quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Ponderação em Abstrato versus Ponderação em Concreto

Eis um capítulo que tive que excluir do Curso de Direitos Fundamentais por razões de estrutura. Acho que está até bom, mas mereceria uma análise um pouco mais séria, até porque é um tema bem polêmico...


A interpretação dos direitos fundamentais, geralmente, é voltada para o caso concreto. Ou seja, o juiz irá analisar os argumentos apresentados pelas partes, diante de um fato ocorrido, e irá dizer quem tem razão naquela situação. É o que se chama de interpretação tópica[1].

A tópica é plenamente compatível com o controle difuso de constitucionalidade, no qual todo juiz tem a missão de realizar a análise da compatibilidade dos atos infraconstitucionais com a Constituição, invalidando os que forem incompatíveis, com efeitos apenas para aquele caso específico. Por isso se diz que o controle difuso é concreto ou incidental ou indireto, demonstrando que a análise da constitucionalidade é apenas uma questão acessória dentro de uma discussão fática principal.

Ocorre que o Brasil adota um controle misto de constitucionalidade. Além do modelo difuso, há ainda o controle concentrado, através da via direta (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento a Preceito Fundamental), em processo objetivo decidido pelo Supremo Tribunal Federal. No modelo concentrado, o STF analisa a constitucionalidade dos atos normativos em abstrato, ou seja, sem qualquer ligação com um caso concreto. Aliás, atualmente, existe até mesmo uma tendência de se valorizar o controle concentrado de constitucionalidade, já que ele prestigia a segurança jurídica, garantindo maior isonomia, pois seus efeitos valem para todos (“erga omnes”).

Apesar disso, ainda subsiste a importância do controle difuso para podar eventuais injustiças que a aplicação da norma, no caso concreto, pode gerar. Dito de outra forma: uma lei pode ser abstratamente constitucional/proporcional/válida, mas, na casuística, pode gerar efeitos indesejados, cabendo ao juiz, através do controle difuso, corrigir essas situações de injustiças pontuais na aplicação da norma.

Quem captou com precisão esse fenômeno foi a Ministra Cármen Lúcia do STF:

“a constitucionalidade da norma legal, assim, não significa a inconstitucionalidade dos comportamentos judiciais que, para atender, nos casos concretos, à Constituição, garantidora do princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação estatal de prestar a assistência social ‘a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social’, tenham de definir aquele pagamento diante da constatação da necessidade da pessoa portadora de deficiência ou do idoso que não possa prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”[2].

No caso específico, estava sendo discutida a validade de uma sentença de um juiz federal que desrespeitou a autoridade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na ADIn 1.232/DF. Na referida ADIn, o STF declarou, com efeito vinculante e “erga omnes”, a constitucionalidade do art. 20, § 3o, da Lei n° 8.742/93, cuja redação é a seguinte: “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”.

A citada lei regulamenta o disposto no artigo 203, inc. V, da Constituição Federal, que garante um benefício mensal de um salário mínimo aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

Vários juízes, apesar da decisão do STF que reconheceu a constitucionalidade da Lei 8.742/93, estão julgando que a impossibilidade da própria manutenção, por parte dos portadores de deficiência e dos idosos, que autoriza e determina o benefício assistencial de prestação continuada, não se restringe à hipótese da renda familiar per capita mensal inferior a 1/4 do salário mínimo, podendo caracterizar-se por concretas circunstâncias outras, que devem ser demonstradas ao longo do processo[3].

Curiosamente, o próprio STF tem aplaudido a postura dos juízes que assim agem e está indeferindo, sistematicamente, as reclamações do INSS contra as sentenças que desrespeitam a autoridade da decisão proferida na ADIn. 1.232/DF.

Essa desobediência generalizada é um interessante caso em que o controle difuso de constitucionalidade está ocasionando uma mutação constitucional de posicionamento já firmado em controle concentrado. O Min. Gilmar Mendes, de certo modo, captou esse fenômeno:

“O Tribunal [STF] parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de 1/4 do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição.
Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl 2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição.
A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93”
[4].

Outro exemplo semelhante ocorreu com a Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 4, que suspendeu liminarmente, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494, de 10.9.97. Em outras palavras, proibiu-se aos juízes, entre outras coisas, a concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública que resultasse em aumento de vantagens para os servidores públicos.

