quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Uma rápida viagem...

Pessoal,
estou cheio de dilemas na estrutura do Curso, que não vem ao caso.... Por isso, a demora em postar novos capítulos (que já estão praticamente escritos, só falta concatenar as idéias).
De qualquer modo, envio um texto que escrevi durante minhas últimas férias, que estou pensando em colocar no livro, não sei ainda...
É uma rápida viagem. Aqui vai:


Princípio Antrópico: uma justificativa científica para a dignidade humana
“O Homem é a medida de todas as coisas” - Protágoras


O presente texto não é propriamente “jurídico”. Na verdade, não tem nada de jurídico. Ele contém apenas algumas inquietações “filosóficas” de um jurista que também gosta de temas como a criação do universo e da vida. Por isso, ele não é uma peça essencial deste Curso de Direitos Fundamentais, embora tenha uma conexão com o princípio dignidade da pessoa humana. Se você preferir “pular” essa análise do princípio antrópico fique à vontade. Do contrário, caso prefira continuar essa “viagem”, sugiro que mantenha os pés no chão e a cabeça nas nuvens, ou melhor, nas estrelas.

Em princípio, pode parecer meio sem sentido tentar fazer alguma ligação entre as descobertas científicas e a dignidade da pessoa humana. Afinal, o que é que o modelo do “big bang” ou a física quântica teriam a acrescentar à concepção jurídica de dignidade humana?
Na verdade, elas modificam bastante os fundamentos filosóficos que alicerçam a dignidade do homem.

Como se sabe, a noção original de dignidade da pessoa humana foi moldada e construída a partir da concepção de que o “homem é a medida de todas as coisas”. Feitos à imagem e semelhança de Deus, os homens seriam criaturas divinas especiais ocupando um lugar de destaque no universo, até porque o Planeta Terra seria o centro de tudo.

De repente, a ciência conseguiu destruir cada uma dessas cômodas concepções de mundo, que nos fazia viver melhor, já que fornecia algum sentido especial para nossa existência.

Primeiro, vieram Copérnico, Kepler, Galileu, entre outros, que demonstraram que a terra gira em torno do sol e não o contrário. Logo, se existisse um centro para o universo, esse centro seria ocupado pelo sol e não pela Terra.

Depois, vieram os astrônomos com seus poderosos telescópios que demonstraram que a Via Láctea é apenas mais uma entre bilhões de outras galáxias que compõem o universo (cerca de 140 bilhões), muitas delas bem maiores do que a nossa.

Portanto, como explica o físico brasileiro Marcelo Gleiser, “nossa galáxia, a Via Láctea, é apenas uma entre bilhões de outras, sendo sua posição perfeitamente irrelevante. Nosso planeta não ocupa uma posição especial no sistema solar, nosso Sol não ocupa uma posição especial em nossa galáxia, e nossa galáxia não ocupa uma posição especial no Universo”[1].

Além disso, dentro da linha temporal do universo, ainda somos apenas bebês. A Terra tem cerca de 4,6 bilhões de anos, enquanto os homens existem há apenas alguns milhares de anos. Se a história do universo fosse representada como uma linha do tempo esticada entre as mãos na extremidade de dois braços estendidos, então uma lixa de unha poderia apagar toda a existência humana com um único aparar de unhas[2]. “Nós fazemos parte de apenas cerca de 0,0001% da história da terra”[3].

Em um contexto menos cosmológico, Charles Darwin apresentou provas convincentes de que os homens seriam apenas uma evolução natural dos primatas, que, na luta pela vida (“struggle for life”), conseguiram desenvolver algumas habilidades diferenciadoras, como a capacidade de raciocinar.

Um século depois de Darwin, com a descoberta do DNA e com o mapeamento do genoma humano, ficou efetivamente demonstrado que não somos muito diferentes, em essência biológica, do que os nossos ancestrais primatas:

“Por mais complexa que seja, no nível químico a vida é curiosamente trivial: carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio, um pouco de cálcio, uma pitada de enxofre, umas partículas de outros elementos bem comuns – nada que você não encontre na farmácia próxima -, e isso é tudo de que você precisa. A única coisa especial nos átomos que o constituem é constituírem você”[4].

Será que somos mesmo apenas “filhos do carbono e do amoníaco”, como defendia pessimistamente o poeta Augusto dos Anjos? Somos apenas “lixo nuclear” ou “refugos estrelares”, como dizem os astrofísicos mais realistas?

