quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Os bons costumes podem limitar direitos Fundamentais? - Parte II

Dando continuidade ao post “os bons costumes podem limitar os direitos fundamentais?”, passo a formular meus comentários sobre o assunto. Como sempre, não tenho a pretensão da verdade e – eu próprio – tenho certeza de que minhas idéias ainda não estão completamente amadurecidas.

Mesmo assim, vamos tentar apresentar uma solução com base na teoria dos direitos fundamentais...

Inicialmente, uma análise sobre a legitimidade de medidas que limitam os direitos fundamentais não pode ser baseada em “achômetros”. É preciso buscar na Constituição a resposta para qualquer problema envolvendo direitos fundamentais.

Leia de cabo a rabo o texto constitucional e certamente você não encontrará nada que fale em bons costumes (melhor: faça uma pesquisa pelo mecanismo de busca do Word). Definitivamente, a Constituição não colocou os bons costumes como um valor a ser preservado, ao contrário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, por exemplo, que reconhece, em seu art. 29, que os direitos ali estabelecidos são relativos, já que podem ser limitados no intuito de promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática. Vale ressaltar que a DUDH, apesar de ser um poderoso instrumento em favor dos direitos humanos/fundamentais, não tem força normativa, sendo apenas uma recomendação política para os países que a subscreveram.

Há, contudo, na CF/88, na parte relativa à Comunicação Social, alguns artigos que sugerem a limitação da liberdade de comunicação em favor de valores morais conservadores. Dê uma lida no artigo 221 e comprove. Lá você verá que a Comunicação Social tem como princípio, entre outros, o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

Inicialmente, descarto qualquer interpretação restritiva do artigo constitucional no sentido de que só se aplica à comunicação social. Sempre fui contra argumentos baseados na interpretação “ao pé da letra”. Os princípios elencados no artigo 221 são diretrizes ético-jurídicas que incidem em qualquer situação, sobretudo na Comunicação Social. Seria até meio sem lógica se pudesse haver a limitação de horário para exibição de filmes que contenham cenas de sexo e, ao mesmo tempo, qualquer pessoa pudesse fazer sexo em público em qualquer lugar a qualquer hora.

Ainda assim, não vejo como justificar a restrição à liberdade com base exclusivamente nesse tal de “bom costume”, sobretudo em matéria sexual. A Constituição não protege um único comportamento sexual. Pelo contrário. A CF/88 protege o pluralismo e o respeito às diferenças. Portanto, na minha ótica, não há base constitucional para punir comportamentos, sexuais ou não, com fundamento unicamente no conservadorismo moral.

As únicas restrições que podem ser admitidas são as realizadas para proteger outros valores constitucionais. Proibir um outdoor que estampe a foto de uma mulher nua é, talvez, proporcional, pois a medida visa proteger as crianças de terem contato precoce com apelos sexuais. Do mesmo modo, é proporcional obrigar que as revistas voltadas para o público masculino cubram as capas expostas em bancas de revistas, a fim de impedir que crianças vejam pessoas sem roupas.

Se a mesma mulher do exemplo do topless resolver ficar nua em uma Igreja, certamente estará ferindo o direito daqueles que freqüentam o lugar e, portanto, está violando outros direitos fundamentais. O exemplo da praia é totalmente diferente, já que existe, naturalmente, menos pudor entre os presentes. Mais uma vez a solução vai depender das informações fornecidas pelo caso concreto, tendo sempre como base o teste da proporcionalidade (especificamente a proporcionalidade em sentido estrito – ponderação).
Um caso que ilustra esse aspecto foi o do Diretor de Teatro Gerald Thomas, que foi denunciado pelo crime de ato obsceno após mostrar a bunda em público e simular uma masturbação como reação às vaias do público. O STF entendeu, em habeas corpus, que o ato não poderia ser punido, pois estaria inserido no contexto da liberdade artística. O ato foi praticado dentro de um teatro, às duas horas da manhã, no Rio de Janeiro. O público que presenciou a cena era adulto. A própria peça de teatro continha cenas de nudez e simulação sexual. Portanto, a "moral e os bons costumes" não foi suficiente, naquele caso concreto, para justificar a limitação ao direito fundamental à liberdade artística.
Seria diferente se fosse uma peça infantil, numa manhã de domingo e a cena fosse presenciada por crianças. Aí sim, na minha ótica, estaria plenamente justificada a limitação à liberdade artística, tendo em vista a necessidade de proteger as crianças contra estímulos sexuais precoces.
O caso hipotético de uma suposta lei proibindo que casais homossexuais troquem carícias em público quando houver crianças presentes é extremamente interessante do ponto de vista da teoria dos direitos fundamentais, pois envolve um conflito muito mais complexo de valores constitucionais.

