terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Acesso à Justiça e Abuso de Direito: o Caso da Igreja Universal versus Folha de São Paulo

De acordo com notícia publicada no Conjur (clique aqui), a Igreja Universal estaria orientando seus fiéis a ingressarem com ações judiciais por todo o Brasil contra a Folha de São Paulo, alegando que uma matéria publicada naquele jornal teria violado a honra daqueles que acreditam nos ideais religiosos pregados pelo Bispo Edir Macedo.


Trata-se de um caso típico de abuso de direito fundamental, especificamente do direito fundamental de ação (Acesso à Justiça).


Esse princípio - o da proibição de abuso de direito fundamental - é, na minha ótica, um dos mais importantes para a correta interpretação desses direitos, embora, lamentavelmente, aqui no Brasil, praticamente ninguém fale dele com profundidade.


A idéia básica da proibição de abuso é a seguinte: nenhuma pessoa pode invocar direitos fundamentais para justificar a violação de outros direitos fundamentais igualmente importantes. Daí porque, por exemplo, a incitação de idéias racistas ou nazistas não pode ser considerada como alvo de proteção das normas jusfundamentais que garantem a liberdade de expressão, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal ao julgar o Caso Ellwanger.


No caso da Igreja Universal, é nítido que o direito fundamental de ação está sendo utilizado, de forma abusiva, como instrumento para embaraçar o exercício da liberdade de imprensa. Se fosse uma única ação, o exercício do direito de ação seria legítimo, cabendo ao Poder Judiciário definir qual direito deve prevalecer (se a honra da Igreja Universal ou a liberdade de imprensa). Mas ao propor milhares de ações pelo Brasil afora fica claro que o intuito do processo judicial é gerar prejuízo financeiro para a Folha de São Paulo, com a contratação de advogados, sem o propósito honesto de se buscar uma reparação justa, o que não pode ser tolerado pela Justiça.


Se eu fosse o juiz processante, além de condenar os autores por litigância de má-fé, intimaria a Igreja Universal para participar de todos os processos, fazendo com que ela prove um pouco do próprio veneno.


Upgrade

Alguns comentários dos leitores, me forçaram a apresentar novos argumentos em favor do meu ponto de vista. Vamos lá.

Em primeiro lugar, a má-fé (intenção deliberada de prejudicar) é praticamente impossível de ser provada. Por isso, são as circunstâncias objetivas dos fatos que nos permitem concluir, por presunção, que está havendo abuso.

Todos sabem que as igrejas de um modo geral exercem uma grande influência sobre os seus fiéis.

A reportagem da Folha foi um ataque direto à reputação da Igreja Universal. Logo, é natural que os pastores da igreja insuflem os seus seguidores a reagiram a esse ataque.

Até aí tudo bem. Há várias formas de reação: cartas ao jornal, boicotes, protestos enfim, é uma reação normal e esperada em uma democracia.

De repente, alguns dias depois da publicação da matéria, começam a aparecer, pelo Brasil afora, centenas de ações de indenização, com petições praticamente idênticas, exigindo a configuração da responsabilidade civil da empresa jornalística. Observe que o ataque foi à Igreja e não seus fiéis, o que já poderia configurar uma ilegitimidade ativa, mas isso é uma questão mais complexa. O importante por ora é tentar demonstrar o abuso. Pois bem.

É muita coincidência que todos os fiéis - individualmente - sem consultar à direção da Igreja resolvam ingressar com a mesma ação em diferentes Estados e - veja que interessante - nos juizados especiais, onde há gratuidade da justiça em primeira instância.

O vínculo entre eles, justamente por fazerem parte da mesma congregação religiosa, é indiscutível, a meu ver.

E veja que não estou falando que precisam de cem ou duzentas ações para configurar o abuso. Essa quantidade enorme é tão somente um fator bastante objetivo para inverter o ônus da prova: agora quem tem que provar que está de boa-fé são os autores da ação. E a boa-fé, nesse caso, é fácil de ser provada: basta ele jurar - perante Deus :-) - que não foi incentivado pelo pastor a ingressar com a ação.

Se fossem duas ações somente, também poderia estar configurado abuso se (e aí o ônus da prova é da Folha) ficasse demonstrado que houve um conluiu para prejudicar a empresa.