Não é bem assim. Na verdade, a própria ciência, responsável pela destruição dos mitos da criação, cuidou de encontrar respostas para tornar mais relevante nosso papel no universo. Como defende Simon Singh, parece as forças que controlam a evolução do universo foram ajustadas cuidadosamente para que existíssemos[5]. O princípio antrópico – prossegue Singh – declara que qualquer teoria cosmológica deve levar em conta o fato de que o universo evoluiu para nos conter[6].

No mesmo sentido, Bryson explica:

“Para estar aqui agora, vivo no século XXI e suficientemente inteligente para saber disso, você também teve de ser o beneficiário de uma cadeia extraordinária de boa sorte biológica. A sobrevivência na Terra é um negócio extremamente difícil. Das bilhões e bilhões de espécies de seres vivos que existiram desde a aurora do tempo, a maioria – 99,99% - não está mais aqui” [7].

Outra imagem bastante ilustrativa sobre a mágica da vida humana é a seguinte: imagine uma caixa bem grande contendo todas as peças de um Boing 777 desmontadas. Imagine agora que um furacão igualmente grande passou bem no local onde estava a caixa e a balançou bem muito. Depois que o furacão passar, você abre a caixa e vê o Boing todo montadinho, bonitinho, pronto para decolar. Essa é a mesma probabilidade para você está aqui hoje, vivo e pensando nessas coisas.

Seguindo essa mesma linha de reflexão, Marcelo Gleiser chega à conclusão de que:

“somos mesmo raros, que a vida é um privilégio e que a inteligência é uma centelha do divino que carregamos conosco. Com o poder vem a responsabilidade: se somos raros, devemos fazer todo o possível para preservar o que temos, para preservar nossa casa, nosso maravilhoso planeta, que nos permitiu chegar até aqui. Temos o dever não só de preservar a vida aqui, mas de criar uma ética cósmica, de espalhá-la pela galáxia, de fazer do cosmo uma entidade humana. Talvez seja esse o nosso destino: povoar o universo de vida, celebrando a cada dia sua criatividade inigualável. Se as estrelas nos deram a poeira da qual somos feitos, e o Sol a energia para animá-la com vida, cabe a nós louvá-la. Disso depende o futuro de nossa espécie e, talvez, da vida no universo”[8].

Provavelmente, mais importante do que a capacidade de pensar e de se maravilhar com o mundo à nossa volta seja a capacidade de pensar eticamente. Fazer o bem não por instinto, mas por consciência de que isso é certo é, provavelmente, o que distingue os seres humanos dos outros seres. “Como seres humanos somos duplamente sortudos, é claro. Desfrutamos não só do privilégio da existência, mas também da capacidade singular de apreciá-la e até, de inúmeras maneiras, torná-la melhor” [9].

Para finalizar, faço questão de reproduzir as proféticas palavras de Pico Della Miràndola, que, no longínquo ano de 1486, escreveu um livro justamente sobre “A Dignidade do Homem” (o título original é “Oratio de Hominis Dignitate”), onde prenunciou:

“o homem, na verdade, é reconhecido e consagrado, com plenitude de direitos, por ser, efetivamente, um milagre”[10].

