domingo, 27 de abril de 2008

O Julgamento de Sócrates





Fazia tempo que não lia um livro tão interessante sobre filosofia grega. Na verdade, o livro não é nem propriamente sobre filosofia grega, mas um relato “jornalístico” sobre o julgamento de Sócrates, escrito por I. F. Stone, um polêmico jornalista norte-americano.


O livro faz com que o leitor compreenda o contexto histórico, social e político que antecedeu ao julgamento de um dos maiores pensadores da história. E o mais interessante é que é praticamente impossível não concordar com o resultado da decisão tomada pelos atenienses. Sócrates, apesar de gênio, era preconceituoso, esnobe, elitista, antidemocrático, negativista e, acima de tudo, arrogante. A famosa frase a ele atribuída “só sei que nada sei” não passa de uma ironia, pois, no fundo, ele se achava o mais sábio de toda a Grécia. No seu julgamento, chegou a dizer que o próprio Oráculo havia afirmado que ele era o mais sábio de toda a Grécia! E ainda se dizia o único com as verdadeiras qualidades de um estadista, embora ele próprio estivesse pouco se lixando para as questões políticas (da pólis). Ele menosprezava tudo o que dizia respeito à democracia. A toda hora, elogiava os regimes ditatoriais num período em que a democracia grega tinha acabado de passar por três “turbulências” seguidas, após sofrer golpes comandados por aristocratas, muitos deles discípulos de Sócrates. Ao elogiar abertamente o modelo espartano, Sócrates agia como se fosse um brasileiro torcendo para Argentina em pleno Maracanã numa final de copa do mundo de futebol.


A idéia hoje aceita de que Sócrates foi condenado por corromper a juventude e profanar os “deuses da cidade” não corresponde totalmente com a verdade, pelo menos sob a ótica de Stone. No fundo, Sócrates foi condenado por que queria ser condenado. Ele cavou sua própria cova ao desdenhar dos 500 jurados que o julgariam.


Após ser condenado, por uma maioria apertada, os jurados teriam que fixar a pena, que, necessariamente, deveria ser ou a sugerida pela acusação ou a sugerida pelo acusado, sem meio termo. A acusação sugeriu a pena de morte. Sócrates chegou a sugerir, em pilhéria, que sua pena fosse ser condecorado como um herói, comendo de graça no melhor restaurante de Atenas pelo resto da vida! É pedir para ser morto.


Outro ponto interessante no livro é uma análise crítica do pensamento platônico. Nesse ponto, o autor bate forte nas idéias absolutistas e totalitárias de Platão, que são nitidamente contrárias à liberdade e à igualdade. As mais famosas já são bem conhecidas: infanticídio, eugenia, poder absoluto nas mãos dos governos-filósofos, rígido controle social por parte do Estado e por aí vai.


Em contrapartida, há belas passagens em defesa da democracia, da liberdade (sobretudo a de expressão) e da igualdade. Aliás, talvez tenha sido essa parte que mais me chamou a atenção, pois não sabia que os fragmentos das obras de pensadores como Protágoras, Antifonte, Eurípedes, entre outros, continham argumentos tão ricos e fortes em defesa dos valores que inspiraram, mais de mil anos depois, a constitucionalização dos direitos fundamentais.


Ao longo da leitura, fui percebendo como a parte histórica do meu Curso de Direitos Fundamentais pecou por não retroceder à época dos grandes filósofos gregos, inclusive os pré-socráticos. Eu poderia muito bem, por exemplo, ter feito menção à seguinte passagem do fragmento da obra “Sobre a Verdade”, do pré-socrático Antifonte:


“Reverenciamos e honramos os que são nascidos de pais nobres, mas os que não são nascidos de pais nobres não reverenciamos nem honramos. Neste ponto, quanto a nossas relações uns com os outros, somos como os bárbaros, pois somos todos por nossa natureza nascidos iguais sob todos os aspectos, tanto bárbaros quanto helenos” (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005, p. 66).


Não é uma bela defesa da igualdade e da dignidade de todos os seres humanos? E olha que isso foi escrito cerca de dois mil e quinhentos anos antes da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Em outra obra, chamada “Sobre a Concórdia”, Antifonte chega a defender que “a principal causa das desavenças é a desigualdade das riquezas”; em razão disso, “os ricos devem ser estimulados a ajudar o próximo” (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005, p. 66).