Em uma sociedade massificada, é perfeitamente possível (e isso ocorre com freqüência) que o mesmo fato dê ensejo a diversas ações, de diferentes autores, em muitos Estados da federação. As ações tributárias, as ações de consumidor (tarifa básica, por exemplo), as ações previdenciárias, são exemplos nesse sentido. Mas o caso ora comentado, aparentemente, não se inclui nessa hipótese, pois as circunstância objetivas que o rodeiam levam à conclusão oposta, qual seja, a de que houve sim má-fé, salvo se os autores comprovarem o contrário.

Como juiz, se o autor da ação jurasse, com a mão na Bíblia, que não houve uma deliberada intenção de prejudicar a Folha, aceitaria o argumento de que ele estava de boa-fé, embora isso, por si só, não justificasse, em princípio, uma ação indenizatória, pois a liberdade de imprensa, na minha ótica, proteje as críticas às instituições, inclusive às igrejas.







12 comentários:

George Marmelstein disse...

A propósito, a base normativa do princípio da proibição de abuso de direito fundamental é o Pacto de San Jose da Costa Rica:

"Artigo 29 – Normas de interpretação

Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:

1. permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista;

2. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados;

3. excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo;

4. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza".

Anônimo disse...

quantas acoes sao necesssarias para a configuracao do abuso? 2, 3, 4?

Suponha que 100 acoes seja a resposta. Dai, do primeiro ao nonagesimo nono, todos ganham. Ja o centesimo, esse comerah o pao que o diabo amassou.

Armando

Anônimo disse...

aaa

Anônimo disse...

A Igreja Universal afirma que por volta de 5000 templos no país,se cada templo frequentarem 500 fiéis, são 2500000 de pessoas entrando na justiça. Mas e se eu, que não sou da Igrja Universal resolver afirmar que sou fiel e que também vou entrar a justiça para ganhar um por fora? E se todos entrarem? Vê se tem lógica? Olha o precedente que estão abrindo.

Anônimo disse...

Abuso de varios que muitas vezes nem se conhecem. Cade o vinculo juridico entre eles para que se possa afirmar existir abuso?

Andre disse...

É uma situação difícil. Creio que seja um típico caso em que se utiliza de um direito fundamental como salvaguarda para a prática de um ato ilícito.
É utilizar-se do aparelhamento judiciário (já tão comprometido pela alta demanda) com intuito de trazer prejuízos à outra parte pela simples efetivação de um direito. É lamentável e que, na minha visão, a situação exige uma certa cautela e 'ponderação' sobre o acesso ao judiciário.
Caso contrário, também concordo, estaríamos consentindo com um evidente abuso à efetivação do direito de acesso ao judiciário (pelos menos para aqueles que conseguem enxergar esse abuso - milhares de causas "sem causa") em decorrência de uma alienação mental consumada sempre em prol de interesses que desconfiamos (ou sabemos) serem particulares. Tudo isso, sem contar que tal abuso extrapola as fronteiras da relação processual, pois, como falei, tal excesso de demanda nesta ocasião, faz com que o órgão judiciário se ocupe desnecessariamente (analisando-se o caso) em detrimento daqueles que realmente necessitam da prestação jurisdicional (exercendo também o seu direito fundamental de acesso ao judiciário).
Porém, sem oposição a opiniões contrárias e, como bem ressaltado, é apenas meu ponto de vista neste momento.
Abraço

George Marmelstein disse...

Para responder algumas críticas aqui formuladas, fiz um upgrade no comentário.

Anônimo disse...

Caro professor George,

Muito interessante seu ponto de vista, mas você acha que ele (seu ponto de vista) prevalece sobre o enfoque criminal (no caso da eventual e hipotética utilização da lei de imprensa no caso de injúria e sua repercussão na honra subjetiva)?

Outra coisa que a meu juízo não caracterizaria o alegado abuso, é o fato da limitabilidade recursal dos Juizados especiais. A título de exemplo, na lei dos juizados cabem, como sabido por todos, pouquíssimos recursos, um dos quais é julgado por juiz que compõe a turma recursal, mas que antes, compõe o próprio juizado. A revisão última seria em tese do STF, caso os ministros entendam haver violação não reflexa à constituição.

Já no caso da lei de imprensa cabe recurso até contra o recebimento da denúncia ou queixa (apelação) e contra o não recebimento (RESE), nesta mais esdrúxula (a meu ver) hipótese recursal "secundum eventum litis".