Agora podemos pousar.
[1] GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo – dos mitos de criação ao big-bang. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 353.
[2] SINGH, Simon. Big Bang. São Paulo: Editora RCB, 2006, p. 439.
[3] BRYSON, Bill. Uma Breve História de Quase Tudo. São Paulo: Quetzal Editores, 2004, p. 484. Para ilustrar a dimensão irrisória da participação humana no Planeta Terra, Marcelo Gleiser faz a seguinte ilustração: vamos imaginar que a Terra não tenha 4,6 bilhões de anos, mas apenas 46 anos. Nessa escala, nada podemos afirmar concretamente sobre a vida na primeira década de existência da Terra. A vida surgiu há pelo menos 35 anos, quando a Terra tinha onze anos. Montanhas e oceanos se formaram, e durante muito tempo a vida permaneceu em seu estado primitivo. Seres multicelulares surgiram há vinte anos. A vida floresceu nos oceanos há apenas seis anos, e saiu da água há quatro. Plantas e animais dominaram a superfície há dois anos. Os dinossauros atingiram o auge de sua existência há um ano, e quatro meses depois estavam extintos. Macacos humanóides se transformaram em humanóides macacos na semana passada, e a última Idade do Gelo ocorreu há alguns dias. Nossa espécie – Homo sapiens – surgiu cerca de uma hora atrás. E a renascença, junto com nossos heróis, Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, aconteceu há apenas três minutos! (GLEISER, Marcelo. Poeira das Estrelas. Rio de Janeiro: editora Globo, 2006, p. 224/225).
[4] BRYSON, Bill. Uma Breve História de Quase Tudo. São Paulo: Quetzal Editores, 2004, p. 12.
[5] SINGH, Simon. Big Bang. São Paulo: Editora RCB, 2006, p. 451.
[6] SINGH, Simon. Big Bang. São Paulo: Editora RCB, 2006, p. 451. O filósofo canadense John Leslie imaginou o cenário do pelotão de fuzilamento para elucidar o princípio antrópico. Imagine que você foi acusado de traição e está esperando para ser executado diante de um pelotão de vinte soldados. Você ouve a ordem para disparar, vê os vinte fuzis atirararem e então percebe que nenhuma bala o atingiu. A lei diz que você pode ir embora, livre, em tal situação, mas, à medida que caminha para liberdade, começa a se perguntar por que ainda está vivo. Será que todas as balas erraram por acaso? Será que esse tipo de coisa acontece uma vez a cada 10 mil execuções, ou você apenas teve muita sorte? Ou haveria um motivo por trás de sua sobrevivência? Será que todos os vinte integrantes do pelotão de fuzilamento erraram deliberadamente porque acreditavam na sua inocência? Ou será que, quando as miras dos fuzis foram calibradas na noite anterior houve um erro de alinhamento, de modo que todos os fuzis dispararam dez graus para a direita do alvo? Você pode passar o resto da sua vida presumindo que a execução fracassada foi produto apenas acaso, mas será difícil não associar algum significado mais profundo à sua sobrevivência. p. 451/2
[7] BRYSON, Bill. Uma Breve História de Quase Tudo. São Paulo: Quetzal Editores, 2004, p. 12.
[8] GLEISER, Marcelo. Poeira das Estrelas. Rio de Janeiro: editora Globo, 2006, p. 275.
[9] BRYSON, Bill. Uma Breve História de Quase Tudo. São Paulo: Quetzal Editores, 2004, p. 484.
[10] MIRÀNDOLA, Pico Della. A Dignidade do Homem. Ed. Escala: São Paulo, 2002, p. 38.

9 comentários:

Promotor de Justiça disse...

Excelente texto. Parabéns.

Tomei a liberdade de publicá-lo em meu blog.

Sucesso!

Anônimo disse...

Excelente texto. Entretanto, esperava um pouco mais na conlusão e não apenas " (...) Fazer o bem não por instinto, mas por consciência de que isso é certo é, provavelmente, o que distingue os seres humanos dos outros seres (...)". Após lê o "Tratado da Natureza Humana" de David Hume e o "Gene egoísta" de Richard Dawkins estou com sérias dúvidas sobre o que nos leva a agir. O própio Bill Bryson nos deixa com muitas inquietações e nem pensa em respondê-las. Por fim, sou um admirador do blog e acho este tema muito interessante e de extrema relevância para a discussão jurídica, são inquietações que nos levam a procurar o sentido do que fazemos e por que fazemos. Espero mais posts com questões filosóficas desse nível, pois a discussão jurídica sem a filosofia lhe servindo de base, perde quase todo o sentido. Abraço e parabéns pelo blog. caiomeiota@yahoo.com.br

George Marmelstein disse...

Caio,
também concordo com você quanto à conclusão do texto. Ficou fraquinha mesmo (menos a parte do Mirandola). Confesso que ainda não li "o Gene Egoísta", mas com certeza seguirei a sugestão.
Grande abraço e continue contribuindo com essas valiosas sugestões.
George Marmelstein

Anônimo disse...

