quarta-feira, 30 de abril de 2008

Limites do Direito Fundamental ao Riso: "Os Aristocratas" (Por Adriano Costa)

Estava no aconchego do lar, na semana passada, fazendo uso do mais sensacional artefato que o gênio humano jamais produziu – o controle remoto –, quando me deparei com certo documentário exibido na HBO, intitulado “Os Aristocratas”. Vários comediantes americanos foram surgindo na tela, e descobri que o título se referia a uma “piada secreta” da classe dos humoristas, contada em público apenas em raríssimas oportunidades. Foi muito bacana ver tantos rostos famosos lembrando a primeira vez em que a ouviram, as poucas ocasiões em que tiveram a coragem de contá-la em público, as vaias e aplausos que receberam justamente por fazê-lo, etc.


Sábado último, tive a oportunidade de conversar sobre o tema com o titular do blog, que partilha do mesmo senso se humor que este escriba. Risadas à parte, não pudemos deixar de conjecturar – em altíssimo nível acadêmico, lógico – que tratamento jurídico a tal anedota mereceria à luz da dogmática jusfundamental brasileira. Eis então que o George pediu para redigir um post sobre o assunto, e aqui estamos.


A questão central é que muita gente não consideraria “Os Aristocratas” uma piada.


Trata-se da narrativa mais inacreditavelmente tresloucada, grosseira, escatológica, politicamente-incorreta, sarcástica, que já tomou a forma de anedota. Uma família (pai, mãe, o casalzinho de filhos e seu cachorro) vai até uma casa de espetáculos, e o pai afirma que têm um número a apresentar. Quando o produtor pede que comecem, inicia-se um espetáculo absurdo, envolvendo toda a família – inclusive o cachorro (usem a imaginação!). Minutos depois, atônito com o que está vendo, o produtor berra: “mas que número é esse”? O pai, então, responde e finaliza essa obra-prima do humor non-sense: “os Aristocratas”.


No vasto catálogo de direitos fundamentais, poucos ensejam debates tão acalorados quanto a liberdade de expressão. Entre nós, a elaboração jurisprudencial sobre o assunto é bem farta, haja vista a enorme quantidade de demandas envolvendo pleitos de danos morais por supostos abusos no exercício deste direito. Não obstante, ainda engatinhamos no desenvolvimento de uma dogmática segura, apta a facilitar a vida dos magistrados no difícil exercício da ponderação valorativa. Nesse contexto é que a “mãe de todas as piadas” se insere como hipótese interessante de discussão acadêmica. Pois não se enganem: falamos de anedota cujo propósito não é apenas fazer rir, mas também chocar.


Por seu “conteúdo aberto”, que abre ao narrador um “vasto campo de conformação” que pode ofender mais ou menos conforme os valores protegidos por determinada “sociedade aberta”, “Os Aristocratas” ganha novas nuances de acordo com as intenções do falante. Assim, a tal família protagonista pode passar a ser integrada por membros de certa raça, etnia, religião, etc... Ora, isto é um prato cheio para o humor negro. Para se ter uma idéia, em sua versão, o impagável gordinho Cartman, do desenho animado “South Park”, ainda acrescenta um toque de 11 de setembro! Sensacional.


Dito isto, indaga-se: que conseqüências jurídicas haveria se alguém a contasse, digamos, no programa de Jô Soares? Ou no Teatro José de Alencar lotado? O piadista poderia vir a ser processado e condenado por crime de racismo (art. 5º, XLII), caso incluísse alguma minoria na narrativa? Sujeitar-se-ia ao pagamento de indenização por danos morais, considerando que cabe ao Poder Judiciário punir “qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI)? Ou simplesmente estaria exercendo os direitos fundamentais à livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV) e da expressão artística (art. 5º, IX)?


Em trecho de seu Epílogo à Teoria dos Direitos Fundamentais, que transcrevi em minha dissertação de mestrado, Robert Alexy apresenta interessante caso. Certa revista humorística alemã, chamada Titanic, rotulara um oficial da reserva, primeiro, de “assassino nato”, e depois, em edição posterior, de “aleijado”. Ocorre que o ofendido era, efetivamente, paraplégico. Indignado, acionou a publicação por ambas as adjetivações, obtendo ganho de causa nas esferas ordinárias. Interposto o recurso perante o TCF, a corte ponderou que a expressão “assassino nato” deveria ser interpretada à luz das sátiras que eram publicadas de hábito pela revista, de sorte que a condenação a este título resultaria numa “intervenção desproporcional” na liberdade de expressão; assim, acolheu o apelo da revista para negar o direito à indenização. De outra banda, considerou que o termo “aleijado” vulnerava “gravemente o direito à honra” do oficial, que possuía deficiência física. Neste particular, a intervenção seria justificada, face à proteção do direito à honra. O recurso foi, neste ponto, negado. Foi notável a técnica de ponderação adotada pela corte, que de uma banda condenou a violação à dignidade humana, mas por outra isentou a revista da obrigação de indenizar.


