quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Democracia e Cláusulas Pétreas: minha opinião

Prosseguindo na análise da compatibilidade entre a democracia e as cláusulas pétreas, passo a formular minha opinião sobre o assunto.

Na verdade, trata-se de alguns trechos extraídos do Curso de Direitos Fundamentais, de modo que não é uma análise tão profunda quanto o tema necessita. Mesmo assim, creio que a essência do meu pensamento pode ser compreendida com os argumentos abaixo (lembrem-se que se trata de um curso de direitos fundamentais. Logo, não há a análise de todas as cláusulas pétreas, nem a pretensão de aprofundar demasiadamente a discussão. Do mesmo modo, excluí os exemplos contidos no Curso para o texto não ficar tão longo. Se vocês quiserem, posso depois disponibilizar o texto completo).
A propósito, críticas são bem-vindas. Se não se sentirem à vontade para deixar o comentário, no blog, podem enviar diretamente ao meu e-mail.


Os Direitos Fundamentais como Cláusulas Pétreas

A positivação constitucional dos direitos fundamentais não ocorreu por acaso. Na verdade, ela é fruto, em grande medida, da constatação de que quem tem o poder tende a abusá-lo, e de que o Estado, inclusive o legislador, também pratica ilícitos (e como pratica!).

Por isso, os direitos fundamentais representam, de certo modo, uma desconfiança em relação ao Poder Público. Eles seriam como aqueles frascos de remédios que são colocados nas prateleiras mais altas para ficar longe do alcance das crianças. A analogia só não é tão perfeita porque aqueles que estão em situação de poder não são crianças ingênuas, mas homens crescidos e perspicazes, lutando com unhas e dentes por seus interesses nem sempre nobres.

Essa desconfiança pode ser ilustrada, metaforicamente, analisando uma passagem da Odisséia, o famoso livro do poeta grego Homero. No livro XII, Ulisses, o personagem principal do livro, sabia que, ao passar perto da ilha das sereias, seria atraído por seu canto irresistível e conseqüentemente seu navio naufragaria. Em razão disso, o engenhoso herói mitológico determinou aos seus marinheiros que tapassem seus ouvidos com cera, e que o amarrassem ao mastro, não o soltando em hipótese alguma, ainda que ele o ordenasse. De acordo com Daniel Sarmento, inspirado no filósofo norte-americano Jon Elster, o pré-comprometimento de Ulisses, que limitou o poder de sua vontade no futuro para evitar a morte, poderia ser comparado àquele a que se sujeita o povo, quando dá a si uma Constituição, e limita seu poder de deliberação futura, para evitar que, vítima de suas paixões e fraquezas momentâneas, possa pôr em risco seu destino coletivo[1].

Na pintura, Ulisses é amarrado para resistir às tentações das sereias. É mais ou menos o que faz o povo quando reconhece os direitos fundamentais e os coloca a salvo de qualquer disputa política.


A rigidez constitucional, inerente a qualquer norma da Constituição, já funciona, naturalmente, como instrumento de limitação do poder legislativo, na medida em que dificulta a mudança no texto constitucional. Ainda assim, a simples exigência de uma maioria qualificada não é suficiente para impedir por completo que haja abusos por parte do legislador. Afinal, o constituinte derivado (poder constituído) também pode ser tão opressor quanto o legislador ordinário, até porque, na prática, essas funções são exercidas pelas mesmas pessoas. Os regimes totalitários do Século XX bem demonstram isso. Por essa razão, em diversos países nos quais o respeito incondicional à vontade da maioria resultou na edição de leis ou emendas constitucionais que serviram para destruir os mais básicos direitos dos seres humanos, resolveu-se ir ainda mais além do que a simples rigidez constitucional, instituindo uma total impossibilidade de alterar determinados elementos da Constituição, através das chamadas cláusulas pétreas.

Nesse sentido, aqui no Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu artigo 60, §4º, inc. IV, que não podem ser objeto de deliberação as propostas de emenda constitucional tendente a abolir “os direitos e garantias individuais”.

Desse modo, o constituinte originário pretendeu criar uma barreira de proteção (ou garantia de eternidade) em torno dessa matéria, de tal forma que nem mesmo por maioria qualificada o Congresso Nacional pode revogar um determinado direito considerado como fundamental. Os direitos fundamentais são, por isso mesmo, “elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição”, sendo, portanto, “ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a aboli-los”[2].

[1] SARMENTO, Daniel. Os Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 7.
[2] Conforme voto do Ministro Gilmar Mendes na Extradição 986/DF, julgado em 18/8/2007.
(...)
[no Curso propriamente dito, analiso a interpretação do termo "direitos e garantias indiviuais" contida no art. 60, inc. 4, párgrafo 4, da CF/88, o que não vem ao caso para a discussão ora travada. Por isso, pularei algumas partes, citando apenas os trechos que interessam para a presente discussão]

Direitos Fundamentais e Emendas Constitucionais


(...)
O Congresso Nacional, através de emenda, pode modificar qualquer norma da Constituição, menos revogar (abolir) aquelas que são consideradas como cláusulas pétreas.

