quarta-feira, 12 de março de 2008

Direito à Saúde e Remanejamento de Verbas

Conforme noticiado no blog "Direito e Democracia", o Tribunal Regional Federal da 5a Região, em recente decisão, decidiu o seguinte: "a garantia da preservação da saúde dos cidadãos autoriza determinação judicial para que os recursos, inicialmente previstos para fins publicitários, sejam direcionados ao TFD - Tratamento Fora do Domicílio, tudo em função do sopeso dos bens jurídicos a resguardar" (TRF5, Processo nº 2006.84.00.005522-4, Relator: Juiz Francisco Cavalcanti, j. 8 de novembro de 2007, por unanimidade).


A íntegra da decisão, relatada pelo Desembargador Federal Francisco Queiroz Cavalcanti, pode ser vista aqui.


Muito interessante a decisão.


Como já afirmei em outra ocasião, fui um dos primeiros juízes a determinar o remanejamento de verbas publicitárias para o pagamento de ordens judiciais em matéria de saúde (no caso, falta de leitos de UTIs). Proferi a decisão em 2003, que foi cassada pelo TRF5, sob o forte argumento de que "o juiz não pode determinar, ainda que por razões humanitárias, o remanejamento ou a transferência de recursos orçamentários, nem mesmo na hipótese de propaganda institucional do governo. Decisão que, em parte, exorbita o controle jurisdicional" (clique aqui).


Em 2005, na minha dissertação de mestrado, voltei a defender praticamente a mesma idéia de que, para efetivar direitos sociais, muitas vezes, é necessário ser criativo, inclusive para exercer, sempre excepcionalmente, o controle do orçamento público. Advinhem quem participou da minha banca? O Desembargador Francisco Queiroz, na época, Presidente do TRF5.


O curioso é que, na avaliação da minha dissertação, o Dr. Queiroz foi bastante crítico com relação à minha postura em favor do ativismo judicial. Sempre com bons argumentos e sem qualquer intuito de menosprezar, ele "bateu pesado" nos pontos mais polêmicos que defendi, inclusive no redirecionamento de verbas públicas para cumprir ordens judiciais em matéria de efetivação dos direitos sócio-econômicos. Saí com a impressão de que não o havia convencido, apesar de ter sido aprovado "com louvor".


Agora, vejo que nossos pontos de vista não são tão díspares assim. Os argumentos por ele lançados no seu voto são muito parecidos com o que escrevi na minha dissertação.

Disso tudo, tiro a seguinte lição: às vezes, ousar é necessário, ainda que, no início, a ousadia seja mal compreendida.

Upgrade:

Cito um trecho da minha dissertação (já reproduzido nos comentários a este post) que sintetiza meu ponto de vista:

"ninguém questiona que um juiz possa – e pode mesmo – declarar a inconstitucionalidade de uma lei tributária, eximindo uma grande empresa de pagar contribuições sociais ou impostos, cujas receitas já estavam previstas no orçamento público, gerando um enorme “prejuízo” ao Erário. Também não é estranho que um juiz conceda a um grupo de servidores públicos o direito a uma gratificação ou a um grupo de segurados o direito a um benefício previdenciário, buscando na própria Constituição o fundamento de decidir, mesmo não havendo previsão orçamentária ou legal.

Por outro lado, muitos juristas considerariam um “absurdo” se um juiz determinasse que um grupo de estudantes pobres fosse matriculado em uma escola particular, às custas do Poder Público, em caso de greve no ensino público fundamental ou de suspensão do serviço por qualquer outra razão.

Qual a diferença substancial entre um caso e outro? Em princípio, nenhuma: em todos os casos o que se está fazendo é buscar na Constituição os argumentos para realizar direitos subjetivos assegurados pelo sistema constitucional.

Uma decisão que libera uma empresa de pagar um determinado tributo pode causar impactos orçamentários muito maiores do que uma decisão que obrigue, por exemplo, o Estado a comprar medicamentos para um grupo de doentes ou a matricular um grupo de estudantes carentes em uma escola particular quando a escola pública não está funcionando. Não há diferença substancial entre uma decisão e outra. Ambas geram gastos públicos. E ambas concretizam direitos constitucionais. É hipocrisia, portanto, dizer que o juiz não pode atuar na defesa de direitos prestacionais por razões orçamentárias.