Entre nós, veio-me logo à mente, para fins de comparação, o caso Gerald Thomas, muito bem analisado aqui mesmo no blog: confira-se em http://georgemlima.blogspot.com/2007/08/jurisprudenciando-casos-curiosos.html. O conhecido diretor teatral, como represália à platéia que o vaiava, despiu-se e simulou se masturbar diante de todos. Acabou preso. Em sede de habeas corpus, o STF devolveu-lhe a liberdade (o julgamento terminou empatado, prevalecendo a tese mais favorável ao paciente). Assinalou a corte que, em casos tais, “não se pode olvidar o contexto em que se verificou o ato”, e que certas atitudes, mesmo que “inadequadas e deseducadas”, também podem inserir-se no contexto da liberdade de expressão.


Mas é o seguinte trecho, extraído da ementa do julgado, que a meu ver legitimaria que alguém contasse “Os Aristocratas” por aqui: “a sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados, como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando-se o enquadramento penal”. Faz todo o sentido. O senso de humor é, inegavelmente, uma manifestação da personalidade. A mesma sátira politicamente incorreta que soa ofensiva para alguns, faz com que outros se divirtam a valer. Neste panorama, os direitos fundamentais devem operar como as salvaguardas de liberdade que são, pois aceitar o contrário seria convertê-los em instrumentos daquilo que nasceram exatamente para combater: o arbítrio, a opressão, o abuso de poder. A história revela inúmeros casos em que alguém ou uma instituição acabou se tornando sua própria nêmese. Por isso, devemos estar atentos para que não acabemos criando uma “ditadura de direitos fundamentais”.


Como o post já ficou demasiado longo e não pretendo esgotar a discussão (mas sim incentivá-la), encerro desejando vida longa aos “Aristocratas”, à liberdade de expressão, e a todas as formas de humor politicamente incorreto. Saúde!

11 comentários:

Anônimo disse...

Caro Adriano,


esse foi um dos melhores posts que li por aqui.

O Cartman de South park é mesmo impagável, e o desenho em si faz sátira de tudo, desde "judeus", canadenses, "negros", "aleijados", até aos Norte Americanos. Nesse contexto, quando se percebe que a sátira ou a piada é universal, contra todos e contra "mim mesmo" acho válida, e até mesmo "urinante".

Mas a piada Aristocratas leva em conta o que? a condição supostamente vil dos abastados. Poderia ser sobre a Plutocracia, enfim, mas quando sair do contexto, conforme salientado no post, como por exemplo, a troca da palavra por uma minoria ou classe específica como "Aristocratas" por "nordestino", "preto", "xibungo", ou qualquer outra. Alguns achariam graça(como efetivamente acham), mas a classe ou minoria exposta não achará nenhuma graça. No seu ponto de vista, quais seriam as regras objetivas para fixação de dano e indenização?


Att.

Thiago.

George Marmelstein disse...

Driconildes,

acho que depois de um post com este nível, devo desistir de vez de qualquer pretensa eventual futura promoção por merecimento ao cargo de desembargador federal. Creio que devo me conformar em ficar o resto da minha carreira em Fortaleza, junto com os amigos, com a família, perto da praia, da capital mundial do kitesurf (Cumbuco).

Já pensou, daqui a uns trinta anos, eu sendo sabatinado no Senado pleiteando uma vaga no Supremo Tribunal Federal e um senador pergunta: me fale um pouco sobre os Aristocratas...

Vou tentar fazer um post à altura do seu... Já tenho algumas idéias na cabeça... Afinal, este blog é de respeito... NOT!

Unknown disse...

Drica,

Cara...vendo estes comentários tão argutos tenho saudades da especialização, principalmente dos últimos 5 minutos de cada aula, quando entrávamos na sala para terminarmos as questões de máxima relevância levantadas pelo uchoa e assinar a presença sob os olhares de aprovação (ou seja lá o que fosse aquilo) de nossos colegas.
Grande abraço
Rubens Guedes

Anônimo disse...

Nobre professor, meu nome é Fabrício Fernandes Andrade. Tenho explorado muito o seu blog. Tem sido um sucesso aqui na faculdade. Como lhe disse, sou professor de Direito Constitucional. Os alunos estão muito envolvidos. Parabéns.
Haverá de 26 a 31 de maio a 7ª Semana Jurídica aqui em Cacoal-Rondônia. O senhor teria disponibilidade em sua agente para vir nos visitar? Seria um prazer recebê-lo para também divulgar o seu livro. Nosso evento contará com cerca de 900 participantes. Por favor, veja se é possível. Aguardamos uma resposta. Muito obrigado.
Prof. Fabrício Andrade

Anônimo disse...