Olá, professor.
Também gostei bastante no texto, e vou discordar um pouquinho do anônimo. O que nós entendemos como moral é obviamente fruto de nossa evolução darwiniana, e nossas ações estão quase sempre ligadas, direta ou indiretamente, à sobrevivência e à continuidade dos nossos genes. E é isso o que chamamos de "consciência". O fato de que nós amamos nossos filhos, defendemos nossos parentes e não aceitamos atrocidades cometidas por outros humanos está ligado diretamente com nossos genes (a violência, a discriminação e outros fatores TAMBÉM), mas isso está longe de nos descaracterizar como seres conscientes ou morais. Na verdade, eu acredito que seja bem o contrário.
Nesse sentido, "Como a mente funciona" e "tabula rasa", de Steven Pinker (que também escreveu a introdução de "what is your dangerous idea?" com Dawkins) rebate a argumentação de que, se nossa moral vem dos genes, então ela não faz sentido. A única diferença, na verdade, entre a moral na religião e a moral na ciência, é o seu produtor. Na religião, é Deus. Na ciência, é o gene. Isso não nos torna menos conscientes, apenas abre caminho para discussões melhores.

Anônimo disse...

Dr. George, peço licença para usar o espaço e conversar um pouco com o colega Felipe Bertoni. Caro Felipe, primeiro obrigado pelas indicações de livros que V. faz em seu comentário, procurarei lê-los. Entrando na discussão, diferentemente de V. que acha que o que "nós entendemos como moral é obviamente fruto de nossa evolução darwiniana", eu estou muito longe de achar qualquer coisa óbvia. Sinceramente, tenho lido muito e estou tentando formar o conhecimento sistematizado sobre o tema e o que tem na minha mente atualmente é amontoado de dúvidas. Sou um díscipulo de David Hume, daqueles céticos que duvidam do próprio ceticismo. Mas, apesar do ceticismo, busca sempre me aprofundar e sistematizar o conhecimento, como fazia Hume e como fez Kant tentando responder as indagaçoes de Hume.O que me despertou pro lado da biologia, foi que as pesquisas mais recentes dos Sociobilogistas estão corroborando várias das idéias de David Hume. Por fim, a crítica que fiz ao texto do Dr. George foi no sentido de achar que a conclusão não foi totalmente decorrente do o que ele escreveu durante todo o texto e não sobre o ponto de vista dele expressado. Desculpe pelo comentário longo, que no fim das contas acabou sendo um desabafo sobre as minhas dúvidas e não uma resposta com argumentos para rebater os seus. Abraço. Caio. caiomeiota@yahoo.com.br

Anônimo disse...

É bom quando o nível da conversa se eleva, especialmente num campo ainda tão novo, complexo e polêmico quanto a justificativa científica (ou biológica) para a ética e os demais comportamentos humanos.
Particularmente, não me sinto confortável para dar minha opinião (até porque ainda não li os livros objeto das polêmicas para conhecer mais a fundo as explicações).
Pra ser sincero, sempre achei meio sem sentido prático saber se o homem é bom ou mau por natureza ou se a maldade e a bondade são elementos intrísecos da natureza humana. (confesso que essa opinião é muito mais fruto da minha incapacidade de dar uma resposta correta).
O que sei é que fazer o bem é algo que merece ser estimulado. O respeito ao outro é o valor básico de convivência. Sem ele, não há humanidade. (sei que ficou meio piegas - filosofia barata - mas não consegui encontrar outra resposta).

George

Anônimo disse...

Caio,

O meu ponto foi que o fim do texto fez bastante sentido com o resto, na verdade. Olha, existe MUITA coisa hoje em dia sobre sociobiologia, inclusive pessoas que rebatem fortemente algumas idéias que as pessoas criam quando lêem, por exemplo, o gene egoísta. A gente fica meio niilista mesmo, né, acha que talvez nada faça sentido e coisa e tal. Eu também li umas outras coisas do dawkins (p.ex, the god's delusion, que foi importantíssimo pra minha visão atual de religião) que não tem muito a ver com os genes. O Pinker fala muito bem sobre todas essas questões, e os livros dele são mais atuais. Você mora em Fortaleza? Eu tenho o 'tabula rasa' aqui, posso te emprestar qualquer dia.

Professor, também gostei bastante da discussão. E eu tinha entrado no seu site só pra ver uns slides da prova...

