Mas às vezes surgem alguns casos pitorescos que nos permitem dar boas risadas. Veja bem: não estou dizendo que esses casos não merecem ser levados a sério. Pelo contrário. O que quero dizer é que são situações curiosas, engraçadas até. Um prato cheio para os professores de direitos fundamentais animarem suas aulas.
Assim, selecionei seis casos pitorescos em matéria de direitos fundamentais, ressaltando novamente que, apesar de curiosos, esses casos envolvem importantes discussões filosóficas.
Era uma bela tarde de sol na praia de Tarifa, em Cádiz, na Espanha. Ótimo dia para curtir uma praia, especialmente em boa companhia. Foi nesse cenário que a modelo Daniella Cicarelli e seu namorado, Tato Malzoni, protagonizaram um dos mais polêmicos casos jurídicos ocorridos no Brasil, para deleite dos professores de direito.
Inicialmente, parecia um dia normal de praia. Água de coco, picolé e areia. Ocorre que o clima entre os dois namorados foi ficando cada vez mais quente (ou melhor, caliente) e, no calor do momento, não resistiram à tentação. As carícias foram ficando cada vez mais desinibidas, até que os dois decidiram extravasar seus sentimentos no mar, onde provavelmente teriam mais intimidade.
Mal sabiam eles, porém, que os abraços (e algumas carícias a mais) estavam sendo observados por um paparazzo, que filmou tudo à distância. O vídeo foi exibido por um canal pago de televisão na Espanha e, rapidamente, espalhou-se pela Internet, transformando-se em um sucesso mundial.
A modelo e seu namorado, tentando evitar a divulgação do vídeo, ingressaram com ação judicial, no Brasil, contra alguns portais eletrônicos que estavam disponibilizando gratuitamente o arquivo digital para seus usuários, como os sites Ig, Globo.com e YouTube.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), analisando um recurso do casal, concedeu medida liminar (antecipação de tutela) para proibir a divulgação do vídeo.
O julgado recebeu a seguinte ementa:
“Pedido de antecipação de sentença por violação do direito à imagem, privacidade, intimidade e honra de pessoas fotografadas e filmadas em posições amorosas em areia e mar espanhóis – Tutela inibitória que se revela adequada para fazer cessar a exposição dos filmes e fotografias em web-sites, por ser verossímil a presunção de falta de consentimento para a publicação [art. 273, do CPC] – Interpretação do art. 461, do CPC e 12 e 21, do CC – Provimento, com cominação de multa diária de R$ 250.000,00, para inibir transgressão ao comando de abstenção” (TJSP, Agravo de Instrumento 472.738-4, rel. Ênio Zuliane, j. 28/9/2006).
Confesso que não fiquei satisfeito com a decisão do TJSP (apesar de já ter feito o download do vídeo – para fins acadêmicos – antes de sua proibição). A meu ver, ao proibir a divulgação do filme, a decisão judicial limitou excessivamente um direito fundamental (a saber: liberdade de imprensa e o direito à informação) em favor de um interesse pessoal de uma celebridade que sabia perfeitamente que poderia ser filmada ou fotografada em um local público.
O juiz da causa, Gustavo Santini Teodoro, que analisou o feito em primeiro grau, julgou contra a modelo e seu namorado, entendendo que não teria havido violação à privacidade ou à intimidade, já que se tratava de local público. Veja a sentença.
Eu iria indicar o link para o vídeo. Mas acho que não pega bem um juiz fazer uma sugestão dessas, não é mesmo? :-)
Em um de seus momentos mais criativos, o poeta e compositor Tiririca brindou a humanidade com a seguinte canção:
Tiririca
Quero ver os meus colegas dançando
Veja, veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Quando ela passa, me chama atenção
Mas seus cabelos não têm jeito, não
A sua catinga quase me desmaiou
Olha, eu não agüento o seu grande fedor
Veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Eu já mandei ela se lavar
Mas ela teimou e não quis me escutar
Essa nega fede! Fede de lascar
Bicha fedorenta, fede mais que um gambá
Veja, veja, veja os cabelos dela
Como é que é? A galera toda aí
Com as mãozinhas pra cima
Veja, veja, os cabelos dela
Bonito, bonito!
