quarta-feira, 23 de abril de 2008

O Estado pode ser titular de direitos fundamentais?

Estava devendo este post já há algum tempo. Como recebi uma pergunta por e-mail sobre o tema, resolvi compartilhar com vocês.

A questão é relativamente simples, mas, no fundo, extremamente complexa: pode uma pessoa jurídica de direito público ser titular de direitos fundamentais?

Eis como respondi a essa questão no meu Curso de Direitos Fundamentais:

Essa questão é de grande complexidade, pois, em princípio, é completamente paradoxal considerar que o Estado seja, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo de direitos fundamentais. É uma situação até meio esquizofrênica, já que o Estado estaria invocando direitos fundamentais para se proteger dele mesmo! Na verdade, os direitos fundamentais, por natureza, são instrumentos de proteção contra o Estado e não a favor do Estado[1]. Apesar disso, o entendimento majoritário é no sentido de que existem alguns direitos fundamentais que podem ser titularizados por pessoas jurídicas de direito público.

Essa idéia – por mais estranha que seja – pode ser assimilada com mais facilidade se se pensar que os direitos fundamentais visam não somente a proteção da dignidade da pessoa humana, mas também a limitação do poder. E, em determinadas hipóteses, até mesmo o Estado estará em uma situação de sujeição ao poder. A título de exemplo, quando a Fazenda Pública é parte litigante em um processo judicial, ela está sujeita ao poder do juiz. Daí porque se entende que as garantias constitucionais de caráter processual (ampla defesa, contraditório, tutela efetiva etc.) também se aplicam em favor da Fazenda Pública, até porque o Poder Judiciário tem o dever de observar a Constituição, mesmo que em benefício do próprio Estado.

Nesse mesmo sentido, tem-se entendido que pessoas jurídicas de direito público podem ingressar com mandado de segurança caso também sejam vítimas do abuso do poder de outro ente estatal[2].

Imagine a seguinte situação: a União, de forma abusiva, deixa de repassar para um determinado Município as verbas do FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental). Em uma hipótese assim, é perfeitamente aceitável que se reconheça ao referido município o direito fundamental de impetrar o mandado de segurança contra o ato federal abusivo. O ente municipal poderia, inclusive, alegar, na sua argumentação, uma violação ao direito à educação, embora os verdadeiros titulares desse direito sejam os alunos e não o próprio município.

Logo, as pessoas jurídicas de direito público, excepcionalmente, quando estiverem em uma posição de sujeição, poderão invocar as normas constitucionais que consagram direitos fundamentais para se protegerem do abuso do poder de outro ente estatal.




[1] Nessa mesma linha, a Corte Constitucional alemã já decidiu que “os direitos fundamentais não são por princípio aplicáveis às pessoas jurídicas de direito público ao realizarem tarefas públicas (...). Se os direitos fundamentais se referem à relação dos indivíduos para com o poder público, então é com isso incompatível tornar o Estado, ele mesmo, parte ou beneficiário dos direitos fundamentais. O Estado não pode ser, ao mesmo tempo, destinatário e titular dos direitos fundamentais” (cf. SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 170). Aqui no Brasil, seguindo uma lógica semelhante, o STF sumulou o entendimento de que “a garantia da irretroatividade da lei, prevista no artigo 5º, inc. XXXVI, da Constituição da República, não é invocável pela entidade estatal que a tenha editado” (Súmula 654).

[2] Por outro lado, há entendimento do STF negando aos entes públicos legitimidade ativa para impetrar o mandado de injunção: “outorgar ao Município legitimidade ativa processual para impetrar mandado de injunção seria elastecer o conceito de direitos fundamentais além daquilo que a natureza jurídica do instituto permite” (STF, AGRMI 595/MA, rel. Min. Carlso Velloso, DJ 23/4/99). Há, contudo, entendimento contrário: “Não se deve negar aos Municípios, peremptoriamente, a titularidade de direitos fundamentais e a eventual possibilidade de impetração das ações constitucionais cabíveis para sua proteção. Se considerarmos o entendimento amplamente adotado de que as pessoas jurídicas de direito público podem, sim, ser titulares de direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito à tutela judicial efetiva, parece bastante razoável vislumbrar a hipótese em que o Município, diante de omissão legislativa do exercício desse direito, se veja compelido a impetrar mandado de injunção. A titularidade de direitos fundamentais tem como consectário lógico a legitimação ativa para propor ações constitucionais destinadas à proteção efetiva desses direitos” (STF, MI 725/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 10/5/2007).



Como se observa, a minha resposta foi "escorregadia". Não me comprometi com nenhuma das teses, justamente porque o tema não é tão simples quanto parece. Aliás, nem mesmo comentei se o Estado pode ser titular de direitos fundamentais em face de particulares. De cara, não descarto a hipótese, desde que o particular esteja numa situação de vantagem, política, social ou econômica, em relação ao Estado. Mas é um assunto para se pensar.

10 comentários:

Unknown disse...

Olá Dr! Muito boa a explanação.
Mas, no caso de ser possível o Estado ser titular de direitos fundamentais em face de particulares, quais exemplos caberiam diante de situação de vantagem política, social ou econômica do particular em relaçao ao Estado?