Apesar dessa decisão, o STF tem admitido a concessão de antecipação de tutela, mesmo em face da vedação legal, nas situações em que a denegação da medida antecipada possa comprometer, injustificadamente, a efetividade do processo[5].

Desse modo, mesmo que o Supremo Tribunal Federal tenha declarado, em sede de controle concentrado, com efeito vinculante e contra todos, que uma determinada norma é constitucional, é possível que o juiz, no caso concreto, diante de peculiaridades específicas de uma dada situação a ser julgada, afaste a aplicação dessa lei, se, na casuística, resultar em flagrante injustiça incompatível com os valores constitucionais. O importante é que o juiz apresente argumentos novos para não aplicar a lei, não podendo simplesmente reproduzir as alegações de inconstitucionalidade que já foram rejeitadas pelo STF no controle concentrado. O descumprimento da decisão proferida pelo STF só por capricho pessoal do juiz não é aceitável, já que o Supremo é, no final das contas, o “guardião da Constituição”.

O mesmo raciocínio vale para as chamadas súmulas vinculantes. Nada impede que a súmula vinculante deixe de ser aplicada em um caso concreto se a sua aplicação gerar uma situação de inconstitucionalidade ainda pior. Nesse caso, o ideal é que o juiz justifique detalhadamente porque não está aplicando a súmula vinculante, nunca devendo perder de vista que o juiz constitucional, comprometido com os direitos fundamentais, tem a obrigação de sempre buscar a justiça do caso concreto, mas sempre com base nos valores constitucionais.

[1] A tópica, explica BOVANIDES, é um método que parte do “problema à sua solução”, que já era utilizado por ARISTÓTELES, mas foi, modernamente, revitalizada por THEODOR VIEHWG, em 1953. Em suas palavras: a tópica seria “uma técnica de investigação de premissas, uma teoria da natureza de tais premissas bem como de seu emprego na fundamentação do Direito e, enfim, uma teoria de argumentação jurídica volvida primariamente para o problema, para o caso concreto, para o conceito de ‘compreensão prévia’ (Vorverständnis), único apto a fundamentar um sistema material do direito, em contraste com o sistema formal do dedutivismo lógico, carente de semelhante fundamentação” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 454).
[2] STF, Rcl n° 3.805/SP, rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 18.10.2006.
[3] Aliás, até o próprio STJ tem decisões nesse sentido, nunca clara afronta à decisão do STF. Entre outros: STJ, AGA 521467, rel. Min. Paulo Medina, j. 18.11.2003.
[4] STF, Rcl. 4374/PE, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º/2/2007.
[5] Por exemplo: STF, Rcl-Agr 1132/RS, rel. Min. Celso de Mello, j. 23/3/2000. Eis a ementa: “não se justifica a concessão de medida liminar, em sede de reclamação, se a decisão de que se reclama - embora não observando a eficácia vinculante que resultou do julgamento de ação declaratória de constitucionalidade (CF, art. 102, § 2º) - ajustar-se, com integral fidelidade, à jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal no exame da questão de fundo (auto--aplicabilidade do art. 40, § 5º, da Constituição, na redação anterior à promulgação da EC nº 20/98, no caso). - A eventual outorga da medida liminar comprometeria a efetividade do processo, por frustrar, injustamente, o exercício, por pessoa quase nonagenária, do direito por ela vindicado, e cuja relevância encontra suporte legitimador na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”.

3 comentários:

Danilo Cruz. disse...

Caro George,

Acho que esse curso vai merecer um tomo II no futuro, um capítulo como esse não pode ficar de fora.

Corroborando com seu post, segue posicionamneto do Prof. Luis Roberto Barroso no artigo - O COMEÇO DA HISTÓRIA.
A NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO DIREITO BRASILEIRO.

