência de que o direito é um instrumento de poder. Ele, por si só, não é bom nem é mau, mas pode ser bom ou ser mau de acordo com as circunstâncias. Como instrumento de poder, ele não é neutro. Ele está a serviço de alguém ou de algum grupo. Nesse sentido, Karl Marx via o direito como ferramenta de dominação utilizada pelos detentores do poder para oprimir a classe trabalhadora e manter o “status quo”. De certo modo, ele tinha razão.
Porém, a democracia moderna – que Marx não conhecia na prática – demonstrou que o direito igualmente pode servir para que as classes tradicionalmente oprimidas alcancem o poder e consigam alguma melhoria na sua qualidade de vida. A constitucionalização dos direitos econômicos, sociais e culturais é prova disso. O direito, portanto, também pode ser instrumento de transformação da sociedade, sobretudo nos países que adotaram a fórmula “Estado Democrático de Direito”.
Tudo isso está sendo dito como pano de fundo para me permitir a sugestão de três artigos que analisam o papel ideológico do direito. O primeiro, que segue logo abaixo, aqui mesmo neste blog, é de minha autoria e ainda é, por assim dizer, um mero esboço. Os outros dois são, respectivamente, do Luís Roberto Barroso e do Amilton Bueno de Carvalho, dois juristas que muito influenciaram minha formação acadêmica. Creio que eles fornecem um bom estímulo para que se compreenda o direito como um instrumento de luta.

“Direito e Paixão” – Luís Roberto Barroso

“A lei. O juiz. O justo” – Amilton Bueno de Carvalho

O Direito como Instrumento de Luta e de Mudança Social

“Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons. Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons. Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda. Porém, há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis” – Bertolt Brecht