É possível perceber, com certa freqüência, uma má-vontade em relação aos direitos sociais titularizados pelos realmente necessitados. Há, ao que parece, um certo preconceito em relação aos direitos “de pobre”, resultado da formação elitista dos bacharéis em direito: quando o direito social é “de pobre”, não cabe ao Judiciário intervir, já que o Executivo tem plena discricionariedade; já quando o direito é de gente rica ou esclarecida, aí sim o Judiciário é o guardião da Constituição".

10 comentários:

Anônimo disse...

Por falar em ousadia, o que acha da sentenca de procedencia numa adin por omissao? Poderia o Supremo fazer a norma provisoria, a valer ateh que o Congresso fizesse a definitiva?
Farei monografia sobre o tema, mas nao encontrei nenhum doutrinador que defenda a ideia, nem mesmo o bam bam bam dos constitucionalistas-Canotilho- embarca na ideia. Dos doutrinadores locais, apenas um timido paragrafo no Jose afonso da Silva.

Joao Paulo

Unknown disse...

Caro George,
respeito a sua posição, mas discordo totalmente.
Acho que o judiciário, nesse caso, está a ururpar a competência do administrador público.

Unknown disse...

1 - Quem aprova o orçamento é o Legislativo - e, portanto, o povo - e quem o administra é o executivo. Que legitimidade tem um juiz para "elaborar um orçamento", determinando que a verba deixe de ir pra o destino A e vá para a atividade B?? Não estaria ele ururpando a competência do legislativo e do executivo ao mesmo tempo?

2 - O fornecimento de remédios pelo judiciário deve ser visto com reservas. A indústria farmacêutica lança diariamente milhares de remédios, prometendo a cura de várias doenças. No entanto, quando o poder público decide comprar o remédio A em vez do remédio B para fornecê-los aos pacientes da rede pública, é com base em testes de eficácia e em testes que atestem a compatibilidade com um maior número de casos (pacientes). Já vi decisões absurdas de juízes que ordenam o fornecimento de remédios caríssimos, os quais o SUS não fornece, mesmo que o SUS tenha à disposição um outro remédio que sirva para aquela enfermidade. Ora, se o remédio fornecido pelo SUS não é o mais indicado para 1 caso apenas, ele não pode ser beneficiádo (sobretudo se o valor do medicamento for muito alto) enquanto outros milhões de pessoas nem tem condições de contratar um bom advogado para fazer o mesmo pleito no judiciário.

3 - será que nessas decisões o juiz não quer apenas tirar um peso da sua consciência?

4 - aqui em Pernambuco aconteceu um caso interessante. Um juiz muito conhecido estava em estado grave e precisava de um transplante urgentemente, mas ainda tinha muita gente na frente dele, na fila de transplante. Contratou o presidente da OAB local na época. Este ingressou com uma cautelar pedindo para "furar a fila" do transplante, alegando que seu caso era mais urgente que os dos demais. O processo distribuído para um juiz amigo do magistrado autor. Ele, corajosamente, negou a liminar. O advogado agravou, e, num sábado, no Tribunal de Justiça, um Desembargador concedeu a liminar, mandando expedir ofícios para todos os bancos de órgão do país que, determinando que o primeiro órgão disponível devia vir para Pernambuco. Um paciente receberia o coração no Ceará, mas esse órgão veio para Pernambuco. O magistrado morreu no domingo, o órgão chegou aqui na segunda. O paciente lá do Ceará também morreu.
Parabéns para o Juiz que negou a liminar - muito correto, por sinal. O desembargador, apenas tentou efetivar o direito fundamental à saúde ou tirar o peso da morte do colega das suas costas?
Até esse dia eu não gostava muito desse juiz que negou a liminar. Nâo concordava com decisões que ele tinha dado em casos em que eu advogava. A partir desse dia, no entanto, passei a admirá-lo.

George Marmelstein disse...

João Paulo,

a questão é interessante. Mas já não existe o mandado de injunção para essa finalidade?

No mais, a título de sugestão, conheço dois bons livros sobre o controle de constitucinalidade das omissões legislativas. Um da Flávia Piovesan (acho que o título é "Proteção Judicial contra Omissões Legislativas") e o outro do Dyrlei da Cunha Júnior ("Controle Judiciário das Omissões do Poder Público"). É só conferir.

George

George Marmelstein disse...