De cara, entendo que a lei é inconstitucional, pois ela visa a um fim constitucionalmente ilegítimo. Ela não passaria pelo primeiro critério da proporcionalidade que é a adequação.

Vale ressaltar que adequação não exige somente a relação de pertinência/coerência entre meio e fim, mas também exige que uma medida restritiva de direitos fundamentais, para ser válida, seja idônea para o atendimento de uma finalidade constitucionalmente legítima. Se o objetivo visado pela medida buscar uma finalidade que não seja compatível com a Constituição, ela não será válida.

No caso da hipotética lei em questão, entendo que seria nitidamente inconstitucional, pois o fim buscado por ela é preconceituoso, e a Constituição veda a discriminação por razões sexuais.

O problema é que ainda não há, no seio da sociedade, uma completa aceitação do homossexualismo. A maioria das pessoas ainda não aceita (e talvez eu me inclua nessa relação) presenciar casais de pessoas do mesmo sexo trocando carícias em público. No entanto, esse tipo de preconceito, embora se justifique por razões culturais, não tem base constitucional. A Constituição não deve ser apenas um espelho da sociedade, mas também deve moldar comportamentos. No caso específico, a Constituição prospectivamente, com olhos voltados para o futuro, pretendeu claramente construir uma sociedade solidária, pluralista e sem preconceitos. Logo, nesse ponto, é a sociedade que deve se adequar aos valores constitucionais e não o inverso, já que os valores sociais estão descompassados com a idéia de dignidade da pessoa humana (que, em última análise, significa respeitar o outro, independentemente de quem seja o outro).

Portanto, como síntese a tudo o que foi exposto, concluo:
a) não há na Constituição, de forma expressa, qualquer proteção aos bons costumes;
b) há, contudo, uma proteção “aos valores éticos da pessoa e da família” (art. 221);
c) a limitação a direitos fundamentais, com base nos “valores éticos da pessoa e da família”, somente se justificará se atender ao critério da proporcionalidade;
d) é justificável a limitação de direitos fundamentais no intuito de impedir o contato do público infantil com estímulos sexuais precoces;
e) a limitação deverá buscar atingir valores constitucionalmente aceitos e não se pautar por preconceitos e discriminações descompassadas com o espírito de tolerância e respeito às diferenças positivado na Constituição.

PS. Como vocês devem ter percebido, os comentários apresentados no primeiro post sobre o assunto foram bastante importantes para a formação do meu convencimento. Acho que é essa a grande vantagem do blog: a possibilidade de interagir com os leitores e aprender com eles.

8 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o texto, porém a forma de visualização é deixa a desejar, pra ficar melhor vai uma dica. Colocar por tópicos os assuntos.
Um sacudido abraço.

Anônimo disse...

Bom dia Dr. George,
Meu nome é Alexandre, moro no RJ, aonde estou começando a advogar.
Sou da cidade de Maceió e fiquei muito satisfeito em ver no seu Blog que o senhor ja fez parte da procuradoria de AL.
Tambem pretendo voltar para lá um dia atraves de um concurso.
O seu Blog é de extrema importância para ajudar as pessoas que como eu estão estudando e procurando matérias sobre Direitos Fundamentais, que é um assunto novo nas provas.
Desejo para o senhor e sua família um feliz natal e um próspero ano novo cheio de paz e saúde.
P.S.: Peço desculpas por postar no link anonimo, é porque ainda não entendi como postar neste Blog de forma diferente. Tentei salvar um arquivo de nome "DEFAULT", mas nada aconteceu.
Meu email: ajmn.alexandre@ig.com.br

Um grande abraço.

Anônimo disse...

Dr. George,
O sr. pode indicar livro para dois assuntos?
1) Competência da Justiça Federal;
2) Delimitações do foro privilegiado por prerrogativa de função
Grato.
Leandro.

Anônimo disse...