Aí, morena, você, garotona
Veja, veja, veja os cabelos dela
Logicamente, Tiririca não pretendia ganhar nenhum “Grammy” por essa canção. Sua intenção era tão somente fazer humor. Aliás, ele chegou a afirmar que a música foi feita em "homenagem" à sua esposa.
Mas não foi isso que algumas entidades entenderam. Para alguns, a música representaria um desrespeito à mulher negra e, por isso, deveria ser proibida. O caso foi parar na Justiça. No âmbito penal, Tiririca foi inocentado da acusação de racismo, a meu ver corretamente, já que o intuito da música era fazer humor.
Na esfera cível, porém, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que julgou o caso em grau de apelação, condenou a Sony Music a pagar uma indenização de trezentos mil reais.
Veja a íntegra da decisão.
Comentário particular: para ser sincero, acho que o TJRJ exagerou um pouco. Acho que aqui caberia os mesmos argumentos da sentença do Mandarino, no caso Diogo Mainardi. Ou seja, entre tolerar pequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, é preferível a tolerância em nome da liberdade.
O presente caso é bastante interessante e envolve uma colisão entre dois valores importantes: a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana.
Os fatos são os seguintes: na Alemanha, discutia-se a possibilidade de se conceder uma licença de funcionamento para um estabelecimento onde se praticava o chamado “peep-show”, no qual uma mulher, completamente sem roupas, dança, em uma cabine fechada, mediante remuneração, para um espectador individual que assiste ao show.
A licença de funcionamento não fora concedida administrativamente sob o argumento de que aquela atividade seria degradante para mulher e, portanto, violava a dignidade da pessoa humana. Em razão disso, os interessados ingressaram com ação judicial questionando o ato administrativo. Eles argumentavam que a mulher estaria realizando aquele trabalho por livre e espontânea vontade. Logo, não havia que se falar em violação à dignidade da pessoa humana. Seria um trabalho como qualquer outro. Sustentaram ainda que várias boates onde se praticava o strip-tease obtiveram a devida licença de funcionamento, razão pela qual o “peep-show” também deveria ser permitido.
O caso chegou até a Corte Constitucional alemã (TCF), que deveria decidir se merecia prevalecer a autonomia da vontade da mulher, que estava ali voluntariamente, por escolha própria, ou a dignidade da pessoa humana, já que aquela atividade colocava a dançarina na condição de mero objeto de prazer sexual.
A decisão foi no sentido de que o “peep-show” violaria a dignidade da pessoa humana e, portanto, deveria ser proibido. Na argumentação, o TCF decidiu que “a simples exibição do corpo feminino não viola a dignidade humana; assim, pelo menos em relação à dignidade da pessoa humana, não existe qualquer objeção contra as performances de strip-tease de um modo geral”. Já os Peep-shows – argumentaram os velhinhos do Tribunal – “são bastante diferentes das performances de strip-tease. No strip-tease, existe uma performance artística. Já em um peep-show a mulher é colocada em uma posição degradante. Ela é tratada como um objeto... para estímulo do interesse sexual dos expectadores”.
Explicou ainda o TCF que a violação da dignidade não seria afastada ou justificada pelo fato de a mulher que atua em um “peep-show” estar ali voluntariamente. Afinal, “a dignidade da pessoa humana é um objetivo e valor inalienável, cujo respeito não pode ficar ao arbítrio do indivíduo”*.
Agora, imagine os velhinhos abaixo, que são os membros da Corte Constitucional alemã, analisando as “provas dos autos”....
Juízes da Corte Constitucional alemã, vestidos a caráter para julgar o “Peep-Show Case”.
* As citações foram extraídas de ADLER, Libby. Dignity and Degration: transnacional lessons from constitucional protection of sex. Disponível On-line: http://papers.ssrn.com/ (19 de abril de 2007)Este caso ocorreu no Brasil e gerou certa polêmica na época.