Obrigada!

George Marmelstein disse...

Carol,

por se tratar de uma situação pouco comum, não é fácil encontrar exemplos. Mas vou tentar alguns:

Uma empresa de energia elétrica que corte, em razão de inadimplência, o fornecimento de energia para um hospital público estaria numa situação de superioridade em relação a esse hospital. O mesmo em se tratando de uma escola, uma universidade etc. Se bem que nesse caso o particular estaria agindo como se poder público fosse. Mas não deixa de ser um particular...

Outro exemplo: uma empresa jornalística negue ao poder público o direito de resposta assegurado na Constituição. Nesse caso, pode-se dizer que um particular está violando um direito fundamental do Estado. Embora seja discutível afirmar que o Estado tem o direito à honra (acho que não tem), pode-se dizer que o Estado tem o direito de informar uma notícia verdadeira ou a corrigir uma notícia falsa a seu respeito.

São alguns exemplos que pensei agora. Mas podem existir outros...

George Marmelstein

Anônimo disse...

George,
Confesso que não pensei em um exemplo para o assunto, mas o fato de o Estado ter dir. fundamentais não encontra uma certa relação com a noçao (hoje já mais aceita) de que o particular tem não somente direitos mas também deveres? Embora a clássica teoria quadripartida do Jellinek não seja perfeitamente adaptável aos dias atuais, não acha que um bom ponto de partida seria a idéia de status passivo formulada por ele?
Abraços,
Rafael DIogo

George Marmelstein disse...

Rafael,

o fato de o cidadão ter deveres para com a comunidade não faz surgir, em contrapartida, um direito fundamental em favor do Estado. Isso seria perigoso demais, pois poderia justificar a supressão de direitos em nome da segurança nacional, do interesse público ou outros valores nem sempre precisos.

Não acredito que o Estado tenha, por exemplo, o direito fundamental de invadir uma residência em caso de flagrante delito. Ele tem sim o poder-dever de invadir, mas não por ser titular de um direito fundamental, e sim porque há uma autorização constitucional específica para esse fim.

Na minha ótica, os direitos fundamentais possuem uma dupla finalidade: promover a dignidade humana e limitar o poder. Fora disso, não há direito fundamental. Por isso, o Estado somente poderá ser titular de direito fundamental quando ele estiver numa situação de submissão, onde um órgão mais forte, seja outro ente estatal, seja um particular poderoso, esteja numa situação de superioridade política ou econômica.

Anônimo disse...

Caro George,

Acompanho seu blog desde que o mesmo era da ig (era 4º ou 5º período da faculdade) e temos algo em comum, a paixão pelo direito Constitucional.

Agora, ingresso no 9º período e tenho a certeza que a admiração pela direito constitucional não "era paixão de verão".

Bem, quanto ao exposto, é um tema muito interessante. O STJ, salvo engano, tem uma enunciado de n.227 que reza que a pessoa jurídica pode sofrer dano moral, oque em tese, traz a possibilidade de raeguardo de um direito fundamental a pessoa jurídica, entretanto, ampliando este pequeno verbete, podemos trazer a mesma possibilidade para PJ DP em outras situações.

É um tema extremamente interessante, contudo, assim que eu amadurecer a idéia, colocarei aqui.

abraços,
Ivan

Rodrigo Siqueira disse...

A idéia de que o Poder Público possui direitos fundamentais oponíveis até mesmo contra o particular demonstra a evolução (transformação) que o instituto sofreu ao longo do tempo em razão de diversos fatores econômicos, políticos, sociais etc.

Cinquenta anos atrás nem mesmo o maior visionário pensaria em proteger o estado da arbitrariedade do particular, mas hoje em dia, devido ao enfraquecimento do estado ou, talvez, ao fortalecimento demasiado do privado, o Poder Público (quem diria) deve se proteger através de direitos fundamentais, o que demonstra, para mim, uma tendência irreversível no curso da história.

George Marmelstein disse...

É verdade, Rodrigo. Hoje, as grandes corporações globalizadas certamente são mais fortes, em diversos aspectos, mas sobretudo o econômico, do que o Estado. E como os direitos fundamentais são instrumentos de limitação do poder, certamente eles podem enventualmente favorecer o Estado, embora a situação não seja normal.

Anônimo disse...

Olá,
Gostei do site e indicarei aos meus colegas da São Francisco.
Sou estudante de Direito e procurava pela sentença do juiz Mário Jambo, no que tange ao caso dos hackers que terão de fazer resumo de algumas obras literárias.
Uma forma muito inteligente e sensata de aplicar uma "pena".
Por acaso os srs. possuem a referida sentença?
Grato.

Anônimo disse...

George, você entende possível um órgão do Estado ser titular de um direito fundamental que venha a ser exercido mesmo contra os interesses de um particular?

Luciana Silveira

Sara disse...

Eu acho que todos nós devemos estar participando deste tipo de perguntas porque todos têm algo a ver com essas coisas, o estado também tem muito mais responsabilidade, assim como um empresário e proprietário de vários restaurantes em moema acho que também temos muitas responsabilidades.