Rodrigo,

meus argumentos estão na dissertação por isso prefiro não reproduzi-los aqui. Mas compreendo suas preocupações. Aliás, eu próprio me auto-critiquei a mim mesmo (!!!). É só ler a dissertação.

Mas adianto que o controle jurisdicional do orçamento público é aceito no mundo tudo, inclusive nos EUA. Também cito isso na dissertação.

Quer ver um exemplo. Digamos que um Governante muito maluco resolva criar um tributo inconstitucional. Sei que isso é raro, mas vamos pensar em absurdos... :-)
A receita do tributo está prevista no orçamento. Será que o juiz não poderia reconhecer a inconstitucionalidade deste tributo, ainda esta não seja a vontade do povo soberano, representado pelos sábios parlamentares?

Só um trecho da dissertação:

"ninguém questiona que um juiz possa – e pode mesmo – declarar a inconstitucionalidade de uma lei tributária, eximindo uma grande empresa de pagar contribuições sociais ou impostos, cujas receitas já estavam previstas no orçamento público, gerando um enorme 'prejuízo' ao Erário. Também não é estranho que um juiz conceda a um grupo de servidores públicos o direito a uma gratificação ou a um grupo de segurados o direito a um benefício previdenciário, buscando na própria Constituição o fundamento de decidir, mesmo não havendo previsão orçamentária ou legal.
Por outro lado, muitos juristas considerariam um 'absurdo' se um juiz determinasse que um grupo de estudantes pobres fosse matriculado em uma escola particular, às custas do Poder Público, em caso de greve no ensino público fundamental ou de suspensão do serviço por qualquer outra razão.
Qual a diferença substancial entre um caso e outro? Em princípio, nenhuma: em todos os casos o que se está fazendo é buscar na Constituição os argumentos para realizar direitos subjetivos assegurados pelo sistema constitucional.
Uma decisão que libera uma empresa de pagar um determinado tributo pode causar impactos orçamentários muito maiores do que uma decisão que obrigue, por exemplo, o Estado a comprar medicamentos para um grupo de doentes ou a matricular um grupo de estudantes carentes em uma escola particular quando a escola pública não está funcionando. Não há diferença substancial entre uma decisão e outra. Ambas geram gastos públicos. E ambas concretizam direitos constitucionais. É hipocrisia, portanto, dizer que o juiz não pode atuar na defesa de direitos prestacionais por razões orçamentárias.
É possível perceber, com certa freqüência, uma má-vontade em relação aos direitos sociais titularizados pelos realmente necessitados. Há, ao que parece, um certo preconceito em relação aos direitos 'de pobre', resultado da formação elitista dos bacharéis em direito: quando o direito social é 'de pobre', não cabe ao Judiciário intervir, já que o Executivo tem plena discricionariedade; já quando o direito é de gente rica ou esclarecida, aí sim o Judiciário é o guardião da Constituição".


George

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

George... Adorei ler a postagem. Esclareceu o mistério que ficou no ar, para mim, quando você disse que a decisão era interessante - em comentário no meu blog - principalmente por ser do Dr. Cavalcanti... Agora entendi, perfeitamente!
E, sabe, acho que concordo com você. Não faz diferença mesmo. O Executivo tem discricionariedade para desrespeitar a Constituição na feitura do orçamento? Não podemos dizer que ele também tem discricionariedade para não pagar as vantagens dos servidores? E não tem discricionariedade para exigir tributos indevidos? Por que teria para aplicar os recursos públicos em bobagem (publicidade é, inegavelmente, para não dizer algo pior), violando (como não?) a Constituição?
O argumento do "de pobre" me pareceu, além de trágico-cômico, desconcertantemente verdadeiro. Lembrei do meu professor de Hermenêutica, que falava ontem da verdade, às vezes poética, subjacente a muitas idéias da cultura popular. E a que ele referiu foi a mencionada pela diarista que faz a limpeza da casa dele. Tendo a intenção de doar a ela alguns sapatos usados, perguntou-lhe o número de seu pé e o de seus familiares, ao que ela respondeu: - Doutor... Pé de pobre não tem tamanho. (Ou seja, a necessidade é tanta que qualquer coisa serve, não havendo espaço para o luxo de um sapato que sirva perfeitamente)
Dizem que as coisas geniais são muito simples, e que o gênio é aquele que mostra o que estava na cara de todo mundo e ninguém via. É aí que está, até certo ponto, a ousadia.
Continue ousando. Se ninguém ousasse no mundo, ainda estaríamos a desenhar bisões em paredes de cavernas... Posto isso para você, por um teclado, em um ambiente virtual, e não numa parece de caverna ou num bloco de argila, porque muitos caras andaram ousando desde que aparecemos neste planeta.