A história da humanidade é uma história de lutas. Alguns lutam para alcançar o poder; outros, para se manter no poder. Há ainda aqueles que simplesmente lutam contra a opressão e contra as injustiças. Por fim, há os que se dizem indiferentes a tudo isso. Estes últimos, na verdade, são os que mais são afetados por essa disputa pelo poder. Eles se iludem imaginando que podem viver alheio ao mundo político, quando, na verdade, o mundo político se alimenta de sua indiferença.
O poeta alemão Bertolt Brecht já dizia com perfeição que “o pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo da vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais”.
Tudo isso está sendo dito não como estímulo e elogio de uma estúpida e sem sentido “luta de classes”, como se devesse existir ódio entre os seres humanos. Longe disso. A luta que se defende não é sangrenta. Não é uma luta com armas de fogo. É uma luta com idéias, com argumentos. Para ser mais preciso, é uma luta através do direito e da democracia. Afinal, “nenhuma idéia vale uma vida”, diz o belo verso da música “Enquanto houver sol”, dos Titãs, que se inspiraram na frase “a vida não vale nada, mas nada vale uma vida”, do escritor francês André Malraux.
O Direito sempre foi e sempre será um instrumento de poder. Ele, por si só, não é bom nem é mau. Mas pode ser bom e pode ser mau, dependendo do ponto de vista e do uso que é feito dele.
Por muito tempo, o Direito e o Estado estiveram a serviço daqueles que detém o poder estatal, funcionando como ferramenta de opressão e de manutenção das estruturas sociais. Já diziam os gregos Trasímaco, Calícles e Clítias: “as leis são fruto do poder arbitrário dos detentores do poder, que as editam em função de seus interesses” (AGUIAR, Roberto A. R.. O que é Justiça? Uma abordagem dialética. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1999, p. 31). Rousseau, do mesmo modo, dizia que “as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm”. E o sábio poeta cearense Patativa do Assaré, que certamente não leu Rousseau, já cantava que “só o rico tem direito a tudo, não há justiça para quem é pobre” (“Cante lá, que eu canto cá”).
A literatura mundial também está cheia de exemplos de anedotas que ressaltam essas características das leis e do Direito de um modo geral. Anatole France, por exemplo, brincava que “a lei, na sua majestosa igualdade, proíbe ricos e pobres de dormirem sob as pontes, de mendigarem pelas ruas e de furtarem um pedaço de pão”. Em sentido parecido, Anacársis dizia que “as leis são como as teias de aranha: os insetos pequenos nelas se enredam; os grandes partem-nas sem dificuldade”. Na mesma linha, costuma-se dizer que cadeia é apenas para os três “Ps”: preto, pobre e prostituta.
Se você analisar bem, irá perceber que a lei, na verdade, não é a representação de uma ilusória “vontade geral”, como imaginava Rousseau, mas tão somente a vontade daqueles parlamentares que a votaram, nem sempre com interesses nobres. Pensar que os parlamentares representam a vontade popular é uma fantasia (daí falar-se em um “fetiche da lei”). Esse fato é facilmente constatado em um país como o Brasil, cujo processo político-eleitoral é marcado por campanhas milionárias que elitizam qualquer representação partidária. O “escândalo do mensalão”, episódio recente da nossa história, demonstrou com clareza toda a sujeira do processo eleitoral brasileiro, marcado por compra de votos, caixa dois, lavagem de dinheiro, financiamento de campanhas por grupos criminosos, corrupção e fraude à legislação eleitoral como regra. Será, portanto, que esses deputados e senadores eleitos exercem seus mandatos pensando honestamente em um bem-estar do povo como um todo? É difícil ser otimista diante da realidade.
Diante disso, surge uma encruzilhada para o positivismo jurídico. O positivismo defende que a norma jurídica elaborada pelo Estado é a única fonte capaz de produzir o legítimo direito. Por isso, o positivismo jurídico pressupõe uma crença nas normas jurídicas, sobretudo nas leis votadas pelo parlamento. Mas como acreditar nas leis e nas instituições diante de um quadro político tão sujo como o desenhado acima? O positivismo jurídico não é capaz de responder a contento esse dilema.
Por isso, são sempre freqüentes as críticas ao direito positivo. Há, pelo mundo todo, diversas escolas do pensamento jurídico que combatem abertamente o positivismo. Aqui no Brasil, pode-se citar, por exemplo, o chamado “Movimento Direito Alternativo”, que surgiu nos anos 80, no Rio Grande do Sul, quando alguns magistrados daquele Estado tomaram um posicionamento crítico em relação ao papel do Judiciário, questionando que eles – juízes – não deveriam ser instrumentos de manutenção do status quo, mas de libertação, ou de igualização, como dizia Rui Portanova. Os defensores do direito alternativo tinham uma postura hostil em relação às leis votadas pelo Congresso Nacional, pois, na ótica deles, as leis representavam a mentalidade da classe opressora.
Confesso que as idéias do movimento direito alternativo muito me influenciaram no início de minha formação acadêmica. De certo modo, ainda hoje concordo com as idéias básicas defendidas pelo direito alternativo. No entanto, com o amadurecimento teórico, percebi que não é preciso partir para teses “alternativas” para conseguir fazer Justiça Social.
A partir do momento em que a Constituição passa a incorporar em seu texto os valores éticos mais relevantes, ou seja, os direitos fundamentais, o direito positivo ganha uma nova dimensão axiológica, muito mais humanista e mais preocupada em fazer justiça ao caso concreto.
O Brasil é exemplo desse fenômeno. Desde a promulgação da Constituição de 88, está havendo uma profunda mudança de paradigma na forma de encarar o Direito. O direito brasileiro, tradicionalmente, sempre foi conservador e formalista. Sua finalidade consistia basicamente em assegurar o status quo, garantindo aos “donos do poder” uma cômoda preservação da ordem estabelecida e de seus privilégios. Contudo, sob a égide da Constituição cidadã, o ordenamento jurídico brasileiro tornou-se nitidamente comprometido com os direitos fundamentais e com a mudança social, conforme se observa na simples leitura do artigo 3º, que traça os objetivos da República Federativa do Brasil. Lá está escrito claramente que o papel do Estado brasileiro é acabar com a miséria e reduzir as desigualdades sociais, demonstrando um inegável compromisso com a transformação da sociedade. É a própria Constituição, como norma suprema do ordenamento jurídico, que está dizendo isso.
Mais cedo ou mais tarde, esse compromisso constitucional acaba afetando a mentalidade jurídica. O próprio ensino jurídico torna-se mais progressista e, conseqüentemente, os profissionais do Direito, na medida em que vão assimilando esse novo espírito transformador, também se tornam menos formalistas e menos conservadores. Não é à toa que já é possível encontrar posições doutrinárias e jurisprudenciais avançadas e elogiáveis em termos de proteção judicial dos direitos fundamentais. Uma coisa leva à outra, através de um saudável círculo virtuoso.
É lógico que ainda é possível, pontualmente, verificar situações em que o direito é utilizado como mecanismo de dominação. No entanto, pelo menos para a maioria dos países que optaram pela fórmula “Estado Democrático de Direito” e pela consagração dos direitos fundamentais, o direito positivo também pode servir para limitar o poder e para melhorar a qualidade de vida dos mais pobres. Hoje, o mais positivista dos positivistas é capaz de extrair da Constituição respostas justas para os mais complicados problemas jurídicos.
Como defende Luís Roberto Barroso, "o Direito, mesmo o Direito da classe dominante, tem nuances, tem brechas que permitem que dentro dele se desbrave um espaço importante de luta. Luta pelas liberdades individuais, pela aproximação das pessoas, pela democratização das oportunidades. Se assim não fosse, se o Direito não pudesse ser, em alguma medida, instrumento de libertação e de humanização, não haveria sentido em estarmos aqui.
O Direito é ciência. O direito é técnica. É preciso conhecer-lhe o instrumental teórico e prático. Mas é preciso ter convicções límpidas e colocar o conhecimento a serviço das causas em que se acredita" (BARROSO, Luís Roberto. Direito e Paixão, p. 610 In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 603/628).
Diante disso, retorno a uma idéia defendida acima: o direito, por si só, não é bom nem é mau. Ele pode gerar conseqüências ruins, mas também pode gerar conseqüências boas. E nos dias de hoje, felizmente, o direito positivo (que não se restringe às leis), aos poucos, tem deixado de servir apenas aos interesses da classe dominante para se converter também em um legítimo espaço de luta para conquista de reivindicações populares. Através do direito, sobretudo do direito constitucional, é possível transformar a sociedade sem necessitar da violência ou de outros meios pouco legítimos. Utilizando as palavras de Häberle, o direito pode ser um instrumento que “permite derribar a los gobiernos sin derramar sangre y dejar morir a las teorías en lugar de las personas” (HÄBERLE, Peter. El estado constitucional europeo. In: Cuestiones constitucionales – Revista mexicana de derecho constitucionale, México: UNAM, n. 2, 2002).
Cabe a todos nós que nos preocupamos em construir um mundo melhor utilizar as ferramentas que o próprio direito positivo fornece para fazer com que os objetivos constitucionais sejam efetivamente realizados e cumpridos na máxima extensão possível. Sei que há um pouco (na verdade, muito) de utopia nisso. Mas a utopia é necessária. Diria mesmo, fundamental.

Um comentário:

Anônimo disse...

Uma bela explanação!!!!
Seria bom se a realidade fosse assim...
Porém, o que se observa é um contigente de pessoas que estudam direito sem essa perspectiva..mtos não percebem a importância do curso dentro do contexto social, estão tão interessados em mudar seu padrão de vida que esquecem seu verdaeiro papel: defensores da lei!!!
Ideologia demais tbém naum resolve nada!!!