Nada impede, portanto, que novos direitos sejam acrescentados ao rol de direitos fundamentais através da emenda à Constituição. Pode-se mencionar, por exemplo, o direito à rápida duração do processo (art. 5º, inc. LXXVIII[1]) e o direito à moradia (art. 6º[2]). Eles não estavam no rol originário na Constituição de 88, tendo sido acrescentados, respectivamente, pela Emenda Constitucional 45/2004 e pela Emenda Constitucional 26/2000. Mesmo assim, uma vez incluídos no texto por emenda constitucional, eles se tornam também cláusulas pétreas. Vale ressaltar que o mesmo raciocínio se aplica aos tratados internacionais de direitos humanos que sejam incorporados ao direito brasileiro com força de emenda constitucional, observando o quorum do art. 5º, §3º, da CF/88. Nesse caso, o tratado internacional de direitos humanos também se tornará cláusula pétrea, não podendo mais ser abolido de forma arbitrária[3].

Por outro lado, merece ser mencionado que é possível que uma emenda constitucional, eventualmente, altere o conteúdo de algum dispositivo constitucional considerado como cláusula pétrea, desde que não prejudique, de forma desproporcional, a principiologia básica (essência) dos valores protegidos pelo constituinte originário. A explicação ficará um pouco mais clara com alguns exemplos.
(...)
O que o Congresso Nacional não pode é abolir direitos fundamentais ou então modificar o texto de tal forma que acarrete a própria aniquilação de um valor essencial protegido pelo constituinte originário. Conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal, “as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o artigo 60, §4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege”[5].
(...)
[1] “Art. 5º - LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
[2] “Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
[3] Há, contudo, opinião em sentido contrário: “não é cabível que o poder de reforma crie cláusulas pétreas. Apenas o poder constituinte originário pode fazê-lo” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitutcional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 215). Vale ressaltar que, no mesmo Curso, os autores defendem que se a emenda constitucional tão somente explicitar um direito fundamental já existente aí sim se trataria de uma cláusula pétrea, tal como ocorreu com o direito à razoável duração do processo que, na ótica dos autores, seria direito fundamental antes mesmo da Emenda Constitucional 45/2004 haver o consagrado expressamente.
[4] A redação originária do Art. 7º, inc. XXIX, era assim: “ação, quanto a créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de: a) cinco anos para o trabalhador urbano, até o limite de dois anos após a extinção do contrato; b) até dois anos após a extinção do contrato, para o trabalhador rural”. E ficou assim: “Art. 7º (...) XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho”.
[5] STF, ADI 2024-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 3/5/2005.



Cláusulas Pétreas e Democracia

Existe uma clara tensão entre a existência de cláusulas pétreas e o princípio democrático. De acordo com o princípio democrático, a vontade da maioria da população deve ser respeitada sempre que possível. Ou seja, o povo deve tomar suas decisões políticas através de deliberação onde a vontade majoritária, em regra, merece prevalecer. Por outro lado, as cláusulas pétreas impedem que sejam alteradas as normas constitucionais por elas abrangidas mesmo se a vontade da maioria assim desejar. Com isso, as gerações futuras ficam vinculadas, eternamente, por uma escolha imutável, ainda que essa opção se mostre equivocada.



Em razão disso, há diversas críticas em torno das cláusulas pétreas. No próprio Supremo Tribunal Federal, já houve eloqüentes manifestações contra elas. Nesse sentido, merece ser citado o seguinte voto do Ministro Joaquim Barbosa:



“Com a devida vênia daqueles que têm outro ponto de vista, eu sempre vi com certa desconfiança a aplicação irrefletida da teoria das cláusulas pétreas em uma sociedade com as características da nossa, que se singulariza pela desigualdade e pelas iniqüidades de toda sorte. (...) Vejo a teoria das cláusulas pétreas como uma construção intelectual conservadora, antidemocrática, não razoável, com uma propensão oportunista e utilitarista a fazer abstração de vários outros valores igualmente protegidos pelo nosso sistema constitucional.
Conservadora porque, em essência, a ser acolhida em caráter absoluto, como se propõe nesta ação direta, sem qualquer possibilidade de limitação ou ponderação com outros valores igualmente importantes, tais como os que proclamam o caráter social do nosso pacto político, a teoria das cláusulas pétreas terá como conseqüência a perpetuação da nossa desigualdade. Constituiria, em outras palavras, um formidável instrumento de perenização de certos traços da nossa organização social. A Constituição de 1988 tem como uma das suas metas fundamentais operar profundas transformações em nosso quadro social. É o que diz seu art. 3º, incisos III e IV. Ora, a absolutização das cláusulas pétreas seria um forte obstáculo para a concretização desse objetivo. Daí o caráter conservador da sua pretendida maximização.
Essa teoria é antidemocrática porque, em última análise, visa a impedir que o povo, por intermédio de seus representantes legitimamente eleitos, promova de tempos em tempos as correções de rumo necessárias à eliminação paulatina das distorções, dos incríveis e inaceitáveis privilégios que todos conhecemos. O povo tem, sim, o direito de definir o seu futuro, diretamente ou por meio de representantes ungidos com o voto popular”
[1].