Não é atual o seu pensamento? Não estaria aí uma das bases teóricas mais primitivas para o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais, que somente se tornaram direitos fundamentais no século passado?


Outro personagem fantástico do mesmo período é Protágoras, que ficou mais conhecido pela sua máxima “o homem é a medida de todas as coisas” e por suas contribuições para as ciências exatas. Confesso que nunca tinha ouvido falar de sua contribuição para a consolidação da democracia ateniense. Omissão imperdoável, na verdade, já que suas idéias foram reproduzidas por Platão, num diálogo menos famoso chamado “Protágoras”. Nesse diálogo platônico, há a descrição de um interessante debate filosófico travado entre Sócrates e Protágoras. Vale ressaltar que, nos seus diálogos, Platão “torce” para Sócrates descaradamente e, em regra, retrata o seu mestre “massacrando” os adversários com a sua lógica negativista. Mas nesse diálogo, curiosamente, não há um “vencedor”. Na verdade, aparentemente, Protágoras vence o debate. E mesmo que não vencesse, o que seria perfeitamente natural ante a parcialidade platônica em favor de Sócrates, seus argumentos são bastante convincentes.


A discussão, basicamente, girava em torno da capacidade do povo de se autogovernar. Sócrates destila todo o seu veneno contra o “populacho”, dizendo, de modo irônico, que, na assembléia ateniense, as questões fundamentais do governo são decididas por ferreiros, sapateiros, comerciantes, que não possuem qualquer experiência ou conhecimento em relação aos assuntos a serem debatidos. Em tom de deboche, afirma que, qualquer dia desses, o povo vai decidir que um asno é um cavalo. Em diversos momentos, apresenta argumentos em favor da tese de que somente deveria governar ou participar do governo “aqueles que sabem”.


Em resposta, Protágoras elaborou um mito bastante interessante, que, tirando os aspectos mais sobrenaturais, contém argumentos altamente sofisticados e atuais em defesa da democracia. Não seria exagero dizer que é uma das primeiras tentativas de justificar a moralidade política com base na teoria da evolução, algo que vem sendo estudado pela sociobiologia não tem nem cinqüenta anos. Eis suas palavras, reproduzidas por Stone:


Diz Protágoras que, quando foi criado, o homem vivia uma existência solitária e não era capaz de proteger a si próprio e sua família dos animais selvagens mais fortes que ele. Conseqüentemente, os homens se reuniram para “proteger suas vidas fundando cidades”. Mas as cidades foram conturbadas por lutas, porque seus habitantes “faziam mal uns aos outros” por ainda não conhecerem “a arte da política” que lhes permitiria viver em paz juntos. Assim, os homens começaram a “se dispersar novamente e a perecer”.


Segundo Protágoras, Zeus temia que “nossa espécie estivesse ameaçada de ruína total”. Assim, enviou seu mensageiro, Hermes, à terra, com duas dádivas que permitiriam aos homens enfim praticar com êxito a “arte da política” e fundar cidades onde pudessem viver juntos em segurança e harmonia. As duas dádivas de Zeus eram “aidos” e “diké”. “Aidos” é um sentimento de vergonha, uma preocupação com a opinião alheia. “Diké” significa respeito pelos direitos dos outros. Implica senso de justiça e torna possível a paz civil resolvendo as disputas através de julgamentos. Ao adquirir “aidos” e “diké”, os homens finalmente se tornariam capazes de garantir sua sobrevivência.


Antes de descer à terra, Hermes perguntou a Zeus se deveria conceder a “aidos” e a “diké” apenas para alguns, como as demais técnicas e artes (música, pintura, engenharia etc.), ou para todos os seres humanos. A resposta de Zeus foi democrática: que cada um tenha seu quinhão, pois as cidades não se poderão formar se apenas uns poucos possuírem “aidos” e “diké”.


Finalmente, Protágoras conclui seu raciocínio: “É por isso, Sócrates, que as pessoas das cidades, especialmente de Atenas, só ouvem peritos em relação a questões de conhecimento específico. Mas quando se reúnem para aconselhar-se sobre a arte política, quando devem ser guiados pela justiça e pelo bom senso, permitem, naturalmente, que todos dêem conselhos, já que se afirma que todos devem partilhar dessa excelência, senão os Estados não podem existir” (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005, p. 70/71).