Unknown disse...

Vou ler a monografia por completo e depois expor meus argumentos de forma mais organizada. Aqui lancei apenas alguns pontos para reflexão.

De toda forma, é uma discussão muito boa essa...

Anônimo disse...

Melhor errar algumas vezes do que errar sempre por acreditar numa falsa concepção da separação de poderes. Adorei a decisão e acho que precisamos de mais decisões como essa. Imunidades de poder não são muto bem-vindas no estado democrático de direito. Abs, Eduardo Fortunato Bim.

Anônimo disse...

Professor George,

muito bom post como de costume.

a parte do político maluco fazer uma lei tributária incosntitucional (em caso extremo e de absurdo raciocínio) foi bastante engraçada.

Mas o ativismo judicial (alguns não gostam do nome) deve ser ponderado.

A passagem acerca do direito social de rico, e o direito social de pobre, já tinha chamado a minha atenção quando eu li pela primeira vez sua dissertação.

Por isso, pergunto, não seria melhor sedimentar a cultura da "sociedade aberta dos intérpretes da constituição" conforme preconina Haberle ? do que conferir aos juízes o papel de "agente" para os casos de omissão inconstitucional? Digo isto porque, concordo acerca do que o senhor falou sobre a formação elitista dos bacharéis, mas penso que esse caso se agrava quanto a formação de magistrados e membros do MP (não a totalidade, mas em grande número).

Por exeplo (supostamente de omissão legislativa), cito aqui novamente o HC 89417/RO julgado pela 1ª turma do Supremo. Por 3 votos a 2 reconheceu-se que em que pese a expressa previsão do art. 53, § 2º da CF determinar a imunidade formal (processual) dos parlamentares, tal norma foi afastada para se cosiderar legítima a prisão do presidente da assembléia legislativa do estado de Rondônia, sem liçensa ou deliberação da casa legislativa, e ainda por crime afiançável (288 do CP) sob o argumento de que: A constituição não prevê direitos absolutos, sendo a imunidade formal parlamentar relativa, pois a constituição, ao mesmo tempo que não confere direitos absolutos, não admite a impunidade de ninguém.

Ora, como cidadão, aplaudo a decisão da ministra Cármen Lúcia (e dos que a seguiram: Carlos Britto e em minerva Supúlveda Pertence).

Mas os argumentos contráris também merecem aplausos: Lewandowski e Marco Aurélio.

Ainda não havia ocorrido a formação de culpa. E as garantias processuais do réu, que nesse caso foi confundido com a cadeira que ocupava?

No caso o ativismo judicial foi tamanho que ainda que se considere que 23 dos 24 membros da Assembléia Lesgislativa estavam sendo investigados, nenhum havia sido condenado definitivamente, aliás, ainda haviam inquéritos e ações penais em curso sem Sentença (no caso acórdão porque foi o STJ que julgou na APN 460).

No caso dos leitos das UTI's concordo plenamente, ponderando-se o direito à saúde com o direito do o executivo de promover sua gestão, deve prevalecer obviamente a saúde. Mas e quando o ativismo tiver que versar sobre questões que contenham pesos semelhantes como Garantias Penais de um Réu versus Direito Estatal de Punir ?

Por isso, na esteira do problema do ativismo judicial, o problema reside na interpretação? ou a interpretação (conforme os críticos) é apenas um ato de descrição e explicação da norma?

Não vejo como se encontrar o espírito da norma sem adentrar em um terreno perigoso de subjetividade.

Parabéns (pela milésima vez) pelo blog. :)

Thiago.

Anônimo disse...

Professor Hugo,

belo comentário, principalmente acerca da diarista do seu professor de hermenêutica.

Mas, apenas provocando, o senhor entende que (me corrija se eu tiver entendido errado) até certo ponto, a genialidade de simplificar as coisas que estavam na cara de todo mundo, é justamente a ousadia que falta ao judiciário brasileiro?

qual seria a complementação a esta navalha de Occam?

Abraços,

Thiago.

Ps: parabéns pelo seu blog, só não estou conseguindo postar nada lá, sempre dá erro de script.