Professor George, achei de muito bom tom o texto deste post. Mais uma vez o senhor demonstrou clareza e precisão nas idéias. Contudo, peço a vênia para discordar de um ponto em particular, que concerne a sua afirmação de que a Declaração Universal de Direito Humanos não possui valor normativo.
A DUDH antes de ser um conjunto de normas positivadas é um valor, o mínimo existencial que deve ser comum a toda pessoa. São direitos naturais. Nossa Carta Magna, conhecida por seu caráter democrático e social, não se absteve do tratamento dos direitos humanos fundamentais, trazendo-os logo no início do seu texto, e os deu status de cláusula pétrea, não podendo ser modificados sequer por emenda constitucional. Nesse esteio, os tratados internacionais que versam sobre direitos fundamentais também possuem essa qualidade, haja vista que nossa Carta expressa devidamente que os direitos e garantias nela contidos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte.
Assim, primaz é asseverar que a DUDH têm sim força normativa, primeiro por estar envolvida no tratamento dos direitos fundamentais, sendo, portanto, parte integrante da nossa constituição, embora não textualmente, mas ampliando o chamado bloco de constitucionalidade, como nos ensina Canotilho; depois porque essas normas possuem aplicabilidade imediata, conforme podemos aduzir da leitura do art. 5º, § 1º. Embora o nosso pretório excelso não considere esse posicionamento por afirmar a supremacia da nossa Constituição e do nosso Estado, penso haver sim força normativa da DUDH.

Anônimo disse...

Vinicius,
não há a menor dúvida de que os tratados de direitos humanos têm força normativa, inclusive, em dadas situaçoes, com a mesma força jurídica das demais normas constitucionais.
Ocorre que a DUDH não é um tratado internacional. É uma resolução da ONU, que marca a origem da proteção internacional dos direitos humanos.
Quando eu disse que ela não tem força normativa é justamente porque ela não é um tratado internacional, embora inúmeros tratados tenham surgido a partir dela.
Alguns países incorporaram expressamente a DUDH em suas Constituições, dando-lhe verdadeira força normativa. Não foi o caso do Brasil, que não fez qualquer menção à DUDH em seu texto constitucional.
Isso não retira da DUDH uma força política muito forte, podendo até mesmo servir como diretriz para interpretação de normas jurídicas. Além disso, a CF/88 praticamente reproduziu todos os direitos previstos na DUDH, de modo que, pelo menos indiretamente, a DUDH também é direito positivo aqui no Brasil.

George Marmelstein

Anônimo disse...

Dr. George,
Interessante seu ponto de vista, especialmente no tocante à diferença ainda atual da Constituição "real" e Constituição "Folha de Papel" de Lassale. A diferença, ainda grande neste quesito, entre a proibição de discriminação imposta pela Constituição Federal e a sociedade brasileira veladamente discriminatória ainda constitui um grande fosso entre as "duas" constituições. No entanto, interessante raciocinar que a constituição deve ser pré-compreendida sob alguns valores básicos, e a dignidade da pessoa humana certamente é um deles. Como você mesmo disse, a constituição não deve se amoldar aos fatos, mas o inverso, sendo a constituição uma "previsão para o futuro", nisso consistindo sua normatividade, como já dizia Hesse. Assim, seu ponto de vista é extremamente válido, sobretudo analisado sob o prisma da não adequação da Constituição à sociedade, e não o inverso, decorrendo um dos princípios mais importantes do constitucionalismo moderno que é a força normativa da Constituição.
Grande abraço,

Rafael Diogo

Anônimo disse...

Professor, tornei-me leitor assíduo de seu blog. Parabéns pela inovação e pela atenção que destina a seus leitores. Tenha um feliz ano novo!

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caro George,
Muito bom o seu texto. E interessante o comentário sobre a relação entre direito e fato. Até que ponto o segundo pode determinar o sentido do primeiro? Se o direito tiver sempre de se amoldar aos fatos, deixará de ser um "dever ser", um instrumento de adaptação social... Por outro lado, se inclinar-se por uma mudança radical nos fatos, corre o risco de tornar-se ineficaz...
Você tratou do assunto também na postagem sobre a análise econômica do direito, com a qual concordo inteiramente. Inclusive passei pelo mesmo percurso de primeiro achar tudo uma loucura, e depois ver certo sentido em algumas coisas. Não sei se você conhece, mas há livro interessante de Rachel Stajn e Decio Zilberstajn sobre o assunto (Direito e Economia, Elsevier).
Um abraço, e feliz ano novo.

p.s. - A propósito, algum tempo atrás criei um blog também. A abordagem é um pouco diferente da sua. Posto reflexões sobre direito em geral, aspectos práticos e teóricos, sobre monografias, notas de leitura, e até sobre coisas que não têm nada a ver com isso, mas que, de repente, até podem ter...
Quando tiver oportunidade, dê uma olhada. É www.direitoedemocracia.blogspot.com


ps2 - Achei interessantíssimo você chamar o google de oráculo. Eu também o chamava assim, por influência de uma sobrinha minha que estudou no ITA, e que disse ser esse o nome pelo qual ele é conhecido por lá.