No dia 17 de agosto de 2003, às duas horas da madrugada, Gerald Thomas concluiu a apresentação de mais uma peça – uma adaptação de “Tristão e Isolda” – , que dirigiu no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ao invés de ouvir os tradicionais aplausos, Gerald Thomas foi vaiado pelo público, que não havia gostado da peça.
Como forma de protesto pelas vaias que recebia, o diretor de teatro simulou uma masturbação no palco e, ato contínuo, virou de costas para o público, abaixou as calças até o joelho, arriou a cueca e exibiu suas nádegas para os espectadores que ali se encontravam. A lamentável cena foi, inclusive, filmada, tendo gerado ampla repercussão após ser divulgada em cadeia nacional por diversas redes de televisão.
O caso foi parar na polícia. Gerald Thomas foi acusado da prática de “ato obsceno”, crime tipificado no art. 233 Código Penal brasileiro: “praticar ato obsceno em público ou aberto ou exposto ao público: pena, de detenção de três meses a um ano, ou multa”.
Não conseguindo barrar o trâmite da ação penal nas instâncias ordinárias, Gerald Thomas ingressou com pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, alegando que a perseguição penal violava o seu direito à liberdade artística e de expressão.
O Supremo Tribunal Federal, após longa discussão, concedeu o referido habeas corpus, por decisão empatada, entendendo que o ato do diretor de teatro estaria inserido no contexto da liberdade de expressão, “ainda que inadequada e deseducada”.
Eis a ementa do acórdão:
“Ementa: Habeas corpus. Ato obsceno (art. 233 do Código Penal). 3. Simulação de masturbação e exibição de nádegas, após término de peça teatral, em reação a vaias do público. Não se pode olvidar o contexto em que se verificou o ato incriminado. O exame objetivo do caso concreto demonstra que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão, ainda que inadequada e deseducada. 4. A sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados, como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando-se o enquadramento penal. 5. Empate na decisão. Deferimento da ordem para trancar a ação penal. Ressalva dos votos dos Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie, que defendiam que a questão não pode ser resolvida na estreita via do habeas corpus” (HC 83996-RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17/8/2004).
Veja a íntegra do acórdão.
O caso é mais ou menos assim:
O “lançamento de anões” (em inglês: “dwarf tossing”, “dwarf throwing”; em francês: “lancer de nains”) é uma brincadeira (ou esporte, para alguns) na qual anões, vestindo roupas de proteção, são arremessados em direção a um tapete acolchoado, vencendo aquele que conseguir lançar o anão na maior distância possível.
A título de exemplo, veja o vídeo abaixo, extraído do Youtube:
Pois bem. O certo é que, em uma cidade francesa chamada Morsang-sur-Orge, a Prefeitura, utilizando seu poder de polícia, resolveu interditar um bar onde era praticado o lançamento de anões, argumentando que aquela atividade violava a ordem pública, pois era contrária à dignidade da pessoa humana.
Não se conformando com a decisão do Poder Público, o próprio anão (Sr. Wackenheim) questionou a interdição, argumentando que necessitava daquele trabalho para a sua sobrevivência. O anão argumentou que o direito ao trabalho e à livre iniciativa também seriam valores protegidos pelo direito francês e, portanto, tinha o direito de decidir como ganhar a vida.
Em outubro 1995, o Conselho de Estado francês, órgão máximo da jurisdição administrativa daquele país, decidiu, em grau de recurso, que o poder público municipal estaria autorizado a interditar o estabelecimento comercial que explorasse o lançamento de anão, pois aquele espetáculo seria atentatório à dignidade da pessoa humana e, ao ferir a dignidade da pessoa humana, violava também a ordem pública, fundamento do poder de polícia municipal. (Veja a decisão em francês).
O Sr. Wackenheim, mais uma vez inconformado, recorreu ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, alegando que a decisão seria discriminatória e violava o seu direito ao trabalho.
Em setembro de 2002, o Comitê de Direitos Humanos da ONU confirmou a decisão do Conselho de Estado francês, reconhecendo que o lançamento de anão violaria a dignidade da pessoa humana e, portanto, deveria ser proibido.