Heródoto também utilizou um raciocínio semelhante para justificar a chamada “isegoria”, que era o direito de todos se manifestarem igualmente na assembléia, uma mistura de liberdade de expressão com direito à igualdade política. Heródoto afirmou que o sucesso militar de Atenas se deve, em grande parte, à isegoria, “já que no tempo em que eram governados por déspotas os atenienses não eram melhores guerreiros do que qualquer povo vizinho. Porém, tão logo se livraram do despotismo, tornaram-se de longe os melhores guerreiros de todos”. No tempo em que eram “oprimidos”, os atenienses eram covardes e fracos, como escravos que trabalham para um senhor; mas quando se viram livres cada um passou a se esforçar para fazer o melhor possível por si próprio” (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005, p. 256).


Não há, aí, um pouco de Darwin? A meu ver, é uma eloqüente demonstração de que, já naquela época, os atenienses perceberam que a seleção natural caminha em direção à democracia e aos direitos fundamentais. Sem a democracia e sem os direitos fundamentais, a humanidade está fadada à extinção ou, pelo menos, a uma evolução mais lenta.


E o mais curioso é que a minha intenção, ao ler o referido livro, era criticar o papel do direito na repressão ao pensamento científico. Vou explicar o motivo.


Pretendo começar minha futura eventual tese de doutorado (depois explico com mais detalhes) demonstrando que o direito sempre esteve ao lado de dogmas irracionais nos momentos cruciais do desenvolvimento científico. O julgamento do Sócrates e o de Galileu seriam exemplos desse fenômeno. Agora vejo que, pelo menos no processo de Sócrates, a democracia não errou tão feio assim, a não ser em relação à pena de morte, que talvez tenha sido mesmo meio exagerada. Mas, como se disse, quem condenou Sócrates não foi a democracia, mas ele mesmo. Embora a leitura do livro não tenha me ajudado no meu objetivo principal, ela abriu margem para diversos assuntos paralelos que certamente serão úteis.


Escrito em Porto Alegre/RS

6 comentários:

Tassos Lycurgo disse...

Sr. G.M.,

Respeitosamente penso que há pré-concepções tecnicamente perigosas no post, a começar da idéia de que a ironia de Sócrates seria uma forma de esnobismo, etc. Ora, é certo que o “só sei que nada sei” está longe de ser manifestação de modéstia, tal qual pensa o senso comum, mas, por certo, também não o é de esnobismo, mas sim representa a primeira parte de sua técnica argumentativa, a dialética socrática, que se completa com a segunda parte, a maiêutica. Ao dizer que nada sabe, Sócrates transfere ao interlocutor a responsabilidade da resposta (a ironia) e, assim, tenta tirar dele o que sabe (a maiêutica), mostrando as contradições do pensamento do interlocutor. Este último processo é exatamente o que caracteriza a maiêutica, que etimologicamente falando, deriva do grego correspondente a algo como “arte do parto”. Com efeito, Sócrates, se de fato historicamente existiu (há dúvidas a respeito), foi o parteiro das idéias, pois, pelo seu método, tirava-as dos outros. Penso que o melhor livro sobre os filósofos gregos é, sem dúvidas, o “Paidéia: a formação do homem grego”, de W. Jaeger, no qual alguns desses conceitos são explicados. Ademais, ainda há um pequeno texto de Nietzsche, chamado “O Problema de Sócrates”, em que o pensador alemão aborda alguns temas no post tratados, como o de que Sócrates, na realidade, queria morrer... Tomo a liberdade de colocar um link para o texto de Nietzsche, tanto no original quanto em sua tradução. Bem, essas são apenas algumas idéias que à consideração as exponho aqui, além de tentar colaborar com o debate e com este blog, que, a meu sentir, é bastante interessante.
Respeitosamente,
Lycurgo

Link (texto em alemão):

http://www.ufrnet.br/~tl/otherauthorsworks/nietzcshe_o_problema_de_socrates_german.pdf

Link (Texto traduzido):

http://www.ufrnet.br/~tl/otherauthorsworks/nietzcshe_o_problema_de_socrates.pdf

Anônimo disse...

O link correto é:
http://www.ufrnet.br/%7Etl/otherauthorsworks/nietzcshe_o_problema_de_socrates.pdf

George Marmelstein disse...