Enfim, é claro que eu estou levando em conta do julgamento ser feito no TJ e não no juizado, em que pese a pena ensejar o chamado menor potencial ofensivo.

MAs o ponto é esse, mesmo segundo a alegação de que os juizados possuem isenção de custas no primeiro grau, por outro lado a possibilidade recursal é bastante limitada, se se levar em conta que o abuso seria causar prejuizos a alguém (no caso a repórter e o jornal), não mseria mais danoso se fosse no TJ que possibilitaria uma quase que infindavel gama de recursos?


Thiago.

Anônimo disse...

Em tempo:

Não sou fiel da igreja, porém o debate é por demais instigante.

Não compreendi muito bem como se poderia caracterizar o abuso de direito tendo em vista o direito público subjetivo a um pronunciamento judicial, tendo em vista a teoria da Asserção ou hipoteticamente a teoria eclética ou concretista de Liebman ?

Anônimo disse...

Com a decisão do Supremo sobre a Lei de imprensa, ainda que em caráter liminar, na ADPF 130, o exemplom que eu utilizei acima fica completamente esvaziado.


http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adpf130.pdf

Thiago

George Marmelstein disse...

Thiago,

se o processo tramitasse na justiça comum e não no juizado, o abuso, a meu ver, não estaria configurado, a não ser que o autor fosse beneficiário da Justiça Gratuita.

É que, na justiça comum, o prejuízo é tanto para o autor quanto para o réu. Logo, dificilmente alguém iria "abusar do direito de ação" na via ordinária, já que também teria prejuízo.

Por outro lado, no juizado, ele não tem nada a perder. Pode ingressar sem advogado, não paga custas, nem tem o risco de pagar honorários de sucumbência. O réu, por sua vez, terá que se deslocar até o juízo, provavelmente contratar advogado, acompanhar o processo, enfim, é um custo alto.

Quanto ao "direito público subjetivo a um pronunciamento judicial" é precisamente nesse ponto que está o abuso, já que esse direito não é absoluto e não pode ser usado para violar outros direitos fundamentais igualmente importantes.

O direito de ação não pode servir para a prática de chicanas, nem de deslealdade processual. Quando isso ocorre, a própria legislação prevê a litigância de má fé.

Anônimo disse...

George,

comecei a "espiar" o blog por sugestão do colega Leonardo Resende, e confesso que tenho adorado.

Sobre esse tema do post:

Quando vi na tv record uma matéria sobre a questão fiquei com a pulga atrás da orelha, mas não consegui fundamentar juridicamente o que me incomodava. Suas posições são bem interessantes, e parece que não são só suas, basta ver como estão sendo julgadas as ações. Colo abaixo notícias do jornal OPOVo de hj.

Saudações

Tassiana

O STF também decidiu julgar conclusivamente a ação do PDT; ou seja, declarar o que vale e o que não vale na Lei de Imprensa, em até seis meses. Na leitura de seu voto, Ayres Britto afirmou que pesou em sua decisão a recente onda de ações judiciais de indenização movidas por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus contra órgãos de imprensa.

"Não se pode desconhecer que fatos recentes sinalizam o abuso de litigar em juízo para, mediante quase uma centena de ações em atomizadas comarcas do interior brasileiro, inibir o exercício da profissão de jornalistas e as atividades de quatro específicos órgãos de imprensa: os jornais Extra, O Globo, Folha de S. Paulo e A Tarde", disse.


A juíza de Direito, Elisabete Franco Longobardi, da comarca de Carapebus, município do Estado do Rio de Janeiro, julgou improcedente ação de indenização movida por um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus contra a Folha de S. Paulo e a jornalista Elvira Lobato.

Trata-se da primeira decisão em que houve julgamento do mérito: ou seja, a juíza examinou se houve ou não abuso do exercício do direito de informação com a reportagem "Universal chega aos 30 anos com império empresarial", publicada em dezembro. Os processos anteriores foram extintos porque a Justiça considerou ilegítimos os autores das ações.

O juiz André Souza Brito, do Juizado Especial Cível de Macaé (RJ), também extinguiu a ação proposta por Luis Cláudio Moraes da Rocha, que alegou "transtornos íntimos" em virtude da reportagem. Com essas duas decisões, já chegam a 11 as sentenças favoráveis ao jornal e à jornalista, de um total de 63 ações de indenização movidas. A juíza Elisabete registrou que o jornal não circula no município de Carapebus, onde o autor é pastor da Igreja Universal.