6 comentários:
O caso do lançamento de anões me faz lembrar do caso do anão que levava "cascudos" (pedala, Robinho...) no Pânico na TV.
A justificativa da proteção à dignidade da pessoa humana fez com que ele fosse dispensado.
Hoje o mesmo tornou-se, por falta de opção, ator de filmes pornográficos...
Parabens pela sua proposta.
Com seus escritos o direito constitucional fica mais gostoso e o que mais aprecio sao os exemplos que voce coloca. Torna o entendimento mais fácil.
Eu gostaria de pedir a voce que colocasse o texto completo sobre cláusulas pétreas incluindo todos os exemplos.
Obrigada,
Michelina
Tanto o programa Pedala Robinho quanto este são atentatórios da dignidade da pessoa humana. A falta de opção não deve servir de desculpa para essas práticas sob pena de muitas pessoas terem esse direito vilipendiado. Ademais "falta de opção" é um problema social e não de estatura. Milhares de pessoas possuem dificuldade de se inserirem no mercado de trabalho, por razões diversas.
Por outro lado, não penso que tal justificativa seja aceitável. Pois existem programas sociais que visam corrigir distorções históricas,que acabaram excluindo determinadas pessoas do acesso a educação e ao emprego.
Ah, detalhe, eu tenho baixa estatura( nanismo), e, sou formada em Direito, estudando para concurso. Em breve, serei uma Procuradora (Oxalá).
Falta de opção? Bem, conheço outras pessoas que não tiveram acesso a educação que tive, de estatura média, que ao invés de assumirem empregos degradantes vendem artesanato. Por fim, há a política de cotas, em várias empresas. Não enxergo que a falta de opção leva alguém a optar por empregos degradantes é bem mais provável que isso se dê por falta de auto-estima aliado ao preconceito que algumas pessoas sofrem, ou julgam que vão sofrer. Aliás, quem não sofre alguma espécie de preconceito, não é mesmo? Se é índio, se é gordo, se é alto demais, pequeno demais. Felizmente, a sociedade anda evoluindo nesse sentido.
Eu penso que programas dessa natureza apenas possuem a função de disseminar o preconceito e a mistificação de pessoas com baixa estatura. Esclarecendo, somos pessoas como quaisquer outras. Nem melhor nem pior. Não somos de uma espécie diferente para sermos estigmatizados dessa maneira tão pouco para só nos relacionarmos entre nós mesmos.
A natureza é diversificada, e como fazemos parte dela, é natural que assim sejamos, até porque, é essa biodiversidade que a mantém viva e que a faz evoluir. A decisão do Tribunal Francês está mais do que acertada, aliás, essa realidade não deveria sequer existir. Quando se agride o direito a dignidade de um só ser humano, agredi-se de todos, afinal somos todos da mesma espécie.
Pensem nisso.
abs,
Carla Abreu
Documentário sobre pessoas de baixa estatura:
http://www.youtube.com/watch?v=WNY-DWk60H8
http://www.youtube.com/watch?v=5iDyUQF97E8&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=YRrG5n9ObF8&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=HZZnSx-TUB0&feature=related
A pergunta seria: quão indisponíveis são os direitos fundamentais?
Discordo veementemente nos casos: caso do Gerald Thomas atitude deste é destoante do ato artístico simulando uma masturbação e a exibição de suas nádegas configura indiscutivelmente um ato obsceno, no caso do Tiririca é inconteste sua intenção racista,o caso do streptease também viola os direitos humanos da mulher como coisa. Vale ressaltar que os direitos humanos são direitos conquistados através de lutas incansáveis travadas no decorrer da história por isso recebe a denominação de geração de direitos fundamentais chegando com o insigne jurista Bonavides até a 5ª geração de direitos. Neste diapasão há a proibição de retrocesso em matéria de direitos humanos. Não se pode tolerar sofismas jurídicos que aceite essas atitudes por acharem alguns juristas que se trate de trivialidades pois não é. Qualquer país que se diga civilizado não deve compactuar com essas afrontas viscerais a direitos universais ínsitos ao ser humano.
Postar um comentário