O referido voto foi bastante criticado pelos demais ministros do STF. O Min. Carlos Brito, por exemplo, chegou a afirmar que as cláusulas pétreas na CF/88, ao invés de cumprirem uma função conservadora, exercem uma função impeditiva de retrocesso, já que a Constituição foi particularmente voltada para a proteção dos hiposuficientes.



Mesmo assim, não deixa de ser um assunto que merece uma reflexão. Afinal, a Constituição é um produto cultural, escrita por homens e, portanto, falível. Querer idolatrar e sacralizar o texto constitucional de 88 como se ele representasse o último estágio da evolução é esquecer que a mudança é uma nota essencial da humanidade.



Na verdade, é preciso reconhecer que a Constituição de 1988 pode sim ser melhorada, inclusive naquilo que foi considerado como cláusula pétrea. No entanto, aparentemente, já existem mecanismos capazes de possibilitar esse aperfeiçoamento do texto constitucional, antes de se partir para soluções mais drásticas de ruptura institucional. A reforma constitucional, através de emendas à Constituição, e a própria mutação constitucional, através da interpretação evolutiva do texto, são exemplos disso.



Conforme já se disse, a emenda constitucional pode modificar até mesmo as normas da Constituição que sejam consideradas como cláusulas pétreas, desde que fique demonstrado que a mudança não trará prejuízos para o regime geral de proteção à dignidade da pessoa humana, à limitação do poder ou aos princípios elementares da democracia. Ou seja, o que não se pode aceitar é uma mudança constitucional que destrua os valores básicos consagrados pelo constituinte originário. No mais, se houver uma demonstração concreta de que a mudança favorecerá o desenvolvimento humano, expandindo a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a democracia, certamente ela será bem-vinda.



[1] Voto do Min. Joaquim Barbosa na STF, ADI 3105, rel. Min. Cezar Peluso, j. 18/8/2004.

2 comentários:

Anônimo disse...

Prof. George, o senhor defende os direitos fundamentais com o argumento de que são meios de defesa contra o abuso do poder; diz, inclusive, que quem tem o poder tende a abusar dele, a ser arbitrário. Pergunto: os juízes tÊm poder e o exercem? Se sim, estão eles incluídos entre os que tendem a abusar desse poder? Se sim, por que, quando faz referência a exercentes do poder inclinados ao abuso, o senhor só se refere ao Executivo e ao Legislativo? Acaso, os juízes [ministros, desembargadores e juízes] estão imunes à tentação do abuso do poder?
E, quanto à "imodificabilidade" das cláusulas pétreas, o argumento de inalterabilidade do conteúdo mínimo, etc e tal, não teria sido contrariado quando o inc. XXIX do art. 7° foi alterado, já que, para o trabalhador rural [que, no Brasil, está num estado de sujeição bastante grave] o prazo prescricional da reclamação trabalhista foi reduzido a cinco anos, durante a relação de emprego? Como é possível defender que essa mundança não prejudicou, sensível e gravemente, o direito fundamental do trabalhador rural?
Obrigado pela atenção.

Máximo Amaro - de Fortaleza.

Anônimo disse...

É verdade, Máximo, os direitos fundamentais são mecanismos de limitação do poder e instrumentos para a proteção da dignidade humana.

No Curso digo claramente que os juízes, como detentores de poder que são, também podem ser potenciais violadores de direitos, tanto que há inúmeros direitos fundamentais dirigidos aos próprios juízes: devido processo, contraditório, ampla defesa, dever de motivação, publicidade do processo, duplo grau, vedação penas cruéis etc.
Dê uma lida na minha dissertação de mestrado na parte que trata dos desvios éticos da magistraturas ou então no texto "Reforma do Poder Judiciário" que você verá que não tenho uma visão utópica e ingênua do Poder Judiciário. Pelo contrário.
Quanto à mudança da prescrição em matéria trabalhista, cito no meu Curso como exemplo que, a meu ver, não feriu direitos fundamentais. Houve no caso uma igualização entre trabalhadores rurais e urbanos. Os trabalhadores rurais foram privilegiados pelo constituinte originário e o constituinte derivado reduziu esse privilégio. Não vejo violação de cláusula pétrea.
Foi o mesmo que fez o Congresso Nacional ao aumentar a idade para o trabalho infantil de 14 para 16 anos. Foi uma mudança que favoreceu os direitos funadmentais.
Era isso.

George Marmelstein