Caros George e Drica,

Quando estava fazendo o MBA, escrevi certa feita sobre a sátira. Batizei o pequeno texto - que nas minhas férias pretendo transformar num artigo - de "O riso que faz pensar: a sátira na visão da jurisprudência". Do que interessa ao debate, transcrevo o trecho abaixo.

Abraços,

Leonardo Resende

"Sátira, na definição dada pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, pode ser compreendida como “composição poética jocosa ou indignada contra as instituições, os costumes e as idéias contemporâneas”, “discurso ou escrito picante, maledicente ou de crítica rigorosa” ou “censura espirituosa”.

A sátira vai além da mera comédia, porquanto não almeja simplesmente à consecução do riso. Com efeito, embora se valha instrumentalmente de elementos cômicos, a sátira tem como finalidade promover uma crítica a práticas sociais e políticas, a idéias e a instituições. O que se busca, por meio da sátira, é, por meio do humor, levar o público a refletir criticamente sobre o comportamento de determinados setores da sociedade, notadamente daqueles ligados ao poder político e econômico.

Distingue-se também da notícia jornalística, já que a sátira não possui caráter informativo e, dessa forma, não assume compromisso com a verdade. Ao contrário, é elemento inerente à sátira a distorção da realidade, o exagero dos fatos, de modo a criar – até intencionalmente – uma aura de inverossimilhança que permita ao público perceber o mote satírico da mensagem.

Sob essa ótica, a sátira configura-se como meio de exercício da liberdade de manifestação do pensamento, de criação intelectual e artística e de comunicação social (art. 5º, IV e IX, e art. 220 da CF/88), valores estes que, como grandes sustentáculos da democracia, foram reputados fundamentais pela Constituição Federal de 1988.

Ocorre que, na linha do que vem sendo defendido pelas correntes pós-positivistas, não há falar em princípios ou direitos absolutos, por mais relevantes que sejam. De fato, considerada a dialética do texto constitucional, é natural a existência de princípios em latente estado de colisão, levando à necessidade de o julgador, nos casos que lhe forem submetidos, identificar, num exercício de conformação prática e de ponderação, a solução que melhor harmonize os valores em conflito, de maneira a resguardar-lhe sempre o núcleo essencial.

Nesse contexto, conquanto a sátira encontre nítido fundamento em princípios fundamentais, há outros valores de igual relevância que hão de ser preservados de eventuais excessos. É que a Constituição Federal de 1988 também assegurou a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurando, por conseguinte, o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. A partir disso, cumpre especificar quais as limitações ao exercício da sátira impostas pela necessidade de respeito aos direitos fundamentais da personalidade.

Tais limitações estão ligadas essencialmente à exigência de que o verdadeiro propósito seja de efetivamente realizar a crítica social, em vez de simplesmente provocar a galhofa ou a ofensa pessoal. Consoante afirmado anteriormente, embora a sátira se utilize da comédia como meio, seu fim mediato é a reflexão da sociedade acerca de costumes e instituições. Não pode, pois, a sátira ser praticada com o único intuito de insultar, de ofender, de caluniar, sob pena de responder o ofensor pelos excessos cometidos.

Outra limitação a ser observada diz respeito à necessidade de se deixar evidenciado ao público que se trata de uma matéria inverídica, o que se dá normalmente, tal como na caricatura, por meio do recurso ao exagero. Em conexão com isso, é importante observar a notoriedade da pessoa, instituições ou costume objeto da crítica satírica, pois somente nesta hipótese é que o público poderá perceber o enfoque cômico, e não informativo, da mensagem."

Unknown disse...

George,

Achei que o site jah estava atualizado com comentarios sobre a manifestacao para a liberacao da maconha.

Fico aguardando
abraco
joao paulo

George Marmelstein disse...

Grande Rubens,

bom te ver por aqui. Aliás, bem que você podia mandar umas colaborações também, não é mesmo?

George

George Marmelstein disse...

Leonardo,

rapaz, dá pra mandar o artigo na íntegra? Tenho muito interesse no tema. Aliás, já havia feito até mesmo uma pesquisa jurisprudencial para fazer um post sobre o assunto.

Se possível, envia pro meu e-mail que posto aqui.

Grande abraço e saudações rubro-negras,

George

George Marmelstein disse...

Fabrício,

seria um grande prazer conhecer Rondônia. Manda os detalhes pro meu e-mail georgemlima@yahoo.com.br que verei se é possível participar do evento.

Grande abraço,

George

Anônimo disse...

Ok, professor. Envio ao senhor em breve os detalhes. Obrigado.
Prof. Fabrício

Anônimo disse...

George, como disse, o que tenho é apenas um pequeno texto, o qual, nas férias que terei agora em junho (aliás, vamos tomar aquela cerva que eu estou te devendo!), pretendo transformar em um artigo, inserindo a análise de mais precedentes (no texto original, analiso apenas três). Quando ficar pronto, eu te mando, ok. Abraços!