...No fluxo das modernidades aqui assinaladas, existem técnicas, valores e personagens que ganharam destaque. E outros que, sem desaparecerem, passaram a dividir o palco, perdendo a primazia do papel principal. Um bom exemplo: a norma, na sua dicção abstrata, já não desfruta da onipotência de outros tempos. Para muitos, não se pode sequer falar da existência de norma antes que se dê a sua interação com os fatos, tal como pronunciada por um intérprete(1) . É claro que os fatos e o intérprete sempre estiveram presentes na interpretação constitucional. Mas nunca como agora. Faça-se uma anotação sumária sobre cada um:
(i)Os fatos subjacentes e as conseqüências práticas da interpretação. Em diversas situações, inclusive e notadamente nas hipóteses de colisão de normas e de direitos constitucionais, não será possível colher no sistema, em tese, a solução adequada: ela somente poderá ser formulada à vista dos elementos do caso concreto, que permitam afirmar qual desfecho corresponde à vontade constitucional(2) . Ademais, o resultado do processo interpretativo, seu impacto sobre a realidade não pode ser desconsiderado(3): é preciso saber se o produto da incidência da norma sobre o fato realiza finalisticamente o mandamento constitucional .(4)
(ii)O intérprete e os limites de sua discricionariedade. A moderna interpretação constitucional envolve escolhas pelo intérprete, bem como a integração subjetiva de princípios, normas abertas e conceitos indeterminados. Boa parte da produção científica da atualidade tem sido dedicada, precisamente, à contenção da discricionariedade judicial, pela demarcação de parâmetros para a ponderação de valores e interesses e pelo dever de demonstração fundamentada da racionalidade e do acerto de suas opções.
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(1)A não identidade entre norma e texto normativo, entre o “programa normativo” (correspondente ao comando jurídico) e o “domínio normativo” (a realidade social), é postulado básico da denominada metódica “normativo-estruturante” de Friedrich Müller (Discourse de la méthode juridique, 1996; a 1a. ed. do original Juristische Methodik é de 1993). Sobre o tema, v. tb. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 2001, p. 1.179.

(2)Qual o bem jurídico de maior valia: a liberdade de expressão ou a liberdade de ir e vir? Quando será legítima uma manifestação política que paralise o trânsito em uma via pública? Se for o comício de encerramento da campanha presidencial do candidato de um partido político nacional, parece razoável. Mas se vinte estudantes secundaristas deitarem-se ao longo de uma larga avenida, em protesto contra a qualidade da merenda, seria uma manifestação legítima?

(3)Eduardo García de Enterría, La constitución como norma y el tribunal constitucional, 1994, p. 183 e ss..

(4)Pode acontecer que uma norma, sendo constitucional no seu relato abstrato, produza um resultado inconstitucional em uma determinada incidência. Por exemplo: o STF considerou constitucional a lei que impede a concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública (RTJ 169:383, ADC-MC 4, Rel. Min. Sydney Sanches), fato que, todavia, não impediu um Tribunal de Justiça de concedê-la, porque a abstenção importaria no sacrifício do direito à vida da requerente (AI 598.398.600, TJRS, 4a. CC, Rel. Des. Araken de Assis). Veja-se o comentário dessa decisão em Ana Paula Ávila, Razoabilidade, proteção do direito fundamental à saúde e antecipação da tutela contra a Fazenda Pública, Ajuris 86/361.

Abraços cordiais,

Danilo Nascimento Cruz
http://piauijuridico.blogspot.com/

George Marmelstein disse...

Danilo,
este capítulo estava na parte final do livro, junto com a técnica da ponderação. Por isso, achei ele fora de "tempo" e preferi excluir.
Mas pensando bem, ele cabe com perfeição na parte em que trato da jurisdição constitucional. Basta mudar o título para "Controle concentrado versus controle difuso".
Obrigado pela dica. Vou acolher.

George

Anônimo disse...

Professor,

o questionamento ponderação levantou uma querela em que me debrucei durante as férias vendo as últimas tendências, por sinal ainda não definidas, do pleno do STF. Vejo, com meu parco conhecimento, corroborando com o Prof. Lênio Streck, uma verdadeira busca de panacéias nos últimos tempos no que diz respeito a racionalização da quantidade de ações que assoberbam a Corte Suprema. Esta mais nova "objetivação" do controle difuso comandada pelo Min. Gilmar Mendes tem como pedra de toque as possiblidades lançadas no seu texto. Até que ponto o viés "popular" do controle difuso nas análises tópicas de direitos fundamentais não são idéias propositais do legislador constituinte. Pode-se levar em conta o próprio histórico do controle de constitucionalidade no Brasil. No meu entender a análise concreta não pode ter suas portas fechadas, pois se a segurança jurídica é uma meta, a justiça e o respeito aos direitos fundamentais são baluartes do ser humano que não podem ser atingidos e o verdadeiro juiz sempre tem sempre o compromisso de protegê-los.

Grande abraço,

Paulo Adriano.