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caro George,
Gostei muitíssimo desse seu capítulo.
Penso exatamente da mesma forma.
Aliás, Marcelo Glesner é um dos meus autores favoritos, estando eu a me surpreender, cada vez mais, com a unidade (ou melhor, a relação) que há entre as ciências.
Escrevi um texto, sobre a "dogmática jurídica" e a questão da fundamentação do direito, para o qual encontrei valiosos subsídios no "A dança do universo".
Quanto à dignidade da pessoa humana ser ainda mais importante em face das descobertas da física contemporânea, eu havia escrito um pequeno texto, há algum tempo, refutando afirmações de um teólogo publicadas em texto na folha de São Paulo. Está em minha página pessoal, mas, como é curto, o reproduzo aqui:
O título é "Se Deus não existe, então tudo é permitido?"
Em texto publicado na Folha de São Paulo de 23/12/2006, intitulado "O mundo estilhaçado e a morte libertadora", Luiz Felipé Pondé dá resposta positiva à pergunta acima formulada, que serve de título a este pequeno texto. Para ele, se admitirmos a premissa de que Deus não existe, estaremos livres “da única forma verdadeira de responsabilidade, a infinita. A moral é mera convenção e não está escrita na poeira das estrelas.”
Com todo o respeito, não consigo concordar com essa afirmação. Sem entrar aqui na discussão do que seria uma “verdadeira” responsabilidade, e sem questionar a natureza “meramente convencional” da moral, parece-me que a responsabilidade é intrínseca ao próprio homem. Não está mesmo escrita na poeira das estrelas, mas tampouco se acha em qualquer outro ponto exterior à nossa própria consciência.
Não discuto, aqui, a premissa (a existência de Deus). Questiono apenas as conseqüências que podem ser extraídas dela, especialmente da eventual resposta negativa à existência de um criador consciente e racional. Parece-me inaceitável a afirmação de que, se admitirmos a premissa de que Deus não existe, moralmente tudo será possível.
O contrário, na verdade, é o que me parece ocorrer.
Se Deus não existe, nosso planeta não é a deliberada e consciente criação de um ser inteligente (que poderia construir, destruir e reconstruir tudo, quando e como quisesse). É, na verdade, fruto do acaso de algumas colisões cósmicas; a vida é o aleatório produto de bilhões de anos de reações químicas; a vida inteligente, então, decorre de ainda mais alguns bilhões de anos de seleção natural, na qual o componente aleatório tem papel decisivo. O planeta terra, todo e qualquer ser vivo em geral, e o ser humano em particular, inteligente, consciente de si, são, nesse contexto, raríssimos, de preciosidade indescritível e inigualável, e merecem, por essa razão, todo o cuidado possível.
Da mesma forma, se Deus não existe, nossa maldade ou nossa bondade, e nossos atos para com nosso planeta, para com os seres que nele habitam e para com nossos semelhantes, não podem ser atribuídos a um criador que “nos fez assim”, mas à consciência que temos de nós mesmos, de nosso valor e de nossa unicidade. A inexistência de Deus, em vez de colocar-nos como “animais ferozes que babam enquanto vagam pelo deserto e contemplam a solidão dos elementos”, como sugere o autor do texto em exame, coloca-nos como únicos responsáveis pelo destino de uma raríssima obra da natureza. Se dependemos somente de nós mesmos, e de nenhuma força superior e consciente, isso é um motivo adicional para que nos ajudemos, nos compreendamos e para que sejamos solidários uns com os outros.
Como o autor citado fez referência à poeira das estrelas, não é possível que desconheça a obra de Carl Sagan, homem que, de resto, é o exemplo do que estamos a dizer. Talvez não tenha existido alguém tão ateu, e, ao mesmo tempo, tão ético, e preocupado com os destinos do homem, dos seres vivos e do planeta Terra, preocupação esta que certamente não se devia a uma “mera convenção”. E, paradoxalmente, certos governantes de grandes potências, conquanto bastante religiosos, preocupados portanto com a “verdadeira responsabilidade, a infinita”, pouco ligam para os destinos do planeta em longo prazo, ou mesmo para a vida dos que estão além de suas fronteiras, sendo-lhes mais caros o crescimento econômico e a disponibilidade de poços de petróleo.

Unknown disse...

Aproveito-me da discussão de que me é muito cara para citar o livro: A Perigosa Idéia de Darwin de Daniel C. Dennett que engloba bem o assunto abordado acima. Gostei muito dos textos postados aqui e não poderia deixar de comentá-lo. No site da Globo News exite uma excelente entrevista com o Filósofo sobre o assunto: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM735129-7823-DANIEL+DENNETT,00.html