Lycurgo,

concordo com você de que a "maiêutica", desenvolvida por Sócrates, é uma técnica interessante de raciocínio. Aliás, a mãe de Sócrates era parteira, daí a origem da palavra, segundo alguns estudiosos.

Mas que Sócrates era irônico, esnobe e destrutivo, disso não tenho a menor dúvida. As metáforas que ele geralmente utiliza para demonstrar os erros lógicos dos adversários são quase sempre em tom de pilhéria. Nesse ponto, Stone conseguiu desfazer toda a imagem que eu tinha de Sócrates, que era muito parecida com a sua. E de tabela, também conseguiu reforçar o meu preconceito em relação a Platão, que já era bastante acentuado.

Por isso, recomendo que leia o livro em questão. Tenho certeza de que não é possível desfazer um mito em apenas cinco parágrafos.

George Marmelstein disse...

Com relação ao texto de Nietzcshe, há alguns pontos que coincidem com a pesquisa de Stone e outros que divergem.

Nietzcshe, no referido texto, disse que "Sócrates foi o palhaço que se fez levar a sério". Mas isso não está tão claro a partir dos relatos históricos citados por Stone. Afinal, Sócrates viveu praticamente setenta anos e nunca foi incomodado por suas idéias. Ou melhor, somente em um período em que a tão criticada democracia caiu, Sócrates foi proibido, por aristocratas, que eram discípulos de Sócrates, a não praticar a maiêutica para menores de 30 anos.
E isso já na sua velhice.

Do ponto de vista político, Sócrates era marginalizado por ele mesmo. Ele nunca quis participar dos assuntos da pólis. Era uma opção pessoal, mas que demonstra que ele não incomodava tanto assim. Tanto é verdade que seus discípulos, como Platão, puderam continuar a filosofar à moda socrática sem serem incomodados. Pelo contrário, foram até mesmo incentivados.

George Marmelstein disse...

Só mais uma coisa. Depois da leitura do livro, fiquei tentando encontrar alguém parecido com Sócrates hoje em dia.

Por incrível que pareça, a primeira imagem que veio à minha mente foi a do Diogo Mainardi. Não em razão de suas críticas políticas, já que Sócrates jamais perderia tempo com essas questiúnculas sem importância. Mas com a visão que ele tem do Brasil e do povo brasileiro.

Mainardi acha que o Brasil é o pior lugar do mundo para viver e que o povo é estúpido e sem educação. Era mais ou menos o sentimento de Sócrates em relação a Atenas.

Não estou, logicamente, defendo a punição de Mainardi por exercer a sua liberdade de expressão. Pelo contrário. Em diversos momentos, inclusive no meu Curso de Direitos Fundamentais, fiz diversas defesas de Mainardi, no sentido de defender seu direito de criticar. O que quero dizer é que, mesmo quando estava numa situação crítica do julgamento, Sócrates não se preocupou com o seu destino. Preferiu continar com seu ponto de vista que aqueles jurados eram ignorantes e fez questão de que eles soubessem disso.

Anônimo disse...

Caros Professor George e Professor Lycurgo,

boas indicações de leitura. Nunca li inteiro o Paideia. e esse livro sobre o julgamento de sócrates parece ser bastante interessante, vou procurar lê-los, ambos.



parece-me que o problema reside na refutação dos argumentos. Apud Popper, Sir Karl.

Os argumentos para a hipótese são passíveis de refutação? Perdendo-se tempo em discutir e tentar provar que sócrates era isso, ou aquilo, ou mesmo que platão era isso ou aquilo, ao invés de tentar argumentar contrariamente, não significa absolutamente nada.

E esse nada, é aquele que se nega, tal qual sustenta Martin Heidegger em "o ser e o nada". Dai, também, a sua importância.

"... o remédio do vulgo é não pensar nisso. Mas que brutal estupidez lhe pode advir uma tão grosseira cegueira? ele tem de pôr as rédeas na cauda do burro, (fazê-lo andar para trás, para que não veja aonde vai.)

Qui capite ipse suo instituit vestigia retro (que avança às arrecuas)" (Montaigne, Michel. Ensaios I, Martins Fontes, p. 123)

Na passagem Montaigne fala especificamente sobre a morte, mas vale muito bem para qualquer situação que envolva pré-concepções (necessárias que são).

Thiago.