domingo, 27 de abril de 2008

Antígona: Direito Positivo versus Direito Natural - Quem ganhou?

Quase todo estudante de direito é apresentado à peça “Antígona”, de Sófocles logo no início do curso, geralmente na disciplina “Introdução ao Estudo do Direito”, pois a obra é uma das primeiras a retratar o eterno embate entre o direito natural e o direito positivo, melhor dizendo, entre a justiça e a lei.


O enredo da peça todos conhecem: um sujeito chamado Polinície tenta realizar um golpe de Estado para tomar o poder em Tebas, no que foi assassinado por Creonte, um governante meio autoritário. Quebrando as tradições da época, Creonte determina que o morto não poderá ser enterrado e que quem descumprir a sua ordem também será assassinado.


Antígona, que era irmã de Polinície, não se conforma com aquela medida. Para ela, seria uma desonra inaceitável não enterrar o irmão. Por isso, em claro descumprimento da ordem de Creonte, Antígona resolve realizar todos os rituais fúnebres devidos em favor do morto.


Creonte, puto da vida, chama Antígona para uma conversinha em particular. O diálogo daí resultante é uma sinfonia para aqueles que defendem o direito natural. Ei-lo:


“Creonte – ô Antígona. Que parte da minha ordem “não pode enterrá-lo” você não entendeu? Vai dizer que não sabia?


Antígona: Estaria mentindo se dissesse que não conhecia a ordem. Como poderia ignorá-la? Ela era muito clara.


Creonte – Portanto, tu ousaste infringir a minha lei? Tá maluca?


Antígona – Descumpri mesmo. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a proclamou! Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores; não, essas não são as leis que os deuses tenham algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava que as tuas proibições fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem de ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por temor de alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança de tais leis?”



Eis, nesse diálogo, com algumas licenças poéticas, um bom exemplo do sentimento de indignação que surge toda vez que o ordenamento jurídico encontra-se fora de sintonia com o espírito de justiça presente na sociedade. Por isso, costuma-se dizer que a resposta de Antígona é uma das mais remotas defesas do direito natural.


No entanto, há outro diálogo, na mesma peça, que não é citado nos livros de introdução ao direito, que demonstra que o grande vitorioso desse embate entre direito positivo autoritário versus direito natural não foi nem um nem outro. Quem venceu foi o direito democrático.


O outro diálogo foi travado entre Creonte e Hémon, seu filho, que tinha uma quedinha por Antígona. Hémon, de forma até meio petulante, questiona a ordem do pai. O pai não arreda pé: disse que o que decidiu está decidido e ponto final. Antígona, portanto, deveria ser punida, conforme previsto na sua ordem.


Eis um trecho do diálogo:


“Creonte: Não está Antígona violando a lei?


Hémon: O povo de Tebas não concorda com você.


Creonte: Querias que a cidade me dissesse que ordens devo dar?


Hémon: Agora é você que fala como um menino. [Pouco antes, Creonte havia perguntado se cabia a seu filho ensinar-lhe sabedoria.]


Creonte: Deverei reinar conforme julgam os outros ou segundo meu próprio discernimento?


Hémon: Uma pólis governada por um só homem não é uma pólis.


Creonte: Então o Estado não pertence àquele que o governa?


Hémon: Sem dúvida, num deserto desabitado poderia governar sozinho”. (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005).



No final da peça, a vontade popular vence, levando o público ao delírio, pois foi uma clara vitória da democracia. Normalmente, dá-se pouca atenção a essa lição política contida na “Antígona”. No fundo, a moral da peça é que o povo não apenas tem o direito de se expressar, mas também o de ser ouvido: o governante que despreza as opiniões do povo põe em risco a cidade e a si próprio também. Logo, não foi o direito natural que venceu, mas o direito democrático.

Escrito em Porto Alegre/RS

2 comentários:

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caro George,
Em um debate dessa ordem, acho que precisamos delimitar, primeiro, o que chamamos direito positivo, e o que chamamos direito natural.
Se tivermos pelo segundo um conjunto de princípios imutáveis e sagrados, superiores e anteriores ao próprio homem, parece-me claro que o DP ganhou.
Mas a idéia de um DN não é - faz muito tempo - essa.
A questão é saber: o homem é um ser que só consegue ver as coisas como são?
Não. O homem é um animal metafísico. Consegue imaginar as coisas não apenas como são, mas também como poderiam (ou deveriam) ser.
Daí, quando examina algo, não pode ficar limitado a descrever, "proibido" de criticar, inovar, acrescentar, sugerir...
É esse direito que você acha que seria melhor, e que é eventualmente diferente do positivado, que se pode chamar DN.
E é claro que está permeado de influências culturais, sociológicas, econômicas etc. (seu "horizonte hermenêutico").
A questão, aí, como sempre, é da tensão entre segurança (seguir a lei como está) e justiça (fazer o que "for mais certo" em cada caso). Afinal, "o que for mais certo" para quem?!
Aí entra a democracia, e a proporcionalidade. O justo é o "mais certo" para a maioria, e só prevalece sobre a segurança (direito legislado) em caso de injustiça evidente e absurda. Radbruch tem interessante passagem a respeito.
O fundamento do direito não é a força, mas o consenso. A aceitação.
Se o DP estiver contra isso, perde legitimidade, e, ultrapassado um ponto crítico, pode-se dizer que perde a juridicidade.
Quem ganha no debate, então?

George Marmelstein disse...

Hugo,

concordo com você que não se deve considerar o direito natural como sendo um direito sobrenatural.

No entanto, na visão de Antígona, o direito natural é um direito "dos deuses". Por isso, não acho que se deve idolatrar a peça como sendo uma vitória do direito dos deuses, pois aí a racionalidade humana vai para o inferno.

Ou estou errado?

George Marmelstein